Opinião

Empresas estatais e prerrogativas de Fazenda Pública na Justiça do Trabalho

Autor

  • é doutor em Direito pela UFPA (Universidade Federal do Pará) mestre em Direitos Fundamentais pela Unama (PA) especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Ucam (RJ) e em Gestão de Serviços Públicos pela Unama (PA).

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9 de agosto de 2024, 18h31

O Supremo Tribunal Federal há muito definiu que empresas estatais — em exceção à regra de sujeição ao regime jurídico de direito privado — podem gozar de prerrogativas próprias da Fazenda Pública (prazos processuais diferenciados, impenhorabilidade de bens afetados à prestação do serviço público, submissão ao regime de precatórios ou, se for o caso, com pagamento mediante requisição de pequeno valor, e a incidência de imunidade tributária recíproca), a exemplo da ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos) [1], da Infraero (Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária) [2] e de companhias estaduais de saneamento básico [3].

Porém, observam-se juízes e juízas do trabalho, não concedendo as prerrogativas próprias da Fazenda Pública a determinadas empresas estatais sob o fundamento de que não há precedente “específico” sobre aquela tal empresa estatal específica.

Ou seja: se é a Infraero, sim, há precedente “específico”, então se concedam as prerrogativas; mas se é a CDP — Companhia Docas do Pará, por exemplo, não há precedente “específico”, então não se concedam a ela as prerrogativas. Porém, tais entendimentos estão em desacordo com a iterativa, atual e notória jurisprudência do STF, porque a Suprema Corte já julgou tal questão em definitivo, em abstrato, listando requisitos genéricos aplicáveis a qualquer empresa estatal. Vejamos.

Exploração direta da atividade econômica

O artigo 173, caput, da Constituição afirma que, ressalvados os casos previstos na própria Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

Definindo o sentido e o alcance desta norma-regra, há pelo menos 20 anos, o STF foi explícito em definir que o caput citado é específico, exclusivo e à hipótese em que o Estado esteja na condição de agente empresarial, ou seja, explore diretamente atividade econômica, em concorrência com a iniciativa privada.

E qual a consequência disto?

O que disse, expressamente, o STF: que os parágrafos do artigo 173 somente se aplicam a casos de exploração da atividade econômica, quando não houver concorrência (“monopólio”, no dizer do artigo 177 da Constituição); nesses casos, afasta-se a aplicação do artigo 173 e seus parágrafos [[4]].

Spacca

Isso porque — e aqui o STF reproduz uma obviedade —, na forma da Lei Complementar nº 95, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação de leis, conforme determina o parágrafo único do artigo 59 da Constituição da República, as disposições normativas devem ser redigidas com clareza, precisão e ordem lógica e, para o propósito desta última, os parágrafos devem expressar os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida.

No caso do artigo 173, os parágrafos introduzem aspectos complementares à regra enunciada no caput.

Empresas estatais prestadoras de serviço público

 Tendo isso em mente, veja-se que o artigo 173, § 1º, da Constituição afirma que a lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços.

Definindo o sentido e o alcance desta norma-regra, e distinguindo empresas estatais prestadoras de serviço público de empresas estatais que desenvolvem atividade econômica em sentido estrito, o STF firmou o entendimento — mais uma vez — de que o artigo 173, § 1º, da Constituição não se aplica a empresas públicas, sociedades de economia mista e entidades (estatais) que prestam serviço público [5].

Conclui-se, portanto, que, conforme iterativa, atual e notória jurisprudência do STF, o artigo 173, § 1º, II, da Constituição não sujeita sociedades de economia mista e entidades (estatais) que prestam serviço público ao regime jurídico próprio das empresas privadas, em nenhum dos seus aspectos (direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários).

Fixação pelo STF de requisitos em abstrato

Feita tal incursão na jurisprudência há muito consolidada, chegamos à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 896 [6].

Nela, o plenário do STF, à unanimidade, foi expresso em dizer ser firme a sua jurisprudência no sentido de que toda e qualquer empresa pública e sociedade de economia mista se submete ao regime constitucional dos precatórios (e, portanto, às prerrogativas da Fazenda Pública), bastando que se preencham, tão somente, três requisitos (cumulativos):

Primeiro, que sejam prestados, exclusivamente, serviços públicos de caráter essencial.

Segundo, que se trate de prestação de serviços públicos em regime não concorrencial.

Terceiro, que a pessoa jurídica não tenha a finalidade primária de distribuir lucros (ou, nas palavras da ministra Rosa Weber, “o Estado quando atua na condição de empresário”).

Caso CDP

Leandro Santana/Docas do Pará

Para concluir — a demonstrar a incompreensão da Justiça do Trabalho, quanto aos precedentes do STF — tomemos, exemplificadamente, o caso da CDP — Companhia Docas do Pará, que animou a produção deste artigo. Há decisões de juízes e juízas do trabalho no sentido de não conceder à CDP as prerrogativas da Fazenda Pública, sob o fundamento de que inexiste precedente específico. E não há. Mas há a ADPF nº 896.

A CDP é a empresa que istra os portos do estado do Pará. Atualmente, ostenta a natureza jurídica de empresa pública, vinculada ao Ministério de Portos e Aeroportos.

O artigo 21, XII, ‘f’, da Constituição é expresso em competir à União a exploração direta (ou mediante autorização, concessão ou permissão) dos portos, marítimos, fluviais e lacustres.

E, neste sentido, ao decidir o sentido e alcance do artigo 21, XII, ‘f’, o STF entende que:

  • a exploração dos portos marítimos, fluviais e lacustres caracteriza-se como serviço público [7];
  • o porto é área de domínio público da União, e se encontra tão somente sob custódia da empresa pública ou da sociedade de economia mista, em razão de autorização, concessão ou permissão, e que por essa razão, inclusive, não incide IPTU sobre a área do porto, por se tratar de bem e serviço (ambos) de competência atribuída ao poder público, na forma dos artigos 21, XII, ‘f’, e 150, VI, da Constituição [8];
  • compete à União, e somente a ela, portanto em regime de monopólio, explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os portos marítimos, fluviais e lacustres, restando caracterizada a natureza pública do serviço de docas [9].

É de se destacar, inclusive, que um dos precedentes acima — o Recurso Extraordinário nº 172.816, julgado há mais de 30 anos — tratou da Companhia Docas do Rio de Janeiro (PortosRio), à época uma sociedade de economia mista.

Naquela assentada, o STF decidiu, com relação à PortosRio, que “a norma do artigo 173, parágrafo 1, da Constituição aplica-se as entidades públicas que exercem atividade econômica em regime de concorrência, não tendo aplicação às sociedades de economia mista ou empresas públicas que, embora exercendo atividade econômica, gozam de exclusividade. O dispositivo constitucional não alcança, com maior razão, sociedade de economia mista federal que explora serviço público, reservado à União”.

Da incompreensão à compreensão

A fim de respeitar e obedecer aos precedentes que regem a matéria, é necessário à Justiça do Trabalho compreender que, para a análise da concessão das prerrogativas da Fazenda Pública a empresas públicas e sociedades de economia mista, é irrelevante perquirir se há decisão “específica” com relação à pessoa jurídica do caso em julgamento, e sim perquirir se tal pessoa jurídica preenche, concretamente, os três requisitos (cumulativos) estabelecidos na ADPF nº 896.

 


[1] RE 220906, Relator(a): MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 16-11-2000, DJ 14-11-2002 PP-00015 EMENT VOL-02091-03 PP-00430.

[2] ARE 987398 AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 28-10-2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-246 DIVULG 18-11-2016 PUBLIC 21-11-2016.

[3] ACO 2730 AgR, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 24-03-2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-066 DIVULG 31-03-2017 PUBLIC 03-04-2017. ACO 1460 AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 07-10-2015, DJe-249 DIVULG 10-12-2015 PUBLIC 11-12-2015.

[4] RE 407099, Relator(a): CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 22-06-2004, DJ 06-08-2004 PP-00029 EMENT VOL-02158-08 PP-01543 RJADCOAS v. 61, 2005, p. 55-60 LEXSTF v. 27, n. 314, 2005, p. 286-297.

[5] ADI 1642, Relator(a): EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 03-04-2008, DJe-177 DIVULG 18-09-2008 PUBLIC 19-09-2008 EMENT VOL-02333-01 PP-00001 RTJ VOL-00207-01 PP-00194. ARE 689588 AgR, Relator(a): LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 27-11-2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-028 DIVULG 08-02-2013 PUBLIC 13-02-2013.

[6] ADPF 896 MC, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 18-04-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 24-04-2023 PUBLIC 25-04-2023.

[7] RE 253472, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 25-08-2010, DJe-020 DIVULG 31-01-2011 PUBLIC 01-02-2011 EMENT VOL-02454-04 PP-00803 RTJ VOL-00219-01 PP-00558. RE 458.164 AgR, Relator(a): CELSO DE MELLO, 2ª Turma, julgado em 21-06-2011, DJE nº 161 de 23-08-2011.

[8] AI 458856 AgR, Relator(a): EROS GRAU, Primeira Turma, julgado em 05-10-2004, DJ 20-04-2007 PP-00089 EMENT VOL-02272-08 PP-01507 RT v. 96, n. 863, 2007, p. 152-155 RDDT n. 142, 2007, p. 225 LEXSTF v. 29, n. 346, 2007, p. 191-197.

[9] RE 172816, Relator(a): PAULO BROSSARD, Tribunal Pleno, julgado em 09-02-1994, DJ 13-05-1994 PP-11365 EMENT VOL-01744-07 PP-01374. RE 253472, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 25-08-2010, DJe-020 DIVULG 31-01-2011 PUBLIC 01-02-2011 EMENT VOL-02454-04 PP-00803 RTJ VOL-00219-01 PP-00558.

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