Opinião

Auxílio-acidente e PRA: decisões discrepantes diante de teses vinculantes

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30 de março de 2025, 7h03

Há necessidade de prévio requerimento istrativo (PRA) para se postular em Juízo a concessão do auxílio-acidente, previsto no artigo 86 da Lei nº 8.213/1991?  A questão parece simples e a resposta também em vista da tese fixada pelo STF no Tema nº 350, ainda em 2014, quando aquela corte firmou a compreensão de que “a concessão de benefícios previdenciários depende de requerimento do interessado, não se caracterizando ameaça ou lesão a direito antes de sua apreciação e indeferimento pelo INSS, ou se excedido o prazo legal para sua análise” (RE 631.240).

Marcello Casal Jr./Agência Brasil
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Entretanto, em relação ao auxílio-acidente o assunto ainda enseja julgamentos desiguais/conflitantes por causa de outras duas teses: a do Tema nº 862, fixada pelo STJ (o termo inicial do auxílio-acidente deve recair no dia seguinte ao da cessação do auxílio-doença que lhe deu origem, conforme determina o artigo 86, § 2º, da Lei 8.213/91, observando-se a prescrição quinquenal da Súmula 85/STJ), e a do Tema 315 da TNU (a data do início do benefício de auxílio-acidente é o dia seguinte à data da cessação do benefício de auxílio por incapacidade temporária, que lhe deu origem, independentemente de pedido de prorrogação deste ou de pedido específico de concessão do benefício de auxílio-acidente, nos termos do artigo 86, § 2º, da Lei nº 8.213/91, observada a prescrição quinquenal dos valores atrasados).

Vários juízes e colegiados, no âmbito dos Juizados Especiais Federais, invocam essas duas teses para deixar de exigir a prévia postulação istrativa em casos de auxílio-acidente.

Segundo o artigo 86 da Lei nº 8.213/1991, “o auxílio-acidente será concedido, como indenização, ao segurado quando, após consolidação das lesões decorrentes de acidente de qualquer natureza, resultarem sequelas que impliquem redução da capacidade para o trabalho que habitualmente exercia”. Trata-se de benefício que tem “natureza indenizatória e será pago ao segurado quando, após a consolidação das lesões decorrentes de acidente de qualquer natureza, resultarem sequelas definitivas.[1]

Requerimento à Agência da Previdência Social

Se o segurado sofreu um acidente, ficou incapaz e não requereu o benefício por incapacidade laboral, ele pode, ainda assim, depois de consolidada a lesão e entendendo haver sequelas que reduzem sua capacidade laboral, pedir o auxílio-acidente à Agência da Previdência Social (APS), bastando que agende o atendimento pelo telefone 135. Esse requerimento está previsto no artigo 352, § 2º, da IN 128/2022 — benefício de auxílio-acidente não precedido de auxílio por incapacidade temporária. No ado, não havia essa possibilidade de pedir autonomamente o auxílio-acidente na via istrativa, mas hoje isso é plenamente possível. Não tem sentido o cidadão recorrer diretamente ao Judiciário nessa hipótese. Aqui não há controvérsia.

Por outro lado, se o segurado acidentado pediu e recebeu o auxílio-incapacidade — B31 (antigo auxílio-doença) por um período, cabe ao INSS, quando de sua cessação, averiguar se ele faz jus ao auxílio-acidente. Acaso, na perícia médica em que se entendeu pela cessação do benefício por incapacidade laboral, o instituto também concluir pelo descabimento do auxílio-acidente, pode o segurado, inconformado com a negativa do AA, já ingressar em juízo para discutir a existência do direito ao benefício indenizatório. Naturalmente, nessa situação também não há necessidade de prévio requerimento istrativo para a concessão do AA, pois o segurado já tem uma negativa da autarquia federal. Essa segunda situação não enseja polêmica.

Todavia — e aqui está o ponto que tem acarretado celeuma — , se o segurado, em função do acidente, recebeu auxílio-incapacidade (B31) por um período, tendo o INSS estabelecido a alta programada[2], surge um cenário que impacta na configuração do interesse processual. Se, fixada a alta programada, o segurado não pedir a prorrogação de tal benefício por incapacidade laboral, a agência da Previdência Social não terá nova oportunidade para reavaliar o cidadão e verificar se, ante a consolidação da lesão, houve redução da capacidade laborativa para o ofício habitual, o que pode dar ensejo ao AA.

Ingressar em juízo ou agendar atendimento no INSS?

Então, se foi concedido auxílio-incapacidade, depois cessado a partir da alta programada (não tendo o segurado pedido prorrogação do AI), a verdade é que não existiu uma nova perícia para se avaliar o (des)cabimento do AA. Nessa situação, cumpre indagar: o segurado que entende ter direito ao benefício indenizatório já deve ingressar em juízo ou deve agendar um atendimento para que o INSS verifique e decida se terá direito ao AA?

Spacca

Ora, a resposta parece óbvia à luz da tese do Tema nº 350 da Corte Suprema. Aliás, atualmente, milhões de trabalhadores, após cessado o AI a partir da alta programada, agendam atendimento na APS exatamente a fim de pedir a concessão do AA. Outra parcela de cidadãos que gozou do AI cessado por alta programada procura um advogado ou um defensor público.

Alguns desses profissionais orientam o agendamento antes referido, mas um bom número já opta por postular diretamente ao Poder Judiciário sem que o INSS tenha avaliado o cabimento do AA.  Parte dos juízes, corretamente, não aceita essa postulação direta em juízo, mas outra parte a aceita por acreditar que o STJ, na tese do Tema nº 862, abriu exceção e dispensou para esse caso o PRA.  Contudo, as referidas teses, do STJ e da TNU, versam sobre a data de início do benefício (DIB), e não sobre o interesse processual do segurado da Previdência Social.

Prorrogação do auxílio-incapacidade ou pedido de auxílio-acidente

Antes da instituição da alta programada, sim, de fato, não tinha mesmo sentido exigir a prévia postulação istrativa, pois havia uma perícia própria para o INSS avaliar a persistência do quadro incapacitante ou sua cessação e também para averiguar a redução, ou não, da capacidade laboral do segurado após a consolidação das lesões, cumprindo à autarquia federal implantar o referido benefício nessa última hipótese. Entretanto, com a instituição da alta programada, que se tornou regra na esfera istrativa, cabe ao segurado pedir a prorrogação do auxílio-incapacidade, se entende que continua incapaz, ou pedir a concessão do auxílio-acidente, se considera que, consolidadas as lesões, houve redução da capacidade laborativa.[3] E, vindo a deferir este último pleito, o INSS deverá fixar a DIB no dia seguinte à cessação do auxílio-incapacidade, conforme disposto no, expressamente, artigo 86, § 2º, da Lei 8.213/91 e definido nas teses dos Temas 862 do STJ e 315 da TNU, acima transcritas.

A fim de confirmar que é possível a formulação de pleito istrativo autônomo de concessão de auxílio-acidente, nos autos de nº 1003882-33.2023.4.06.3818, converti o julgamento em diligência e oficiei à Gerência Executiva do INSS em Uberlândia-MG, tendo sido esclarecido o seguinte: “(…) informamos que os requerimentos de auxílio-acidente são realizados de forma autônoma desde maio de 2016.” Em agosto último, por exemplo, foram protocolados 61 (sessenta e um) pedidos dessa espécie em Uberlândia-MG”. As solicitações devem ser realizadas pelo telefone 135. Ainda, o próprio advogado pode formular o pedido pelo Serviço de Requerimento Externo (novorequerimento.inss.gov.br), se a OAB, como em Minas Gerais, celebrar um acordo de cooperação técnica com o INSS.

Para afastar qualquer dúvida dúvida quanto à DIB do benefício, oficiei novamente ao aludido órgão indagando sobre o cumprimento do disposto no artigo 86, § 2º, da Lei 8.213/91, tendo recebido a seguinte resposta:

“O auxílio-acidente poderá ser sugerido pelo médico perito no ato da perícia médica em que cessa o benefício do auxílio-incapacidade ou, nos casos que há a cessação do benefício por data programada, o segurado poderá requerer o benefício de auxílio-acidente independente de estar em gozo de auxílio por incapacidade temporária através do portal de atendimento 135. Se após avaliação pericial, for constatado o direito ao auxílio-acidente e confirmado que é precedido de um benefício anterior, a DIB será fixada no dia seguinte à cessação do B31 ou na DER se houver ocorrido a decadência decenal entre a cessação do benefício precedido e a DER do auxílio-acidente. Caso a concessão do auxílio-acidente não seja precedido de benefício por incapacidade a DIB será fixada na DER. Para todos os casos, devemos respeitar para a Data do Início do Pagamento o prazo quinquenal de prescrição do recebimento”

Nesse cenário, fica evidente que, na terceira situação aqui debatida, faltará à parte autora o interesse de agir se ela recorrer diretamente ao Judiciário. O artigo 17 do Código de Processo Civil dispõe que “para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade”. Para Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, “existe interesse processual quando a parte tem necessidade de ir a juízo para alcançar a tutela pretendida e, ainda, quando essa tutela jurisdicional pode trazer-lhe alguma utilidade do ponto de vista prático. Verifica-se o interesse processual quando o direito tiver sido ameaçado ou efetivamente violado (v.g., pelo inadimplemento da prestação e resistência do réu à pretensão do autor)”.[4]

Sobreutilização do Judiciário

O Poder Judiciário não pode simplesmente substituir as instituições públicas e privadas. Já de início, numa demanda, deve haver real pretensão resistida. O interesse processual é uma das condições da ação, necessitando estar presente quando a demanda é proposta. Não se pode aceitar a busca dispensável do Judiciário sem reconhecer que há muito ele está sobrecarregado de casos e que seu estoque é crescente, gigantesco.

Seguir nesse rumo “é acelerar e incentivar a sobreutilização do Judiciário, o qual já não dá conta da demanda hoje.”[5] Não cabe ao Judiciário, sob a alegação de violação ao princípio constitucional do amplo o à jurisdição (artigo 5º, XXXV, da CF/1988), antepor-se às demais instituições. Essa linha de pensamento não é razoável, econômica nem eficiente. Não se pode alimentar o círculo vicioso do aumento da demanda judicial. A implementação da alta programada é um fato muito relevante que precisa ser tomado em conta, já que enseja a necessidade de o segurado retornar ao INSS para pedir o AA. Do contrário, haverá ofensa à diretriz vinculante fixada pelo STF no Tema nº 350.

Enfim, esses breves apontamentos tiveram o intento de chamar a atenção para o assunto. É curioso o fato de terem sido fixadas teses vinculantes para dirimir conflitos, assegurar direitos na forma da lei e induzir o cumprimento do papel reservado a cada instituição, mas um bom número de magistrados ainda está interpretando duas delas de uma maneira que contraria o precedente mais importante, firmado pelo STF, estimulando, desnecessariamente, a judicialização de pedidos de AA. Decisões discrepantes não se coadunam com o sistema de precedentes, pensado exatamente para gerar igualdade, previsibilidade e estabilidade jurídicas, assim como logicidade e coerência na aplicação da lei[6], propósito até aqui não alcançado em relação à matéria em exame.


[1] AGUIAR, Leonardo. Direito Previdenciário: curso completo. Juiz de Fora: iLM, 2017. p. 381.

[2] A alta programada ou cobertura previdenciária estimada – COPES consiste na possibilidade de o INSS “estabelecer, mediante avaliação médico-pericial, o prazo que entender suficiente para a recuperação da capacidade para o trabalho do segurado” (AMADO, Frederico. Curso de Direito e Processo Previdenciário. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 922). Esse instituto foi positivado, no art. 60 da Lei n.8.213/1991, mediante a conversão de uma medida provisória na Lei n. 13.457/2017.

[3] Carlos Maximiliano, a partir de lição de Dumoulin, alertava para o fato de que “pequena diferença no fato induz grande diferença de direito” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 149)

[4] NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado. 17 ed. São Paulo: RT, 2018, p. 1119

[5] GICO JR., Ivo Teixeira. A Tragédia do Judiciário. Revista de Direito istrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 178, set/dez 2014

[6] MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o Direito Processual Civil. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 126-160.

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