Dupla visita para todas as empresas: bom senso não pode ser seletivo
10 de abril de 2025, 12h18
A promulgação da Lei nº 13.874/2019, conhecida como Lei de Liberdade Econômica (LLE), representa um divisor de águas no ordenamento jurídico brasileiro. A norma foi concebida com o objetivo de promover um ambiente mais propício à atividade empresarial, reduzindo entraves burocráticos, fomentando o empreendedorismo e promovendo uma nova cultura regulatória. Seu texto normativo está centrado na valorização da livre iniciativa, da boa-fé do empresário e do princípio da intervenção mínima e subsidiária do Estado nas atividades econômicas.
Dentre os dispositivos mais inovadores da LLE encontra-se o artigo 4º-A, que estabelece o critério de fiscalização da chamada “dupla visita” para atividades econômicas classificadas como de baixo ou médio risco. Em tais casos, a primeira atuação do poder istrativo de polícia deve ter como prioridade a orientação, oferecendo ao agente econômico a oportunidade de regularizar eventuais desconformidades antes da aplicação de sanções capazes de desestabilizar sua saúde financeira. Trata-se de importante mecanismo de fomento à regularidade empresarial, alinhado aos princípios constitucionais da razoabilidade, proporcionalidade, eficiência e segurança jurídica.
A dupla visita da LLE, embora inspirada em previsão similar constante da Lei Complementar nº 123/2006 — aplicável a microempresas e empresas de pequeno porte —, diferencia-se por não se limitar ao porte do empreendimento, mas sim ao risco da atividade. Em outras palavras, as empresas de médio e grande porte também am a se beneficiar da garantia da fiscalização orientadora, desde que exerçam atividades não classificadas como de risco alto.
Esse novo paradigma de fiscalização istrativa encontra respaldo em diversos princípios constitucionais. O artigo 170 da Constituição consagra a livre iniciativa como base da ordem econômica brasileira. Dela decorre a ideia de que o Estado deve limitar sua interferência ao mínimo necessário, criando condições para que a atividade econômica floresça de forma livre, responsável e concorrencialmente justa.
O princípio da eficiência (artigo 37, caput, da CF), por sua vez, exige que a istração pública atue com máxima racionalidade na gestão dos recursos públicos. Ao adotar a lógica da dupla visita, o Estado atua de maneira inteligente, destinando seu poder coercitivo apenas àquelas situações em que o sujeito fiscalizado, após orientado, persiste na irregularidade. Isso economiza tempo, recursos e evita a judicialização desnecessária de sanções precoces.
Também o princípio da proporcionalidade — desdobramento do princípio da razoabilidade e pressuposto lógico do Estado de Direito — reforça a adequação da dupla visita. O uso de sanções deve sempre respeitar critérios de necessidade e adequação. Quando é possível corrigir uma irregularidade por meio de orientação, a penalidade direta torna-se medida extrema, desproporcional e, muitas vezes, contraproducente. A atuação repressiva imediata, sem tentativa prévia de correção, pode não apenas inviabilizar a atividade econômica como gerar uma percepção de arbitrariedade. A fiscalização não pode ser um fim em si mesmo, mas um meio para orientar e proteger as boas práticas nas relações de consumo.
Do ponto de vista federativo, a implementação da dupla visita exige regulamentação por parte de Estados e Municípios. A União, por meio da LLE, estabeleceu a norma geral. Compete, no entanto, nos termos do art. 24 da CF, aos demais entes da Federação suplementar essa legislação conforme as especificidades locais. O Código de Defesa do Consumidor (CDC), especialmente em seu artigo 55, também ite essa competência concorrente e autoriza expressamente a edição de regulamentos locais para proteção do consumidor e regulação da atividade fiscalizatória.
O Decreto Federal nº 10.887/2021, ao regulamentar o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, prevê que as ações fiscalizatórias que não observem princípios como a legalidade, a razoabilidade e a proporcionalidade podem ser declaradas nulas. Isso reafirma a importância de que as visitas orientadoras em a compor a rotina fiscalizatória, não como exceção, mas como regra de conduta institucional.

A ausência de oportunidade para correção voluntária pode comprometer a moralidade e eficiência do ato punitivo. A finalidade última do poder de polícia não é punir, mas regular e ordenar o exercício das liberdades. Nesse sentido, a orientação preventiva atende aos mais altos interesses públicos ao evitar a paralisação desnecessária de atividades econômicas e promover a cultura do compliance voluntário.
Experiências e impactos
Internacionalmente, a abordagem baseada em orientação e gradualismo na fiscalização já é adotada em diversos países. No Canadá, por exemplo, órgãos de fiscalização adotam a técnica do “compliance agreement”, em que o infrator assume o compromisso de se adequar sem sofrer penalidade imediata. No Reino Unido, o Regulador Geral de Negócios estabelece a diretriz de “right-touch regulation”, privilegiando a menor intervenção possível, com vistas à promoção da atividade econômica.
A experiência brasileira, embora ainda em estágio inicial, tem revelado bons exemplos. O Procon-SP, em 2022, publicou a Portaria nº 185 que regulamentava a dupla visita em conformidade com parecer jurídico da PGE-SP. O normativo previa um procedimento escalonado, com visita orientadora seguida, se necessário, de visita sancionadora. A medida recebeu apoio do Governo e de entidades empresariais, sendo vista como avanço institucional. Sua revogação em 2023, desacompanhada de qualquer fundamento técnico, representou claro retrocesso regulatório.
A dupla visita traz impactos econômicos positivos. Ela reduz os custos de conformidade, aumenta a confiança dos investidores e estimula a formalização. Pequenos ajustes istrativos podem significar a sobrevivência de uma empresa que, de outro modo, seria multada ou encerrada por razões meramente formais. Ao conferir previsibilidade, a fiscalização orientadora fortalece a governança regulatória e atrai capital privado.
O argumento de que a aplicação da dupla visita implicaria aumento de custos públicos não se sustenta. Como os órgãos de fiscalização já possuem estrutura e pessoal capacitado, a simples reorganização de fluxos internos é suficiente. A prática já consolidada nas micro e pequenas empresas demonstra que a orientação é, na verdade, uma forma de racionalizar a atuação estatal, com menos processos litigiosos, maior taxa de adequação espontânea e melhor imagem institucional.
Desse modo, conclui-se que a regulamentação e efetiva implementação da dupla visita não é apenas juridicamente possível, mas obrigatória diante do arcabouço legal vigente. A inobservância da LLE, especialmente quando combinada com a omissão dos entes subnacionais em promover normatizações suplementares, fere os princípios constitucionais da legalidade, segurança jurídica e eficiência. Mais que uma diretriz de política pública, a dupla visita é uma exigência de um Estado que respeita os direitos fundamentais dos istrados e promove o desenvolvimento sustentável de sua economia.
A retomada da regulamentação, especialmente por órgãos como os Procons estaduais e municipais, é urgente. A experiência positiva já vivenciada e a inexistência de impedimentos técnicos, operacionais ou financeiros devem servir como impulso para a retomada de políticas públicas baseadas em racionalidade, proporcionalidade e diálogo. A fiscalização orientadora não fragiliza a proteção ao consumidor; ao contrário, fortalece sua efetividade ao assegurar que o Estado atue com foco na prevenção, correção e aperfeiçoamento contínuo de práticas empresariais.
Regulação responsiva e subsidiariedade
Promover um ambiente de negócios saudável, justo e previsível não é apenas uma aspiração — é uma obrigação de todos os entes públicos. A dupla visita, nesse sentido, é um instrumento central de transformação regulatória, que deve ser resgatado, fortalecido e expandido para toda a federação brasileira.
É importante enfatizar que a fiscalização orientadora também está intimamente relacionada à ideia de regulação responsiva. A teoria da regulação responsiva propõe um modelo escalonado de enforcement, no qual a resposta do regulador é calibrada de acordo com o comportamento do regulado. A lógica é simples: quanto maior a disposição do agente regulado em cooperar e corrigir seus erros, mais branda deve ser a resposta estatal.
Além da regulação responsiva, outro conceito que reforça a dupla visita é o princípio da subsidiariedade, que informa que o Estado somente deve intervir quando os indivíduos ou as entidades privadas não forem capazes de resolver suas questões por si sós. A atuação estatal deve ser sempre o último recurso, sobretudo em uma sociedade democrática baseada no protagonismo dos cidadãos e na valorização das soluções consensuais e colaborativas.
Nesse contexto, a dupla visita permite ao agente privado um espaço para autorregulação e correção voluntária. Isso não apenas promove conformidade, mas também reforça valores cívicos, como responsabilidade, ética empresarial e boa-fé objetiva. As empresas deixam de ver o Estado como um adversário punitivista e am a reconhecê-lo como um orientador que estimula o cumprimento da lei de maneira voluntária e consciente.
Do ponto de vista operacional, a dupla visita também pode ser aprimorada com o uso de tecnologias da informação. O uso de inteligência artificial e big data, por exemplo, permite segmentar os setores com maior incidência de infrações leves e aplicar ações preventivas mais eficazes.
Em suma, a dupla visita não se limita a um dispositivo legal. Ela expressa uma filosofia de Estado: uma istração pública mais estratégica, dialógica, focada em resultados e respeitosa dos direitos fundamentais. Ela também é expressão de uma mudança cultural: o abandono da lógica punitivista e cartorial, em favor de uma governança pública baseada em cooperação, aprendizado e melhoria contínua.
Sua implementação plena requer engajamento político, compromisso institucional e uma visão de longo prazo sobre o papel regulador do Estado. Ao invés de impor obstáculos ou gerar medo, a fiscalização a a cumprir sua verdadeira função: promover o cumprimento espontâneo da norma, proteger os direitos dos consumidores e contribuir para a construção de um mercado mais ético, competitivo e justo.
No Brasil, esse caminho está apenas começando a ser trilhado, mas a base normativa já está posta. Cabe agora aos gestores públicos, aos legisladores locais, ao Judiciário e à sociedade civil organizada assumir o protagonismo e transformar esse princípio legal em uma realidade concreta, efetiva e duradoura.
Combinações e monitoramento
Outro aspecto relevante é a interpretação sistemática da LLE com outras normas infraconstitucionais. A Lei nº 9.784/1999, que regula o processo istrativo federal, estabelece em seu artigo 2º os princípios que devem nortear a atuação da istração, incluindo a proporcionalidade, a finalidade e a motivação. Tais princípios reforçam a necessidade de que o exercício do poder de polícia seja pautado por critérios técnicos e razoáveis, e não meramente formais. Os mesmos princípios estão espelhados na Lei Estadual de São Paulo nº 10.117/1998 que regula o processo istrativo estadual.
A combinação entre a LLE e a Lei de Processo istrativo fortalece uma linha hermenêutica segundo a qual a fiscalização não pode ser dissociada dos valores constitucionais do Estado Democrático de Direito. A autoridade fiscalizadora deve agir não como um ente punitivista e verticalizado, mas como uma instituição voltada à indução de comportamentos desejáveis e à promoção de políticas públicas efetivas.
A mudança de paradigma demanda transformação da cultura institucional de “multar para educar” para “educar para não precisar multar”. Isso exige treinamento, atualização legal e, sobretudo, o comprometimento das lideranças públicas com práticas modernas de governança.
Finalmente, a regulamentação da dupla visita deve ser acompanhada de mecanismos de monitoramento e avaliação. Indicadores como número de autuações evitadas, percentual de regularização após a primeira visita e satisfação do fiscalizado podem ajudar a medir os efeitos da política pública. A transparência na aplicação das normas e a disponibilização de dados abertos são fundamentais para o controle social e o aprimoramento contínuo das práticas fiscalizatórias.
Portanto, regulamentar a dupla visita é mais do que um dever legal: é uma escolha estratégica por um Estado mais justo, mais inteligente e mais eficiente. A construção de um modelo de fiscalização baseado em orientação e cooperação é um o essencial para que o Brasil se alinhe às melhores práticas internacionais e para que o ordenamento jurídico cumpra sua função primordial: garantir a justiça, o desenvolvimento e a dignidade das relações entre Estado, mercado e sociedade.
Dessa forma, é inegável que a efetivação do critério da dupla visita representa não apenas um avanço normativo, mas um verdadeiro instrumento de transformação institucional. Ao proteger o agente econômico de sanções precipitadas e promover o cumprimento voluntário da legislação, o Estado cumpre seu papel de forma mais ética, eficiente e orientada à cidadania. A consolidação dessa prática nos âmbitos estadual e municipal é um o decisivo para o fortalecimento da democracia istrativa. Regular a dupla visita para todas as empresas não requer mais nenhuma inovação normativa: basta vontade política de implementá-la em cada Procon, alinhando o discurso político e a retórica à realidade mediante a prática de ações efetivas de implementação.
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