Diário de Classe

Por que e como começar a ler H.L.A. Hart

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29 de março de 2025, 8h00

Você já se perguntou o que significa Direito? Ou melhor, qual seria o conceito de Direito? H.L.A. Hart foi alguém que pensou muito sobre isso, e as respostas que haviam sido dadas a sua época não o convenceram e, por isso, ele empreendeu uma mudança paradigmática no entendimento do que era o conceito de Direito.

Herbert Lionel Adolphus Hart (1907-1992), filho de um alfaiate judeu polonês, foi um brilhante aluno de Oxford e, em 1952, foi eleito para a cátedra de Jurisprudence da mesma universidade. Seu trabalho como teórico do Direito marcou uma ruptura na tradição anglo-saxônica ao superar a ideia do Direito como uma mera ordem sustentada por uma sanção, substituindo-a por uma visão normativa. Neil MacCormick [1], em sua biografia intelectual de Hart, afirma que “Se Hart não tivesse chamado a nossa atenção de nenhuma outra forma, ele seria uma figura importante simplesmente por sua contribuição à ideologia da democracia social-liberal”. Ativista social, membro do MI6 durante a segunda guerra e mentor de Ronald Dworkin, Hart se tornou uma figura central na filosofia do direito do século 20. Embora no Brasil Hans Kelsen seja mais difundido, no contexto anglo-saxão Hart tem muito mais proeminência, rivalizando com Kelsen pelo posto de maior positivista do século 20.

Neil Duxbury [2] destaca que, entre 1832, quando John Austin deixou a cátedra de teoria do direito na University College London, e 1952, quando Hart assumiu a cátedra de jurisprudence de Oxford, houve poucos avanços significativos na teoria do direito.

O conceito de Direito

Insatisfeito com as respostas dadas ao que significava o Direito em sua época, Hart começou a se debruçar sobre autores clássicos como Jeremy Bentham e John Austin. Foi inclusive Hart quem organizou e editou muitos de seus escritos [3]. Mas para o professor de Oxford as respostas que estes autores deram sobre o que significava o direito estavam muito defasadas e não expressavam muitas das complexidades do fenômeno jurídico. Por isso que recorrendo a uma abordagem que combinou filosofia da linguagem, antropologia e filosofia analítica Hart escreveu sua grande obra: O conceito de Direito.

Nessa obra canônica da filosofia do Direito, Hart estabeleceu as bases do Positivismo Jurídico contemporâneo, e por mais que esteja sujeita a muitas críticas é uma obra de leitura obrigatória. N’o conceito de Direito Hart reduz a grande questão de “o que é o Direito?” Em três perguntas essenciais, às quais se esforça em responder: 1) O que diferencia o Direito de mera coerção? 2) Quais são as relações, semelhanças e diferenças entre obrigações morais e jurídicas? 3) O que são regras sociais e em que medida o Direito é por elas constituído? Por meio de seu rigor analítico e métodos sociológicos de análise, Hart entende a moral e o Direito como fenômenos distintos, porém relacionados.

Para Hart, o conceito de Direito como sendo uma ou mais regras sustentadas por sanções de uma autoridade reconhecida e obedecida não correspondia e nem representava a complexidade dos sistemas jurídicos contemporâneos como o da Inglaterra onde Hart residia, para Hart essa visão até podia representar a coerção social em sociedades tribais, mas o Direito em sociedade contemporânea era um fenômeno muito mais complexo, era um fenômeno normativo. Se para Austin e Bentham era o soberano quem criava as regras, para Hart, eram as regras que legitimavam o soberano. A partir dessa premissa, ele concebeu o Direito como a união de regras primárias e secundárias. Hart rejeita a visão de Austin, para quem o Direito se baseia exclusivamente na imposição de sanções por um soberano. Para Hart, essa visão é descritivamente errada e problemática, sendo comparável ao caso de um assaltante que diz ao caixa de um banco: “Entregue-me o dinheiro ou atiro”. Para superar essa limitação, Hart propõe uma abordagem baseada na distinção entre regras primárias e secundárias.

As regras primárias são aquelas que impõem deveres e regulam o comportamento dos indivíduos, como normas penais e civis, por exemplo o art. 121 do código penal que institui o crime de homicídio. Tais regras já estão presentes em sociedades tribais, mas quando a sociedade começa a ficar complexa essas regras não bastam, é preciso falar de legitimidade, é preciso falar sobre como mudar as regras, é preciso falar sobre como se reconhece e sobre como se muda uma regra

Já as regras secundárias são aquelas que estabelecem como as regras primárias são reconhecidas, criadas, modificadas e aplicadas, englobando regras de reconhecimento, adjudicação e mudança. No Brasil estas regras estão principalmente em nossa constituição e na legislação processual. Essa estrutura pensada por Hart permitiu uma visão mais sofisticada do Direito como um sistema normativo, e não meramente coercitivo.

Segundo o positivista, inicialmente em sociedades primitivas existem apenas normas primárias, mas com o agravamento de sua complexidade, Hart nos ensina que como parasitas a essas normas primárias começam a surgir essas regras secundárias e por meio de uma simbiose com estes “parasitas” um sistema meramente sancionador a a ser um sistema normativo ou um sistema propriamente jurídico. As normas secundárias especificam como as normas primárias podem ser determinadas, introduzidas, eliminadas e alteradas de forma conclusiva, e como estabelecer conclusivamente o fato de terem sido transgredidas, assim resolvem problemas e estabelecem parâmetros normativos e não meras ameaças sustentadas por sanções, com o estabelecimento de regras secundárias a-se de um sistema de coerção para um sistema propriamente jurídico

Para Hart, o Direito era um conceito normativo que se concretiza na União das regras primárias e secundárias. Ele sustentava que apenas aquilo que asse pelo filtro das regras secundárias de identificação seria de fato considerado Direito e que aquilo que não estivesse em conformidade com as regras secundárias não seria direito de fato. Caso dos princípios, para o Hart que escreveu a primeira versão d’o Conceito de Direito princípios não podiam ser considerados parte do sistema jurídico e tampouco parte do conceito de Direito [4].

Apesar de acreditar ter trazido mais determinação para o conceito de Direito, Hart reconhece a limitação do alcance das leis, afinal de contas um mapa nunca conseguiria representar todo o mundo em seus detalhes, para isso ele usa o seu exemplo dos patins. Onde ele estabelece uma anedota muito ilustrativa: Uma certa lei municipal proíbe veículos no parque, o caso está muito claro no que diz respeito a camionetes, carros e motocicletas, mas e patins? Surge aí a zona de penumbra, surgem aí os hard cases, casos em que a legislação não tem uma resposta adequada e Hart acredita que nestes casos os juízes devem dão uma resposta a partir de sua discricionariedade. Este ponto foi o que suscitou fortes discordâncias em seu aluno Ronald Dworkin (veja aqui: texto introdutório sobre Dworkin) e foi uma das razões de seu general attack ao positivismo jurídico. Hart dedicou muitos de seus últimos anos a rebater Dworkin no que é chamado o debate Hart-Dworkin e que deu origem ao posfácio de Hart, onde ele se vincula a uma versão do que chamou de soft positivism (veja aqui mais sobre o soft positivism).

Se você quer ter uma reposta minimante adequada para o que significa direito, sobre como direito, coerção e moralidade se relacionam e sobre argumentação jurídica Hart é um autor essencial.

Como e por onde começar a ler?

Hart não é o autor mais complexo da teoria do Direito. Seu livro O Conceito de Direito é uma obra clara e como a maioria dos escritos ingleses é marcadamente analítica. Todavia leituras secundárias são fundamentais para a devida compreensão, e eu recomendaria começar por elas:

Indico três leituras secundárias para introdução:

O livro de Gilberto Morbach: Entre o Positivismo e o interpretativismo [5] é extremamente esclarecedor e devo a ele a compreensão de insights importantes sobre Hart e sobre o Positivismo.

O livro de minha autoria: Onde o Direito e a moral se encontram foi pensado e concebido para introduzir temas contemporâneos da Filosofia do Direito e possuí um capítulo inteiro dedicado a Hart.

O verbete: H.L.A. Hart do livro Teoria do Direito de Brian Bix é fantástico e muito esclarecedor [6].

O livro em si também é muito claro, e embora todo o livro seja relevante, alguns capítulos merecem destaque especial:

– Capítulo V: Hart apresenta a distinção entre normas primárias e secundárias, mostrando como a união dessas normas forma a estrutura do sistema jurídico.

– Capítulo VII: Analisa o formalismo e o ceticismo em relação às normas, abordando a textura aberta do Direito, os tipos de ceticismo normativo e as questões sobre a norma de reconhecimento.

– Capítulo VIII: Discute a relação entre Justiça e moral, diferenciando princípios da justiça, a obrigação moral e a obrigação jurídica, e o papel dos ideais morais na crítica social.

– Capítulo IX: Examina a relação entre Direito e moral, abordando o Direito Natural e o Positivismo Jurídico, o conteúdo mínimo do Direito Natural e a validade jurídica em relação aos valores morais.

– Pós-escrito (editado por Joseph Raz): Responde a críticas, especialmente de Dworkin, e esclarece aspectos centrais da separação entre Direito e moral.

Existem duas bibliografias intelectuais de Hart que são materiais da mais alta qualidade, mas considero em um nível de dificuldade superior por submeter as ideias de Hart a críticas e por desenvolve-las até suas últimas consequências:

H.L.A. Hart – A natureza do Direito de Matthew Kramer [7]

H.L.A. Hart de Neil MacCormick [8]

Para uma abordagem mais ampla da história do Positivismo recomendo o Cambridge Companion to Legal Positivism de Torben Spaack e Patricia Mindus[9] e o Verbete Positivismo jurídico do Dicionário de Hermenêutica de Lenio Streck. Um especial destaque ao Livro Interpretando o Conceito de Direito de H.L.A. Hart [10], livro de ensaios coordenado por dois pesquisadores brilhantes: Thomas Bustamante e André Coelho, que também possuem vídeos fantásticos e super didáticos sobre Hart no Youtube.

O legado de Hart

Dworkin só existe como teórico do Direito por causa de Hart. Além de ter sido seu professor e mentor, foi a obra de Hart que forneceu a base sobre a qual Dworkin construiu suas críticas. A noção dworkiniana de que princípios desempenham um papel fundamental no Direito é uma resposta direta à estrutura das regras primárias e secundárias de Hart. Mesmo discordando, Dworkin reconhece a importância do pensamento hartiano e seu impacto na teoria do Direito. O legado de Hart é imenso e no contexto Anglo-saxão é reconhecido por muitos como o grande autor da teoria do Direito.

Hart é uma unanimidade como um grande autor da teoria do Direito e merece ser lido e respeitado. Seu pensamento não apenas reformulou o positivismo jurídico, mas também abriu espaço para os debates que moldam a filosofia do Direito até hoje. Ao estudá-lo, compreendemos melhor não apenas o positivismo, mas também as principais discussões da teoria jurídica contemporânea. Hart tem o mérito de ter desbravado um caminho entre “o inferno do formalismo” e a “arbitrariedade do autoritarismo/realismo”, buscando um caminho intermediário que evitasse tanto a rigidez de um sistema puramente formalista quanto a arbitrariedade de um realismo jurídico descontrolado. Sua abordagem era sociológica, pois visava captar como o Direito operava de fato nas sociedades e qual o significado que ele assumia dentro delas. Por meio de seu descritivismo, Hart tentava compreender o funcionamento dos sistemas jurídicos sem recorrer a premissas normativas ou valorativas externas ao Direito e sua empreitada por mais que não fornece todas as respostas ao Direito é mais do que digna de nota e de conhecimento.

 


[1]MACCORMICK, Neil. H.L.A. Hart. Stanford: Stanford University Press, 2010. p.25

[2] DUXBURY, Neil. English Jurisprudence between Austin and Hart. Virginia Law review, Virgínia, v. 91, n. 01, p. 155-170, 2005.

[3] HART, Herbert Lionel. Ensaios sobre Teoria do Direito e Filosofia. Rio de Janeiro: Elseveier, 2010.

HART, Herbert. “Introduction”. In AUSTIN, John. The province of jurisprudence determined. Indianapolis: Hackett, 1998.

[4] Dworkin faz troça de Hart ao dizer que para Hart princípios não eram considerados parte essencial do sistema jurídico por não terem Pedigree.

[5] MORBACH, Gilberto. Entre o positivismo e o interpretativismo, a terceira via de Waldron. Salvador: Juspodium, 2020.

[6] BIX, Brian. Teoria do Direito. Tradução de Gilberto Morbach. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020.

[7] KRAMER, Matthew. H.L.A. Hart: A Natureza do Direito. Tradução de Gilberto Morbach. Fortaleza: Editora Unichristus, 2021a

[8] MCCORMICK, Neil. H.L.A. Hart. São Paulo: Elsevier editora, 2010.

[9] SPAAC, Torben (Ed.); MINDUS, Patricia (Ed.). The Cambridge Companion to Legal Positivism. Cambridge: Cambridge University Press, 2021.

[10] MATOS, Saulo de; BUSTAMANTE, Thomas; COELHO, André (Org.). Interpretando O Conceito de Direito de H. L. A. Hart: ensaios críticos e analíticos. Curitiba: Editora Conhecimento, 2023.

Autores

  • é mestre (summa cum laude) e doutorando em Direito pela Unisinos, membro do Cambridge Forum for legal and Political Philosophy, membro do Dasein – Núcleo de estudos Hermenêuticos (CNPq) e advogado constitucionalista.

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