Opinião

Tribunal do Júri e prisão imediata: a nova tese e sua retroatividade

Autores

7 de abril de 2025, 20h42

O ano de 2024 foi importante para o tema Tribunal do Júri, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal definiu duas repercussões gerais que estavam pendentes de conclusão. A primeira questão constitucional tratava da possibilidade de prisão imediata do acusado após a condenação pelo Conselho de Sentença (Tema 1.068). A segunda discutia se o tribunal de segundo grau, ao julgar um recurso contra a absolvição fundamentada no quesito genérico, poderia determinar a realização de um novo julgamento, caso entendesse que a decisão fosse manifestamente contrária às provas dos autos, considerando o princípio da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri (Tema 1.087).

Freepik
Juízo da 9ª Câmara Criminal Especializada do TJ-MG anulou sentença em que menor infrator foi ouvido antes das testemunhas e da vítima

Diante disso, é inegável que ambos os temas julgados são relevantes e produzem impacto significativo no dia a dia forense. Além disso, as posições mostram-se contraditórias e vão se interligar na fundamentação discorrida pelo tribunal. O presente artigo tem como propósito analisar o Tema 1.068, decorrente do Recurso Extraordinário 1.235.340/RO, que trata da prisão imediata do acusado no Tribunal do Júri. Em particular, examina-se a aplicação desse entendimento aos processos em curso no país, diante da ausência de modulação de seus efeitos.

A Suprema Corte, ao interpretar o artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea c, da Constituição, entendeu que “a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada”. Em resumo, réus condenados pelo Tribunal do Júri serão imediatamente presos após a decisão do Conselho de Sentença.

Por meio do “pacote anticrime”, houve a inclusão do artigo 492, inciso I, alínea e, do Código de Processo Penal [1], autorizando a prisão imediata nos casos de pena superior a 15 anos, o que foi afastado pelo STF no mencionado recurso, argumentando que não existiria qualquer patamar mínimo de pena, visto que a execução da sanção atribuída poderá ser autorizada independentemente do quantum aplicado na sentença exarada pelo juiz presidente.

Houve, portanto, uma ampliação na interpretação do dispositivo, restando definir se sua natureza se aproxima mais do direito processual ou do direito material. Diante disso, surge o seguinte questionamento: a interpretação adotada alcançará os processos que já estavam em tramitação antes da decisão?

Inicialmente, a posição parece contraditória com a decisão anteriormente adotada sobre a presunção de inocência, disposta no artigo 5º, LVII, do texto constitucional. Após idas e vindas, finalmente, a Corte Constitucional, nas Ações Diretas de Constitucionalidade nº 43, 44 e 54, em placar apertado, fixou que a prisão dos acusados por crimes somente poderia ocorrer após o trânsito em julgado da decisão condenatória, reafirmando a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal [2], que havia sido incorporado ao diploma legal por meio da Lei 12.403/11, justamente para adequar a legislação à posição anteriormente firmada. No entanto, a análise dos votos proferidos revela indícios de um possível tratamento diferenciado para os crimes dolosos contra a vida, especialmente nas manifestações do ministro Dias Toffoli.

Complexidade

Nesse cenário, o entendimento firmado no Tema 1.068 permite que a pessoa saia presa imediatamente após a condenação no Tribunal do Júri, pouco importando a quantidade de pena atribuída pela sentença condenatória. O sentido conferido pela corte, além de estender negativamente o disposto na norma criada pelo legislador ordinário, também figura como absoluta relativização da presunção de inocência.

Spacca

Desse modo, embora não se concorde com a posição por força da presunção de inocência e da segurança jurídica, não há como ignorar que o entendimento traz sérios reflexos aos casos que já estão em trâmite, de modo que se deve questionar se a decisão merece ser aplicada indistintamente, ou seja, também para os casos de crimes cometidos antes da fixação da tese pela Corte Suprema.

O tema não é novo, mas não menos complexo. Isso porque, ao se falar em sucessão de leis penais, não há dúvida de que a norma penal mais grave (e, do mesmo modo, sua interpretação) não poderá retroagir para prejudicar o acusado, existindo balizas constitucionais (por exemplo, artigo 5º, XL, CF) e legais (artigo 2º, ) que garantem uma posição pacífica a respeito da retroatividade ou não da lei penal no tempo e que constituem óbice ao excesso do poder punitivo do Estado.

Por outro lado, quando se trata de norma processual, a qual deve ser aplicada imediatamente, a questão já se mostra mais tormentosa, existindo posições que restringem ou alargam o âmbito de normas processuais puras (de aplicação imediata) ou normas processuais mistas (de caráter irretroativo se prejudicial ao acusado) [3], as quais, a depender da escolha do intérprete, permitem a retroatividade ou não da nova norma.

Segundo Lenio Streck, nunca se proibiu a prisão cautelar nos processos envolvendo crimes dolosos contra a vida, como explicou a corrente dissidente no Supremo Tribunal Federal. No entanto, foi-se além no Tema 1.068, existindo “uma relativização do direito fundamental à presunção de inocência, sob o fundamento de soberania dos vereditos” [4] e valorando-a como mais relevante que a presunção de inocência.

A matéria torna-se ainda mais complexa quando envolve uma mudança de jurisprudência, como no caso do Tema 1.068, pois implica a possibilidade de custódia imediata de inúmeras pessoas que cometeram crimes dolosos contra a vida antes da fixação da tese pelo Supremo Tribunal Federal.

A interpretação mais correta, na visão dos autores, seria a posição adotada pela corte quanto à necessidade do trânsito em julgado da decisão condenatória para execução da pena aplicada. No entanto, considerando a necessidade de convivência com a nova orientação à soberania dos veredictos no Tema 1.068, busca-se ao menos apresentar uma política de redução de danos a partir de critérios de justiça, segurança jurídica e previsibilidade, com o objetivo de que a nova orientação seja observada somente para aqueles que praticaram o crime após a sua fixação pela corte.

Prisão-pena

Inicialmente, em decisão prolatada pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do AgRg em HC 192.757/RO [5], restou fixado que o entendimento jurisprudencial mais gravoso, criado a partir da ruptura de posição anterior, não pode retroagir em razão de princípio constitucional da irretroatividade. No remédio constitucional, consignou-se que diante da ruptura na jurisprudência que inaugure posição mais onerosa ao imputado, “sua retroação está vedada em razão de princípio constitucional expresso”. Apesar disso, o Superior Tribunal de Justiça tem decidido em sentido contrário, compreendendo que a retroatividade estaria vinculada apenas à lei e não à interpretação jurisprudencial [6].

Nesse contexto, a prisão imposta após a condenação pelo Tribunal do Júri possui natureza de prisão-pena, e não de prisão cautelar, pois decorre do imediato cumprimento da sanção determinada pelo magistrado. Por essa razão, sua essência está diretamente ligada ao direito material, e não ao direito processual. Interpretar que a decisão teria validade para os processos em trâmite significaria enfraquecer o princípio da segurança jurídica, que assegura aos cidadãos a aplicação coerente e contínua das normas e decisões judiciais, evitando que o Estado aja de forma imprevisível ou contraditória.

O assunto se torna interessante porque, ao se prender sem qualquer caráter cautelar, a custódia deve ser entendida como prisão-pena, desconectada das hipóteses de segregação cautelar previstas no ordenamento (prisão preventiva e temporária). Nesse caminho, como se trata de prisão-pena, sem qualquer objetivo instrumental ou final para o processo, a própria natureza jurídica do instituto deve ser considerada de direito material, aplicando-se as normas constitucionais e da legislação penal.

A prisão imediata de uma pena fixada por um juiz de primeiro grau, ainda que constitucionalmente expresse a soberania do Conselho de Sentença na perspectiva do Supremo Tribunal Federal, ignora por completo o duplo grau de jurisdição e a possibilidade de incidência das previsões do artigo 593, inciso III, alíneas a, b, c e d, do Código de Processo Penal, que trata da apelação, o que necessariamente implicaria na redução da pena, reconhecimento de nulidade ou em novo julgamento.

Portanto, assim como uma nova lei mais gravosa não pode retroagir em prejuízo do imputado, a interpretação de uma norma pela Suprema Corte, quando mais rigorosa e dotada de efeito vinculativo, também não pode retroagir em desfavor do acusado. Seu alcance deve se limitar aos fatos ocorridos após a adoção desse novo entendimento. Nessas hipóteses, não há como se aplicar o Tema 1.068 com efeito vinculante e de forma imediata, a não ser que os fatos tenham ocorrido após o dia 24 de setembro de 2024.

A doutrina já advertia que “se a jurisprudência é obrigatória, tal como ocorre com as figuras dos ‘assentos’ em Portugal (isto é, acórdãos com jurisprudência obrigatória), indubitavelmente à sua alteração tem que se aplicar os princípios constitucionais da proibição da retroatividade de normas penais desfavoráveis e da aplicação retroativa das normas penais favoráveis” [7].

Da mesma forma, segundo Danyelle Galvão, “a irretroatividade in malan partem – em razão do conteúdo da norma – deve ocorrer também em relação à alteração jurisprudencial, especialmente quando se trata de precedente de observância obrigatória, ou seja, de caráter vinculante. Se o novo entendimento limitar direito fundamental, a sua aplicação não deve alcançar fatos ocorridos anteriormente à alteração do precedente, sob pena de quebra da confiança e previsibilidade” [8].

Portanto, a aplicação da nova posição, que configura uma verdadeira superação de precedente, deve se restringir aos processos cujos fatos ocorreram após a decisão da Suprema Corte, seja na perspectiva de interpretação da prisão-pena como direito material e irretroativo, seja pela impossibilidade de retroatividade da nova posição pela ruptura de orientação jurisprudencial. Assim, deve-se garantir o direito de recorrer em liberdade a todos os acusados por fatos anteriores à consolidação dessa posição, em respeito não apenas ao princípio da irretroatividade da norma mais gravosa, mas também à segurança jurídica e ao direito ao devido processo legal.

 


Referências bibliográficas

BADARÓ, Gustavo. Processo penal [livro eletrônico]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. RB-2.1.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AgRg no HC 192.757/RO. Relator Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, Julgado em 13/06/2023, DJe 08/08/2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp n. 2.290.642/SC, Relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 3/10/2023, DJe de 6/10/2023.

GALVÃO, Danyelle. Precedentes judiciais no processo Penal. Salvador: Juspodvm, 2022.

SANGUINÉ, Odone. Irretroatividade e retroatividade das alterações da jurisprudência penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 31/2000, p. 144-169, jul-set/2000.

STRECK, L. L. O Tribunal do Júri enfraquecido pelas decisões do Supremo Tribunal Federal. Boletim IBCCRIM[S. l.], v. 33, n. 389, p. 5–8, 2025. DOI: 10.5281/zenodo.14991084. Disponível em: https://publicacoes.ibccrim.org.br/index.php/boletim_1993/article/view/2035. o em: 31 mar. 2025.

[1] Art. 492. Em seguida, o presidente proferirá sentença que: I – no caso de condenação: e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos.

[2] Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado.

[3] BADARÓ, Gustavo. Processo penal [livro eletrônico]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. RB-2.1.

[4] STRECK, L. L. O Tribunal do Júri enfraquecido pelas decisões do Supremo Tribunal Federal. Boletim IBCCRIM[S. l.], v. 33, n. 389, p. 5–8, 2025. DOI: 10.5281/zenodo.14991084. Disponível em: https://publicacoes.ibccrim.org.br/index.php/boletim_1993/article/view/2035. o em: 31 mar. 2025.

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AgRg no HC 192.757/RO. Relator Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, Julgado em 13/06/2023, DJe 08/08/2023.

[6] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp n. 2.290.642/SC, Relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 3/10/2023, DJe de 6/10/2023.

[7] SANGUINÉ, Odone. Irretroatividade e retroatividade das alterações da jurisprudência penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 31/2000, p. 144-169, jul-set/2000.

[8] GALVÃO, Damyelle. Precedentes judiciais no processo Penal. Salvador: Juspodvm, 2022, p. 270.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!