Opinião

O Habeas Corpus e os recursos de natureza extraordinária

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  • é advogado mestre e doutor em Direito Penal pela USP professor de Processo Penal na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca conselheiro federal da OAB e ex-presidente do IBCCrim.

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11 de abril de 2022, 6h00

Lenio Streck brindou-nos com um instigante artigo, publicado na última sexta-feira (8/4) aqui na ConJur, sobre o não cabimento do recurso especial nos casos de Habeas Corpus concedidos pelos tribunais.

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O argumento central do respeitado articulista é o de que sendo um instrumento exclusivo da defesa e havendo unicamente previsão para o cabimento do recurso ordinário constitucional nos casos de denegação da ordem, é descabido o manejo dos recursos especial e extraordinário nesses casos. Como argumento de reforço, lembra o decidido monocraticamente pela ministra Laurita Vaz ao initir o RE no HC nº 305.141, pois interposto pelo assistente do Ministério Público.

Começo pelo decidido pela ministra na antiga condição de vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ali o cerne da questão não era o descabimento do RE em si, mas unicamente a impossibilidade de o AMP manejá-lo, pois não há espaço para sua atuação no âmbito do writ, situação, aliás, lembrada por Lenio ao referir a Súmula 208 do STF.

Mesmo a referência a que o MP atua nesse caso como custos legis (fiscal da lei) não lhe retira a possibilidade de interpor o apelo raro nos casos em que entender ter havido ofensa à lei ou à Constituição como, aliás, comum e corretamente se tem itido.

Nessa linha, veja-se que até mesmo o querelante pode intervir no Habeas Corpus nos casos em que se discute o trancamento da ação penal privada e recorrer extraordinariamente. O STF atribuiu repercussão geral ao tema:

Os querelantes têm legitimidade e interesse para intervir em ação de habeas corpus buscando o trancamento da ação penal privada e recorrer da decisão que concede a ordem. (…) 9. Recurso extraordinário provido, por maioria, para reformar o acórdão recorrido e denegar a ordem de habeas corpus, a fim de que a ação penal privada prossiga, em seus ulteriores termos. (ARE 859.251 RG, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 16/04/2015, RG – Mérito; DJe 21/05/2015).

Hoje, com a ampliação das possibilidades do Habeas Corpus, viabilizando-se a sua modalidade coletiva, tem-se itido a intervenção do amicus curiae no seu julgamento. Para exemplificar, vide o HC nº 141.478 no qual se discutia se o advogado pode ser considerado obstrutor da justiça por combinar versão de seu cliente com colega que assiste corréu na mesma ação. O ministro Gilmar Mendes itiu o IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa Marcio Thomaz Bastos) como amicus curiae.

Mais recentemente, o mesmo relator, no HC nº 185.913, onde se discute o caráter retroativo do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), também itiu a intervenção do amicus curiae, dado o nítido caráter geral e não apenas subjetivo da discussão.

Por aí já se vê que os temas versados nos Habeas Corpus são mais amplos que a liberdade diretamente atingida e, por isso mesmo, comportam discussões que podem envolver direitos fundamentais da vítima, ou que afetem a sociedade como um todo. Assim, não podem ficar "calados" se decididos contra a lei ou contra a Constituição, ainda que proferidos em Habeas Corpus.

Imagine-se, por hipótese, a concessão da ordem para trancar a ação penal por conta do acolhimento da legítima defesa da honra. Os tribunais superiores não podem ficar privados de conhecer essa e outras matérias quando ofensivas à lei e, muito menos, a parte de agitá-las para fazer valer o seu direito. Isso é corolário indefectível do contraditório e representa a atuação democrática do sistema de justiça.

Se as regras estão dadas "e não precisam de outdoor", como alertou Lenio, a letra da Constituição é clara ao itir o cabimento do Extraordinário quando a decisão, qualquer que seja ela, contrariar a Constituição (artigo 102, III) e do Especial quando o acórdão do Tribunal contrariar a lei (artigo 105, III). Se ao regular o writ no P o legislador de 1941 não previu o cabimento dos apelos raros nos casos de denegação da ordem pelos tribunais, é porque a matéria vinha tratada anteriormente, em outro capítulo (cf. artigo 632 e seguintes do código já revogado nessa parte). Ou será que era preciso o legislador ter dito que a jabuticaba dá no pé da jabuticabeira? O direito, dizia Eros Grau, não se interpreta por tiras. O contexto normativo é um só. É de Bobbio a antiga lição de que o ordenamento jurídico não é um amontoado de normas sem relações particulares entre si (Teoria dell’ordinamento giuridico, Torino, ed. Giappichelli, 1960, p. 3).

O sistema processual não retira da parte o direito de hostilizar o julgado que contrarie a lei pelo fato de a decisão ter sido proferida em Habeas Corpus. A circunstância de este remédio ser instrumento exclusivo da defesa não se compraz com o arbítrio, isto é, com decisões contrárias à Constituição e à lei.

Por fim, retoricamente falando, é até bonito lembrar que a lei inglesa do HC, de 1679, (Habeas Corpus Act) pensou "nos casos em que se precisava 'trazer o corpo' e não no que fazer nos casos em que, trazido o corpo, o juiz errou". "Por isso 'habeas corpus'. A palavra 'corpus' faz todo o sentido" (Lenio). Mas precisávamos combinar com os russos porque no Brasil de hoje, além de o ordenamento ser outro e o habeas ter maiores possibilidades de alcance, na Inglaterra de então, o mesmo Act ressalvava os casos de traição ou felonia do cabimento do habeas. Enfim, se não se trata mais de "trazer o corpo", pois para isso temos as audiências de custódia, melhor é viver sob um sistema judicial que não extirpe o direito de as partes, ainda que pela via excepcional dos apelos raros, poderem questionar ofensas que reputam ocorridas.

Autores

  • é advogado criminalista, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, professor de Processo Penal da Faap, conselheiro federal da OAB, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e autor do livro "Habeas Corpus e o controle do devido processo legal: questões controvertidas e de processamento do writ".

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