Opinião

Lei Paulista nº 17.972/2024 e ADI nº 7.704: dignidade de cães e gatos

Autores

  • é juiz federal em Curitiba professor da Faculdade de Direito da UFPR nos cursos de graduação mestrado e doutorado professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB doutor e mestre em Direito pela UFPR pós-doutorado em Direito pela UFBA e coordenador do Zoopolis - Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR.

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  • é professor do curso de especialização em Medicina Veterinária Legal da Faculdade Qualittas professor do curso de Pós-Graduação em Direito Animal e Aplicações Jurídicas da Sociedade Paulista de Medicina Veterinária (SPMV) professor do curso de Pós-Graduação em Direito Animal e Prática Jus Animalista da Escola Superior de Ecologia Integral Justiça e Paz Social (EJUSP) doutorando em Direito Animal pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) mestre em Direito Animal pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) pós-graduado em Meio Ambiente e Sociedade pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e sócio de Bruno Boris Advogados.

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29 de setembro de 2024, 6h36

A Lei nº 11.977, de 25 de agosto de 2005 [1], instituiu no estado de São Paulo, de forma bastante vanguardista, o Código de Proteção aos Animais, mas enfrentou desde logo a resistência da federação da agricultura do estado, que ajuizou ação direta de inconstitucionalidade, tombada sob o nº 9028836-54.2005.8.26.0000, contra vários dispositivos — especialmente os que tratavam da proteção de animais explorados economicamente —, os quais acabaram sendo suspensos por medida cautelar deferida pelo presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 2005.

Atualmente os autos encontram-se suspensos, sem julgamento de mérito [2], ante a pendência da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.595, no Supremo Tribunal Federal, proposta na mesma época e impugnando a mesma lei, sem qualquer decisão monocrática ou colegiada até o momento [3].

Não obstante, São Paulo aprovou a Lei 17.972, de 10 de julho de 2024 [4], criando um regime jurídico mais rigoroso para a criação de cães e gatos com fins econômicos, bem como para a comercialização de indivíduos, com diversas limitações (artigos 4º a 10).

Nessa última lei — que poderia ser considerada contingencialmente animalista, dado que estabelece requisitos mais severos para as atividades econômicas envolvendo cães e gatos, atuando como contramarcha dessas atividades —, foram incluídos alguns dispositivos tipicamente de direito animal.

Na linha inaugurada por Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Goiás, a nova lei paulista reconhece o direito à vida de animais domésticos, declarando cães e gatos como seres sencientes, ou seja, capazes de sentir prazer, dor, divertimento, sofrimento, satisfação e frustração [5].

Fundamental lembrar que, para além da senciência, a “Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos”, de 2012, consolidou o entendimento científico que muitas espécies animais, incluindo cães e gatos, têm consciência [6].

Agora, em 2024, a “Declaração de Nova York sobre a Consciência Animal” [7] ratificou a Declaração de Cambridge, enfatizou as implicações éticas da consciência animal e ampliou os grupos animais dotados de estados de consciência [8].

O artigo 3º da nova lei paulista é bastante claro nesse sentido:

Art. 3º A proteção, a saúde e o bem-estar de cães e gatos domésticos têm por fundamentos:
I – a proteção e o direito à vida dos animais domésticos;
II – os princípios do bem-estar animal e da saúde única;
III – a proteção e o equilíbrio do meio ambiente;
IV – o reconhecimento dos cães e gatos como seres sencientes dotados de natureza biológica e emocional, íveis de sofrimento;
V – o controle populacional dessas espécies;
VI – o estímulo à criação ética e à posse responsável de cães e gatos.

Direito à vida para os animais domésticos

É muito importante a atribuição do direito à vida para os animais domésticos, especialmente para cães e gatos, porque isso reforça a capacidade jurídica plena dessas espécies animais [9]. A garantia do direito à vida é apenas a porta de entrada de uma série de direitos subjetivos que esses animais possuem, com base em outras fontes normativas.

Outros dispositivos dessa mesma lei que evidenciam esses importantes aspectos, quais sejam, o reconhecimento da senciência animal e de direitos subjetivos de cães e gatos,  como é o caso dos artigos 9º e 10º:

Artigo 9° Fica proibida a distribuição de cães e gatos a título de brinde, promoção, sorteio de rifas e bingos em todo o Estado.
Artigo 10. Fica vedada a exposição de cães e gatos em eventos de rua ou quaisquer espaços públicos, para fins de comercialização.

A distribuição de cães e gatos como brindes constitui prática que viola o princípio jurídico da dignidade animal, extraído do artigo 225, §1º, VII, da Constituição, uma vez que trata esses animais como coisas, motivo pelo qual tal prática tem sido contestada nos últimos anos por meio de ações judiciais.

Muito embora trate-se de lei que regulamenta atividade econômica que utiliza esses animais como coisas — pois regulamenta a compra e venda desses seres vivos —, não deixam de ser importantes, como contramarcha, o reconhecimento expresso de direitos dessas espécies e a imposição de limites à respectiva atividade econômica.

O transcrito artigo 10º, certamente influenciado pelo ocorrido em Porto Alegre (RS), no início desse ano de 2024, quando vários animais foram deixados presos em um petshop, dentro de um shopping center na capital gaúcha, e morreram afogados com as enchentes que assolaram aquele estado. [10]

Reação de organizações à lei

A Lei 17.972/2024, no entanto, sofreu, quase de imediato, reação por parte das organizações de criadores de cães e gatos, as quais ajuizaram, perante o Supremo Tribunal Federal, a ação direta de inconstitucionalidade nº 7.704 [11], distribuída à relatoria do ministro Flávio Dino, requerendo a declaração de inconstitucionalidade da lei pelos seguintes fundamentos, em apertada síntese:

  • (1) vício de competência legislativa, dado que seria exclusividade da União legislar sobre “bem-estar animal”;
  • (2) vícios materiais pontuais em alguns dispositivos que tratam da castração compulsória desses animais e que não estabelecem um prazo mínimo razoável para o início da fiscalização dos deveres impostos pela lei.

Em decisão monocrática, datada de 22 de agosto de 2024, o ministro Flávio Dino concedeu, em parte, medida cautelar na ação para suspender a eficácia dos dispositivos que impunham a esterilização cirúrgica obrigatória de cães e gatos (artigos 4º, VIII; 5º, VI; 6º, III e 8º, II), além de determinar ao Poder Executivo do estado de São Paulo que “estabeleça prazo razoável para que os canis e gatis se adaptem às novas obrigações, em respeito ao princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança. Somente após o decurso desse prazo, poderão ter início as ações de fiscalização e de execução das demais obrigações previstas na lei”.

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A decisão do ministro Flávio Dino, ao contrário do que procedeu a petição inicial da ação direta, utilizou-se de farto acervo normativo e doutrinário de direito animal, citando, expressamente, artigos da Revista Brasileira de Direito Animal e manifestações de importantes professores de direito animal, como Heron Gordilho e Tagore Trajano, e de direito ambiental constitucional, como Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer.

Para suspender os dispositivos da lei paulista que tratavam da esterilização cirúrgica compulsória de cães e gatos, o ministro utilizou fundamentos para afirmar que animais têm dignidade própria que merece ser protegida. Em nenhum momento da decisão fala-se nos animais como propriedade ou como bens semoventes, nem se fala em “função social dos animais”.

Bem-estar dos animais

Embora seja fundamental a discussão sobre o controle populacional de cães e gatos no Brasil, cuja política foi estabelecida pela Lei nº 13.426, de 30 de março de 2017 [12], é importante que tal controle seja feito de modo a não afetar a saúde e o bem-estar dos animais e é isso que a decisão do ministro Flávio Dino garantiu, baseado em trabalhos e estudos científicos sobre o tema.

Destacam-se os seguintes fundamentos:

Observo que a lei estadual estabelece que os canis e gatis, que realizam atividade econômica de criação, devem castrar todos os cães e gatos antes dos 4 (quatro) meses de idade. Ocorre que estudos científicos demonstram que a castração precoce, generalizada e indiscriminada de cães e gatos, sem considerar suas características individuais, põe em risco a saúde e a integridade física desses animais, uma vez que aumenta significativamente os riscos de má formação fisiológica e morfológica, além de doenças que prejudicam as presentes e comprometem as futuras gerações dos cães e gatos.
Em estudo publicado na revista Frontiers in Veterinary Science, foram analisados os efeitos da castração precoce em mais de 35 (trinta e cinco) raças de cães. Foi comprovado que a castração precoce pode aumentar significativamente os riscos de displasia, problemas nas articulações, cânceres e incontinência urinária dos cães e que o momento adequado à realização do procedimento varia de acordo com cada raça.
[…]
No caso em análise, a alteração compulsória, indiscriminada e artificial da morfologia dos cães e gatos, sem considerar suas características e situações específicas, viola a dignidade desses animais.

O reconhecimento da dignidade animal pelo STF, reiterado na decisão em comento, é de suma importância para a consolidação do direito animal, que tem como um dos princípios fundantes o princípio da dignidade animal, já referido, como corolário da senciência animal reconhecida pelo artigo 225, § 1º, inciso VII, da Constituição [13].

Vale a pena destacar mais alguns trechos da aludida decisão:

Há cada vez mais um consenso filosófico, social, cultural e jurídico de que cães e gatos devem ser reconhecidos como seres vivos sensíveis.
Conforme observado pela eminente ministra Rosa Weber, em voto proferido na ADI 4983, “O atual estágio evolutivo da humanidade impõe o reconhecimento de que há dignidade para além da pessoa humana, de modo que se faz presente a tarefa de acolhimento e introjeção da dimensão ecológica ao Estado de Direito”.
Na mesma linha, o Superior Tribunal de Justiça avançou a respeito do tema ao reconhecer a dimensão ecológica do princípio da dignidade (Resp 1.797.175-SP), em que aponta a necessidade de repensar o conceito kantiano de dignidade humana para que esta também se aplique a outros seres vivos.
Sobre o tema, Ingo Sarlet observa que “deve-se reformular o conceito de dignidade, objetivando o reconhecimento de um fim em si mesmo, ou seja, de um valor intrínseco conferido aos seres sensitivos não humanos, que ariam a ter reconhecido o status moral e dividir com o ser humano a mesma comunidade moral”. Por sua vez, o Ministro Roberto Barroso ensina que “há uma percepção crescente (…) de que a posição especial da humanidade não autoriza arrogância e indiferença frente à natureza em geral, incluindo os animais não racionais, que têm seu próprio tipo de dignidade”.
A respeito das normas jurídicas sobre o tema, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, da Unesco, prevê que “todos os animais nascem iguais diante da vida, e têm o mesmo direito à existência” (art. 1º). Já a Constituição Federal veda a crueldade aos animais e prevê o dever de proteção da flora (art. 225, §1º, VII), o que revela que o constituinte não adotou uma visão puramente antropocêntrica do meio ambiente: […].
Ao se preocupar com outras formas de vida não humanas, a Constituição incorporou uma visão mitigada do antropocentrismo, de modo a reconhecer que seres não humanos podem ter valor e dignidade. À luz do texto constitucional, a dignidade não é um atributo exclusivo do ser humano.
Todas as práticas que comprometam a função ecológica ou que coloquem em risco a extinção de alguma espécie animal são vedadas pela Constituição. Por isso, o cuidado aos animais deve observar os princípios bioéticos de modo a não causar danos à existência animal. Da mesma forma, também são proibidas as práticas que prejudiquem o bem-estar animal, que é “o estado mental e físico positivo relacionado à satisfação das necessidades fisiológicas e comportamentais do animal, bem como suas expectativas.”

Como se pode ver, essa decisão nos enche de esperanças sobre o futuro da jurisprudência do Supremo, em matéria de Direito Animal: “À luz do texto constitucional, a dignidade não é um atributo exclusivo do ser humano”.

O julgamento virtual da medida cautelar foi iniciado em 6 de setembro de 2024 e, à unanimidade de votos, foi posteriormente confirmada.

Oxalá possamos em breve catalogar a ação direta de inconstitucionalidade nº 7.704 dentre os precedentes positivos do Supremo Tribunal Federal em matéria de direito animal.

 


[1] SÃO PAULO (Estado). Lei n. 11.977, 25 ago. 2005. 1991. Institui o Código de Proteção aos Animais do Estado e dá outras providências. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2005/original-lei-11977-25.08.2005.html. o em: 09 set. 2024.

[2] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Ação Direta de Inconstitucionalidade 9028836-54.2005.8.26.0000. Relator: Des. Silvia Rocha. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/osg/show.do?processo.codigo=RMZ002EPT0000&paginaConsulta=2&conversationId=&paginaConsulta=0&cbPesquisa=NMPARTE&dePesquisa=Federa%C3%A7%C3%A3o+da+Agricultura&localPesquisa.cdLocal=-1#. o em: 09 set. 2024.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3595. Relator: Min. Nunes Marques. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2328685. o em: 09 set. 2024.

[4] SÃO PAULO (Estado). Decreto n. 33.161, 2 abr. 1991. Dispõe sobre a proteção, a saúde e o bem-estar na criação e na comercialização de cães e gatos no Estado de São Paulo, e dá providências correlatas. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2024/lei-17972-10.07.2024.html. o em: 09 set. 2024.

[5] LIMA, Yuri Fernandes. Direito animal e a indústria dos ovos de galinhas: crueldade, crime de maus-tratos e a necessidade de uma solução. Porto: Editorial Juruá, 2020, p. 36.

[6] LIMA, Yuri Fernandes. Direito animal e a indústria dos ovos de galinhas: crueldade, crime de maus-tratos e a necessidade de uma solução. Porto: Editorial Juruá, 2020, p. 38.

[7] Declaração de Nova York sobre a Consciência Animal. Disponível em: https://sites.google.com/nyu.edu/nydeclaration/declaration. o em: 09 set. 2024.

[8] A Declaração de Nova York sobre a Consciência Animal enfatiza as implicações éticas da consciência animal. Disponível em: https://www.animal-ethics.org/a-declaracao-de-nova-york-sobre-a-consciencia-animal-enfatiza-as-implicacoes-eticas-da-consciencia-animal/. o em: 09 set. 2024.

[9] Sobre a teoria das capacidades jurídicas animais, ver: ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade processual dos animais: a judicialização do direito animal no Brasil. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.

[10]Na ação civil pública nº 5108087-63.2024.8.21.0001, que tramita perante a 20ª Vara Cível e de Ações Especiais da Fazenda Pública do Foro Central da Comarca de Porto Alegre, foi deferida em parte tutela de urgência, em 08 de julho de 2024, para, dentre outras medidas, proibir a comercialização dos animais, de qualquer espécie, em lojas da ré COBASI, situadas em shoppings centers, em todo o território nacional.

[11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 7704. Relator: Min. Flávio Dino. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=7005652. o em: 09 set. 2024.

[12] BRASIL. Lei n. 13.426, 30 mar. 2017. Dispõe sobre a política de controle da natalidade de cães e gatos e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13426.htm. o em: 09 set. 2024.

[13] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade processual dos animais: a judicialização do direito animal no Brasil. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, pp. 90-95.

Autores

  • é professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), professor permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da UFPR e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), doutor e mestre em Direito pela UFPR, pós-doutor em Direito Animal pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), coordenador do Programa de Extensão em Direito Animal da UFPR, coordenador do Zoopolis – Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD da UFPR, membro-consultor da Comissão de Juristas para a revisão e atualização do Código Civil e juiz federal em Curitiba.

  • é professor do curso de especialização em Medicina Veterinária Legal da Faculdade Qualittas, professor do curso de Pós-Graduação em Direito Animal e Aplicações Jurídicas da Sociedade Paulista de Medicina Veterinária (SPMV), professor do curso de Pós-Graduação em Direito Animal e Prática Jus Animalista da Escola Superior de Ecologia Integral, Justiça e Paz Social (EJUSP), doutorando em Direito Animal pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre em Direito Animal pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), pós-graduado em Meio Ambiente e Sociedade pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e sócio de Bruno Boris Advogados.

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