Opinião

Moderação de conteúdo e responsabilidade dos provedores de aplicações de internet

Autor

  • é estudante do 5° semestre na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco aluno-pesquisador da Sociedade Brasileira de Direito Público (sbdp) e estagiário plantonista do Departamento Jurídico XI de Agosto.

    Ver todos os posts

28 de março de 2025, 17h25

A discussão acerca da moderação de conteúdo e responsabilização jurídica dos provedores de aplicação de internet (PAI [1]) se encontra, como nunca antes, em absoluta evidência no contexto da jurisdição constitucional brasileira. Isso pois a era digital, para além de transportar o debate público e o exercício da cidadania para o jovem espaço digital, cuja regulação é ainda um desafio dos juristas de nosso tempo, tem trazido para o centro do debate democrático os PAIs, que, de aparentes meros agentes econômicos, assumem, hodiernamente, o papel de efetivos agentes políticos e sociais, capazes de moldar e controlar o debate público. Assim, no século 21, a preservação das bases democráticas do Estado de direito pressupõe uma regulação da atuação dos PAIs, responsáveis pela moderação imediata dos discursos e conteúdos digitalmente veiculados.

Freepik
laptop quase fechado

Disso decorre a necessidade de se estabelecer um sistema de cooperação entre o Estado e os PAIs, também responsáveis pelo cumprimento do ordenamento jurídico em suas plataformas, de modo a impedir que o meio digital se torne um espaço de livre disseminação de discursos de ódio, fake news e discursos antidemocráticos. É nesse contexto que surge a concepção trazida pelo artigo 19 do Marco Civil da Internet (MCI), qual seja, a adoção de um sistema de notice and take down, em que a não derrubada do conteúdo digital pelo PAI somente enseja responsabilização deste caso haja decisão judicial específica determinando a indisponibilização do conteúdo. Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário (RE) 1.037.396, paradigma do Tema 987, discute a constitucionalidade do aludido dispositivo legal.

Destaca-se que, em 2018, foi reconhecida a repercussão geral da discussão suscitada no RE. Do ponto de vista processual, a repercussão geral pode ser definida como um pressuposto de issibilidade do recurso extraordinário, conforme o artigo 102 § 3° da Constituição, de modo que é necessário o seu reconhecimento para que o RE seja conhecido. Desse modo, com o reconhecimento da repercussão geral, o STF identifica a discussão constitucional incidental e julga a questão como paradigma para casos semelhantes, futuros ou já em curso. Reconhecer a repercussão geral, em outros termos, é constatar que a questão constitucional atinente ao caso concreto transcende os meros interesses processuais subjetivos, tendo grande relevo social, econômico, político e jurídico. Assim, apesar de a discussão acerca da constitucionalidade do artigo 19 se dar em sede de controle concreto de constitucionalidade, seus efeitos não se limitarão à mera esfera jurídica das partes envolvidas, na medida em que será fixada uma tese de repercussão geral aplicável aos demais casos análogos, agora suspensos, dos quais o RE 1.037.396 é representativo. Tal mecanismo acaba por conferir maior uniformidade à interpretação constitucional pátria.

Cumpre destacar, entretanto, que, do ponto de vista puramente teórico, a declaração de inconstitucionalidade de um dispositivo legal somente seria dotada de efeitos erga omnes caso proferida em sede de controle abstrato. Ocorre, entretanto, que o controle incidental brasileiro, realizado por meio dos REs, tem gerado efeitos similares ao controle abstrato, muito em decorrência do instituto da Repercussão Geral. Isso pois as teses de repercussão geral, na prática, produzem efeitos erga omnes, de modo que a declaração incidental da inconstitucionalidade do artigo 19 terá quase os mesmos efeitos de uma decisão em sede de controle abstrato. Trata-se de fenômeno comumente denominado de “objetivação do controle difuso”[2], decorrente, em especial, da EC n° 45, que introduziu a figura da Repercussão Geral no controle incidental brasileiro. Além do mais, o artigo 52 inciso X da CF permite que seja suspensa a eficácia de norma declarada inconstitucional em controle concreto pelo STF, o que confere efeitos erga omnes a uma decisão que, a priori, produziria meros efeitos inter partes.

Nesse contexto, entretanto, surge uma possibilidade de reação do Poder Legislativo a uma eventual declaração de inconstitucionalidade do artigo 19. Isso pois o artigo 52 da CF confere ao Senado Federal a prerrogativa de suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo STF. Assim, trata-se de ato discricionário do Senado, de modo que este poderá optar por não suspender a execução do dispositivo, assumindo postura de enfrentamento ao STF.

Pressupostos

Destaca-se, desde logo, que a presente análise partirá de alguns pressupostos teóricos, os quais agora amos a delimitar. Primeiramente, adotar-se-á um modelo teórico de e fático amplo quanto à estrutura dos direitos fundamentais, como o sustentado por Virgílio Afonso da Silva[3]. Da adoção de tal modelo decorre que qualquer regulamentação é, na realidade, uma efetiva — ou potencial — restrição ao direito fundamental “regulamentado”. Desse modo, ite-se que direitos fundamentais são, por natureza, restringíveis, porém é imperativo que se imponha um ônus argumentativo àquele que encampa a restrição, ao qual incumbe fundamentar constitucionalmente a adoção da medida restritiva.

Spacca

Partindo-se desse pressuposto, qualquer remoção de conteúdos constitui potencial restrição à liberdade de expressão, a qual deve ser plenamente justificável à luz do sistema de direitos fundamentais. Nesse sentido, atribuir a responsabilidade pela remoção imediata do conteúdo reputado ilícito ao PAI, sem prévia decisão judicial, é atribuir ao Provedor a competência para restringir o exercício de um direito fundamental, o que pressupõe a realização de um exame de proporcionalidade em cada caso concreto. Nesse sentido, deve haver um sopesamento da importância da preservação da liberdade de expressão com a proteção a direitos da personalidade e dos valores do Estado democrático, no caso concreto.

Explicitado o delicadíssimo caráter da situação, destaca-se que, para compreender até que ponto deve-se reputar constitucional o artigo 19, é necessário, em síntese, estabelecer até que ponto a realização da aludida ponderação entre direitos fundamentais pode ser atribuída diretamente ao PAI, sem participação do Poder Judiciário. Com relação a notícias falsas, por exemplo, reputo o sistema de notice and take down inconstitucional. Isso pois, atualmente, há eficazes sistemas de fact checking que podem ser adotados pelos PAIs, de modo a estabelecer um sistema de imediata identificação e derrubada de fake news, com grande assertividade. Nessas hipóteses, a minimização do dano à honra e imagem da vítima deve ser priorizada, garantindo-se que o conteúdo permaneça o menor tempo possível no ar. Isso somente é possível pois o juízo acerca do teor falso ou não do conteúdo publicado é de caráter muito mais objetivo, podendo ser exercido pelo PAI com a mesma (ou até mesmo maior) eficiência do que pelo próprio Judiciário. Nessa toada, correta a linha adotada pelo PL das Fake News, o qual prevê o uso de verificações provenientes de verificadores de fatos independentes pelos PAIs (artigo 10, inciso I).

O mesmo se aplica à criação de contas inautênticas, na medida em que, havendo denúncias, inclusive por parte daquele lesado pela criação do perfil, a apuração acerca da veracidade do perfil é também, via de regra, simples. Não se pode exigir, para tais hipóteses, prévia decisão judicial específica, tendo em vista o sopesamento dos danos causados por tal espécie de conteúdo ilícito com a facilidade e assertividade de sua identificação e derrubada. Assim, o modelo do notice and take down é um verdadeiro obstáculo ao combate à desinformação no meio digital, haja vista a dinamicidade e proporção da disseminação de fake news no Brasil.

Mais complexas, entretanto, são as hipóteses de veiculação do denominado “discurso de ódio”. Isso pois, apesar de haver casos em que o conteúdo publicado nitidamente viola direitos da personalidade alheios, há também hipóteses limítrofes, em que a caracterização da ilicitude do discurso torna-se demasiadamente complexa. Muito comuns são, por exemplo, ações judiciais movidas por políticos e demais figuras públicas contra internautas que realizam publicações em tom de crítica à sua pessoa. Cediço que a realização de críticas a uma figura pública, como um parlamentar, é esperada e faz parte do convívio democrático. Há, no entanto, casos em que tais manifestações ultraam o juridicamente itido e am a efetivos ataques a direitos da personalidade.

Afinal, como saber se estamos diante de casos de conteúdo ilícito ou, por exemplo, de meras críticas, lícitas, porém incisivas? Trata-se de análise que somente pode ser realizada no exercício da função jurisdicional, de modo que não pode ser delegada a agentes privados. É dizer, em tais hipóteses, a não adoção do modelo notice and take down inevitavelmente macula a reserva de jurisdição, acabando por transferir ao PAI atribuições tipicamente jurisdicionais. Assim, reputo constitucional o artigo 19 do MCI quanto a conteúdos ilícitos não relativos à disseminação de notícias falsas.

Nesses casos, em um modelo em que não se exija prévia decisão judicial para a remoção do conteúdo, instaurar-se-á um cenário de censura e insegurança no ambiente digital, ao arrepio do direito fundamental à manifestação do pensamento. Isso pois os PAIs, inevitavelmente, temendo posterior responsabilização civil, arão a remover quaisquer conteúdos que gerem algum mínimo grau de dúvida quanto à sua licitude. Ora, a ilicitude de falas e discursos veiculados digitalmente é matéria sobre a qual muitas vezes nem mesmo o próprio Poder Judiciário chega a soluções uniformes e coerentes, o que evidencia a indelegabilidade da tomada de decisão acerca da remoção do conteúdo nesses casos.

A atual conjuntura política, por sua vez, acaba por guiar o presente debate por caminhos perigosos. Isso pois, nos últimos anos, vivenciou-se, no Brasil, um grande crescimento da extrema-direita no meio digital, cujo modus operandi envolve a disseminação massiva de notícias falsas, crimes de ódio e a instigação a discursos e práticas antidemocráticas. Assim, é natural que, nesse contexto, paradoxalmente, aqueles comprometidos com o campo democrático tendam a uma visão mais restritiva quanto à liberdade de expressão nas redes sociais, haja vista a preocupação com a disseminação de tais discursos odiosos, o que acabaria por nos conduzir a um entendimento no sentido da inconstitucionalidade do artigo 19 do MCI.

Entretanto, é importante que o dispositivo seja analisado tecnicamente, deixando-se de lado os “calores políticos”. A proteção da liberdade de expressão é um pressuposto jurídico da democracia, de modo que a remoção de conteúdos deve ser encarada com grande seriedade. O espaço digital tornou-se, no século XXI, o espaço de debate e manifestação política por excelência, sendo essencial ao exercício da cidadania, de modo que restrições ao exercício da liberdade de expressão digital devem ser, na maior medida do possível, encampadas pelo próprio Judiciário, haja vista a reserva de jurisdição e a complexidade do tema dos direitos fundamentais.

Por fim, destaca-se que o presente debate gera também consequências no âmbito eleitoral. A moderação de conteúdo pelos PAI é essencial à lisura do processo eleitoral, o que levou à edição da Resolução 23.732 pelo TSE, que dispõe acerca da propaganda eleitoral. Há disposições de tal Resolução, inclusive, que se coadunam com a tese defendida neste ensaio, destacando-se o artigo 9°-D caput e § 2°, em que se determina que os PAIs devem imediatamente tomar medidas de impedimento ou diminuição da circulação de conteúdos que veiculam fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados que prejudiquem o processo eleitoral.

Ocorre, entretanto, que, em seu artigo 9°-E, o TSE determina, por exemplo, a necessidade de imediata remoção de “discurso de ódio” pelo PAI, o que é contrário ao entendimento exposto neste ensaio e ao próprio tratamento dado à matéria pelo MCI. O período eleitoral, apesar de suas peculiaridades, não é um período em que se ite a relativização de direitos fundamentais, de modo que a tese ora sustentada deve também a ele se aplicar. A determinação do que se caracteriza como “discurso de ódio”, em muitos casos, é fruto de um processo de complexa ponderação de direitos fundamentais, a qual deve ser realizada pelo Poder Judiciário, sob pena de se violar a reserva da jurisdição, o direito fundamental à liberdade de expressão e a garantia fundamental da vedação à censura. Em um autêntico Estado de direito, não se pode transigir quanto à defesa dos direitos fundamentais, de modo que o debate acerca do notice and take down deve ser travado nos mesmos termos, independentemente de se tratar de conteúdo eleitoral ou não.

Ante o exposto, embora a responsabilização dos PAIs seja essencial para conter danos causados pela disseminação de conteúdos ilícitos, o presente ensaio defende que deliberações acerca da restrição a direitos fundamentais devem, na maior medida possível, ser reservadas ao Judiciário. Nesse sentido, reputa-se parcialmente constitucional o artigo 19 do MCI, ressalvadas as hipóteses de fake news, em que deve-se exigir a derrubada sem prévia decisão judicial, pelos motivos já expostos, não devendo, entretanto, ser estabelecidas distinções relativas ao teor eleitoral ou não do conteúdo, como equivocadamente feito pela Resolução do TSE.

_____________________________________

Referências bibliográficas

DA SILVA, Virgílio Afonso. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. Revista de Direito do Estado 4: 23-51. São Paulo, 2006.

AMORIM, Filipo Bruno Silva. A objetivação do controle difuso de constitucionalidade. Revista da AGU, [S. l.], v. 11, n. 34, 2012, p. 114-146.

 


[1] Provedor de Aplicação de Internet (PAI) é um termo que descreve qualquer empresa, organização ou grupo que forneça um conjunto de funcionalidades que podem ser adas por meio de um terminal conectado à internet.

[2] Filipe Bruno Silva Amorim, nesse contexto, entende que o Recurso Extraordinário, ou a ter a função de defender objetivamente a ordem constitucional, abandonando seu caráter de recurso meramente subjetivo, com limitados efeitos inter partes.

[3] Tal modelo alarga o âmbito de proteção dos direitos fundamentais ao máximo, de modo que “qualquer ação, fato, estado ou posição jurídica que, isoladamente considerado, possa ser subsumido no âmbito temático de um direito fundamental, deve ser considerado como por ele prima facie protegido.” (DA SILVA, p. 24).

Autores

  • é estudante do 5° semestre na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, aluno-pesquisador da Sociedade Brasileira de Direito Público (sbdp) e estagiário plantonista do Departamento Jurídico XI de Agosto.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!