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Responsabilidade empresarial e Estado democrático de Direito

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26 de março de 2025, 8h00

1. Introdução

Quanto mais se causam danos – especialmente ambientais – a partir de atividades empresariais, quanto mais se cometem ilícitos empresariais, mais eles se tornam enraizados na cultura corporativa: como qualquer outro fenômeno social, os ilícitos são inventados, viram moda e por vezes criam raízes, convertendo-se em formas de fazer e pensar tradicionais.

Isso se aplica plenamente à ilicitude corporativa: quanto mais uma prática empresarial ilegal é difundida sem sanção, mais é aceita no meio, até se tornar uma cultura da empresa.

Não obstante, a eficácia na responsabilização empresarial por danos causados ao meio ambiente se encontra distante de ser atendida.

As dificuldades policiais, ministeriais e judiciais nos casos das infrações cometidas no contexto da atividade empresarial se traduzem em poucas investigações, acusações e julgados, que dizer condenações.

Resultado: os danos decorrentes da atividade empresarial, que por vezes conduzem a desastres, não possuem a correlata e necessária responsabilização.

Nesse contexto, cabe perquirir, ainda que em primeiro momento pareça exagerado, se é afetado o Estado Democrático de Direito (doravante EDD) pela reiterada ausência de responsabilização.

2. O Estado supervisor

Willke observa que o Estado vive sob permanente sobrecarga, pois não dispõe de meios suficientemente adequados para contrabalançar o aumento crescente da complexidade interna dos sistemas sociais [1].

E constata a dificuldade do Direito de lidar com relações complexas. Nesse cenário, de acordo com sua teoria do Estado supervisor, caberia ao Estado apenas realizar a mediação entre os distintos sistemas funcionais autônomos, pela produção de normas jurídicas a partir da mútua observação e reflexividade dos sistemas [2]: converte-se o sistema político de uma sociedade em instância para a supervisão ou revisão das decisões dos outros subsistemas sociais.

Habermas resume a teoria em três pontos [3]:

a) O Estado supervisor procura, em sistemas de negociação não hierarquizados, harmonizar-se com os sistemas funcionais, que ou são perturbados em suas próprias operações, necessitando de uma ajuda voltada ao desenvolvimento, ou sobrecarregam o ambiente com custos externalizados e precisam ser pressionados a levar em conta seu entorno.

Sem embargo, as próprias estruturas dos sistemas autorreferenciais já determinam em que medida podem provocar mudanças estruturais.

Isso mostra que o Estado não pode muito: estará limitado àquilo que o sistema – em geral prevalentemente o sistema econômico – permite.

b) A política de controle sistêmico também precisa se servir da linguagem do Direito, porém não mais na forma de programas condicionais ou de metas, mas a título de um Direito reflexivo.

Assim, o Direito será um mero catalizador para mudanças porventura eleitas pelos próprios sistemas regulados.

c) a democracia deve manter seu conteúdo essencial ainda assim.

2.1 O comprometimento do EDD no Estado supervisor

O Estado supervisor prevalece na prática e ao priorizar os sistemas regulados traz ínsita sua mácula, o que explica muitos dos problemas enfrentados na normatização da atividade empresarial. Prevalece o pensamento econômico, que culmina por ditar as regras, com o comprometimento do EDD, transformando a democracia em um mercado de pretensões irrefreadas de grupos que representam um interesse parcial [4].

Habermas observa que com a delegação de competências estatais da positivação do Direito sobre os sistemas de negociação, a reprodução do Direito e da Política fica sob suspeita de uma dupla autoridade, que se divide entre a istração estatal e os sistemas sociais funcionais.

E prossegue: quanto mais a istração pública se enreda nos discursos corporativos de novo tipo – a governança ambiental se encaixa como luva à discussão – menos ela pode satisfazer a forma de circulação oficial do poder no EDD.

Assim, o mesmo neocorporativismo que deve superar os perigos de uma desintegração da sociedade em seu todo e com isso conter os problemas de legitimação ocasionados por novos rompimentos, perturba o processo de autolegitimação que acontece no interior do próprio governo.

Quanto mais atores coletivos, sistemas funcionais e grandes organizações agem no lugar dos cidadãos, mais claramente se desloca a base para a imputabilidade das consequências da ação e menos os bens coletivos dignos de proteção da sociedade de risco parecem poder ser assegurados pelos direitos subjetivos.

Para Habermas isso solapa a base de legitimação do EDD. É inconcebível permitir que dormite ao sabor dos sistemas a regulação, gerando um desenvolvimento regressivo, em que o predomínio das políticas negociadas se associa à baixa proteção dos direitos fundamentais.

Quando os sistemas são liberados de seus papeis instrumentais e promovidos a fim em si mesmos, a estrutura constitucional do sistema político no EDD resta prejudicada, e somente será preservada se as autoridades, diante de seus parceiros de negociação corporativos, assumirem assimetricamente a obrigação de representar a vontade sedimentada na ordem legal daqueles cidadãos, que, no momento, não estão participando, por integrarem uma subclasse desamparada [5].

A dupla autoridade que afeta o poder regulador do Estado e a simetria entre Estado e empresas e entre empresas e cidadãos na criação de normas é verificável explicitamente na criação das normas istrativas ambientais, em que prevalece a regulamentação negociada com os setores, etiquetada como Direito Ambiental negociado.

O Direito Ambiental negociado encontra-se praticamente institucionalizado nos Estados Unidos pela Environmental Protection Agency, que se vale da regulatory negotiation, e, sob o argumento de trabalhar em conjunto com o empresariado, afirma que não renuncia a seu poder, mas concorda que o efeito almejado será atingido com a concertação.

No Brasil não é distinto, e, em Minas Gerais este fenômeno é observado nos grupos de discussão da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável para regulamentar determinada atividade com normas istrativas ambientais.

A negociação regulatória deveria conferir maior eficácia à legislação ambiental, pois haveria o pacto entre os interessados para seu cumprimento. Tal ocorreria se a negociação culminasse com o atendimento dos interesses ambientais. Mas muitas vezes tem-se a negociação-emulação, em que o setor envolvido apenas afirma que mais tarde irá atender ao objetivo proposto. Nesta o setor envolvido participa do grupo, muitas vezes mais fazendo poucas concessões do que realmente se dedicando a atender ao interesse ambiental.

Também é comum verificar na negociação o fenômeno da captura, em que a istração pública adota a linguagem e o modo de raciocínio do empreendedor, que ela deveria controlar…

A teoria da captura surge nos Estados Unidos, diante da preocupação com o Direito negociado pelas agências reguladoras, buscando evitar que o agente público, detentor da tomada de decisões, sucumba aos interesses econômicos e políticos das empresas ou grupos empresariais mais influentes no setor regulado, resultando em desequilíbrio e prejuízo ao bem-estar social, desconsiderando a supremacia do interesse público [6].

No Brasil, a captura implica violação aos princípios da impessoalidade e da moralidade na istração pública, previstos no artigo 37 da Constituição.

Justen Filho recorda que nesses casos a agência reguladora se transforma em via de benefício para os setores empresariais regulados, ocorrendo esta quando a agência perde a condição de autoridade comprometida com a realização do interesse coletivo e a a produzir atos destinados a legitimar a realização dos interesses egoísticos do segmento empresarial regulado [7].

A crescente influência do Direito Ambiental negociado faz com que várias normas istrativas anteriormente mais rígidas diminuam as exigências protetivas, gerando, um desregramento insidioso.

E é exatamente na atuação da istração pública que se manifestarão as maiores deficiências do Direito em relação à proteção do ambiente, motivadas pelas pressões que acontecem já na criação da norma ambiental, convertendo o Direito istrativo Ambiental em sistema de concessão de licenças para contaminar.

A postura dos órgãos de licenciamento, que não discutem questões de fundo, como se se deve ou não aceitar a instalação de determinado empreendimento, muitas vezes altamente arriscado e que insistem em proclamar uma segurança constantemente desmentida pela reiteração de danos ambientais, põe em xeque o próprio sistema istrativo ambiental.

Depois, seguem os problemas com a fiscalização ineficiente, sem pessoal suficiente ou qualificação necessária, temendo aplicar sanções e desagradar poderosos, ou sem possibilidade de oferecer contraprova aos dados fornecidos pelas indústrias, que fazem seu próprio controle.

O resultado das negociações com o setor empresarial interessado para a criação das normas ambientais apresenta muitas vezes o efeito paradoxal observado por Beck, que “quanto mais se polui menos se polui”, pois são tão altos os limites permitidos pelas normas istrativas que formalmente não há poluição identificada pelos órgãos de fiscalização.

O fenômeno da captura implica problemas para o Direito Penal Ambiental, uma vez que nele são depositadas muitas expectativas, quando em verdade a principal barreira na proteção do meio ambiente é o Direito istrativo Ambiental.

A especificação do que se pode fazer, se é possível poluir e quanto é possível, a atividade da istração pública ambiental, o sistema de licenciamento, enfim, a fixação de fronteiras e a fiscalização em geral, tudo isso é função do Direito istrativo Ambiental, não do Direito Penal Ambiental.

Não poderia, portanto, ser mais certeiro o diagnóstico de Habermas quanto ao comprometimento ao EDD pelo predomínio de uma visão neocorporativista na regulamentação empresarial.

Essa asserção ganha vigor quando se verifica que no Brasil o Estado, ao tratar com as grandes empresas, como as mineradoras, não assume a posição assimétrica indispensável para garantir a representação da vontade dos cidadãos.

Ao revés, por vezes o Estado até se coloca ele próprio em situação inferior, muitas vezes por insuficiência de recursos, ausência de fiscalização eficiente, ou, o que é pior, omissão e corrupção.

Outras vezes nem mesmo há corrupção.

Pode ocorrer que, diante da maior organização dos interesses de empresas frente aos interesses difusos, a negociação termine dominada por aquelas, levando a uma captura epistêmica, “na qual as agências atuariam com viés pró grandes interesses econômicos, não em função de algum tipo de corrupção, mas porque a informação que as agências obteriam em tais circunstâncias seria, ela própria, enviesada[8].

3. A ausência de responsabilização e o EDD

Günther formula seu modelo teórico a partir da reconstrução do conceito de responsabilidade e no estabelecimento do vínculo entre responsabilização e EDD.

Para Günther a responsabilidade consiste em uma prática social pela qual o complexo novelo de relações de causalidade e probabilidade que envolve um acontecimento é reduzido a um ponto escolhido: uma pessoa agente, a quem o acontecimento é atribuído como de sua autoria, para que preste contas do fato perante os demais.

Essa noção de responsabilidade é fundamental, conceito capaz de contribuir para a compreensão do mundo contemporâneo e de fornecer critérios para transformá-lo.

A comunicação social deve ser estruturada acerca de problemas, riscos e danos, de maneira que estes sejam atribuídos a pessoas singulares, a indivíduos, e não a estruturas e processos supraindividuais, como a sociedade, a natureza ou ao destino.

Além disso, a legitimidade das regras de imputação está vinculada ao processo deliberativo de sua elaboração.

Nesse ponto, Günther se vale da teoria da comunicação de Habermas para estabelecer o fundamento da responsabilidade.

Para Günther, à medida que os cidadãos discutem seu conceito de pessoa explícita e publicamente, a própria responsabilidade se torna reflexiva.

A responsabilidade por uma ação e suas consequências está ligada ao fato de que os homens estão dispostos e possuem capacidade para prestar contas perante si próprios ou perante outros, disposição esta que se encontra internamente entrelaçada ao significado comunicativo de pronunciamentos linguísticos.

E o dever de obediência à norma se funda sobre o direito e a possibilidade que cada indivíduo tem de tomar parte no processo de formação da vontade. Quando os participantes se reconhecem reciprocamente como pessoas deliberativas, decidem-se pelo princípio de que cada um deles é responsável pelo respeito às normas [9].

Havendo o direito de participar dos procedimentos democráticos de legislação e possibilidade de fazer valer sua oposição de rejeição em tais procedimentos, é exigível da pessoa de direito que respeite a norma em suas ações e evite o ilícito [10].

No entanto, ainda há empreendedores que não se percebem como responsáveis e continuam invocando a fatalidade ou o destino para os danos que causam seus empreendimentos, situação incompatível com uma sociedade moderna em um EDD.

Mais ainda: ao não se obter uma responsabilização efetiva – e os desastres são eloquentes exemplos – tal requisito do EDD segue desatendido.

Isso traz à baila a necessidade de discutir uma responsabilidade empresarial individual eficaz e, mais especificamente, em relação aos casos mais graves, uma responsabilidade penal empresarial individual eficaz.

De fato, se não se obtém uma resposta eficiente para os piores casos de responsabilidade empresarial, é inevitável o questionamento sobre a capacidade sancionatória desse modelo de responsabilidade tal como configurado.

4. Conclusão

O predomínio de interesses econômicos na regulação empresarial ambiental somado à ausência de uma responsabilidade empresarial eficaz representa um problema para o EDD.

Quando se investiga a influência do sistema econômico na regulação empresarial, especialmente a ambiental, bem como as consequências dos ilícitos corporativos, é inevitável concluir, como o fazem expressamente a teoria comunicativa de Habermas e a teoria da responsabilidade de Günther, que há um comprometimento do EDD.

A prevalência na prática do modelo do Estado supervisor explica muitos dos problemas enfrentados na normatização da atividade empresarial: ao priorizar o pensamento econômico, este culmina por ditar as regras.

Nesse cenário, a reprodução do Direito e da Política fica sob suspeita de uma dupla autoridade, que se divide entre a istração estatal e os sistemas sociais funcionais, principalmente o econômico.

Mas, ao liberar os sistemas de seus papeis instrumentais e promovê-los a fins em si mesmos, a estrutura do sistema político concebida no EDD resta prejudicada e somente será preservada se as autoridades, diante de seus parceiros de negociação corporativos, assumirem assimetricamente a obrigação de representar a vontade dos cidadãos.

A influência de preocupações econômicas é tamanha que queda comprometido em outro flanco do EDD, diante da ausência de uma responsabilidade empresarial eficaz, seja, no plano abstrato, pela ausência de legislação ambiental empresarial voltada para a efetividade, seja no plano concreto, pelos óbices investigativos ou mesmo jurisprudenciais frequentemente encontrados, conforme a teoria da responsabilidade de Günther.

 


[1] WILLKE, Helmut. Die Entzauberung des Staates, Königstein: Athenäum, 1983, p. 50 e ss.

[2] WILLKE, Helmut. Ironie des Staates: Grundlinien einer Staatstheorie polyzentrischer Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992, p. 183-210.

[3] HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democracia. São Paulo: Editora Unesp, 2020, p. 440-442.

[4] WILLKE, Helmut. Supervisión del Estado: el reto de los sistemas mundiales. Em:  AAVV. Teoría de sistemas y Derecho Penal. Fundamentos y posibilidad de aplicación. Organizador Carlos Gómez-Jara Díez. Lima: Ara Editores, 2007, p. 162.

[5] HABERMAS, p. 443-447.

[6] OLIVEIRA, Emerson Ademir Borges de; RAZABONI JUNIOR, Ricardo Bispo; NOGUEIRA, Valdiney da Silva. “Agências, teoria da captura e corrupção: implicações da captação do interesse público pelo privado”.  Revista dos Tribunais. vol. 1033, novembro 2021, p. 70-72.

[7] JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002. p. 369-370.

[8] MENDONÇA, José Vicente Santos de. Direito constitucional econômico…, p. 364.

[9] GÜNTHER, Klaus. Responsabilização na sociedade civil. Em: PÜSCHEL, Flavia. Teoria da responsabilidade no Estado Democrático de Direito: textos de Klaus Günther / Flavia Portella Püschel, Marta Rodriguez de Assis Machado. São Paulo, Saraiva, 2009, p. 2, 7-8, 11-20 e prefácio à p. VIII.

[10] GÜNTHER, Klaus. Qual o conceito de pessoa de que necessita a teoria do discurso do direito? Reflexões sobre a conexão interna entre pessoa deliberativa, cidadão e pessoa de direito. Em: PÜSCHEL, Teoria da responsabilidade …, p. 29.

Autores

  • é promotor de Justiça em Minas Gerais, doutor em Direitos, Instituições e Negócios pela UFF e mestre em Direito Penal (UBA).

  • é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direitos, Instituições e Negócios da UFF; Doutor em Direitos, Instituições e Negócios (UFF), mestre em Direito pela Universidade Gama Filho, professor Adjunto do Departamento de Direito Privado da UFF e promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais aposentado.

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