Tema 1.391 do STF: risco de desfigurar conceito de renda ao tributar doações e heranças
22 de maio de 2025, 7h05
O Supremo Tribunal Federal vai decidir se é constitucional a incidência de Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) sobre o ganho financeiro decorrente da doação de bens a título de adiantamento da legítima. A controvérsia é objeto do Recurso Extraordinário (RE) 1.522.312/SP, que teve a repercussão geral reconhecida sob o Tema 1.391, e aguarda julgamento definitivo pelo plenário.

No centro da discussão está o artigo 23 da Lei nº 9.532/1997, que autoriza a avaliação de bens transmitidos por herança ou doação a valor de mercado. Se essa opção for exercida pelo doador ou pelo espólio, a diferença entre o valor histórico do bem e o valor de mercado será considerada ganho de capital, sujeitando-se à incidência do IRPF. Essa sistemática se apoia também no artigo 3º, §3º da Lei nº 7.713/1988, que inclui a doação entre as operações geradoras de alienação para fins de apuração do imposto de renda sobre ganho de capital.
Ocorre que essa pretensão fiscal esbarra em um vício estrutural: a hipótese legislativa apresenta um problema no critério material da regra-matriz de incidência tributária do IRPF. De acordo com o artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN), a incidência do imposto pressupõe a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou proventos. Isso significa que o aspecto material da norma só se completa com a existência de um acréscimo patrimonial efetivo — uma manifestação nova de riqueza.
Conceito de disponibilidade
Como ensina Luis Eduardo Schoueri, o conceito de “disponibilidade” não pode ser interpretado em sentido meramente formal ou contábil. Ele resgata, com apoio em Alcides Jorge Costa, uma compreensão substancial da disponibilidade:
“Igualmente importante é a definição que Alcides propõe para a ‘disponibilidade’: poder dispor é ‘empregar, aproveitar, servir-se, utilizar-se, lançar mão de, usar’. Esse conceito parece muito adequado para se compreender o que o legislador quis atingir: ele busca a renda quando ela é disponível. Disponível para quê, pergunto eu. Ora, disponível para o contribuinte dela fruir. E se ele pode fruir da renda, também pode pagar o imposto. Noutras palavras, o contribuinte só é tributado porque tem condições de pagar o imposto. Eis a relação da disponibilidade com a capacidade contributiva (capacidade de pagar o imposto).” [1]
A leitura substancial da disponibilidade — como fruição real da renda — reforça a impossibilidade de tributar doações e heranças a valor de mercado como se houvesse ganho de capital. A transmissão gratuita de patrimônio, sem ingresso de riqueza nova e sem fruição econômica pelo contribuinte, não realiza a condição que legitima a incidência do IR. A norma infraconstitucional, portanto, não apenas carece de e na realidade fática, como também desconsidera o nexo entre disponibilidade e capacidade contributiva.

Apesar disso, em julgamentos anteriores à fixação da repercussão geral, como no RE 1.269.201 (2021) e no ARE 1.425.609 (2024), ministros da 2ª Turma do STF sustentaram que não haveria inconstitucionalidade. Para os votos vencidos nesses julgados — notadamente os da ministra Cármen Lúcia e do ministro Gilmar Mendes —, o legislador não teria criado um novo fato gerador, mas apenas diferido a realização da disponibilidade jurídica de renda para o momento em que o bem fosse declarado a valor de mercado.
Essa interpretação, entretanto, conflita com a teoria do acréscimo patrimonial, amplamente aceita pela doutrina tributária brasileira. A leitura que parece mais alinhada aos fundamentos constitucionais do imposto de renda é a de que a norma tributária deve incidir apenas quando houver uma efetiva entrada de riqueza no patrimônio do contribuinte. Mais que presumida, essa riqueza precisa ser concreta, disponível e realizada, não bastando uma valorização patrimonial ainda não convertida em resultado econômico no mundo dos fatos.
Conceito jurídico de renda
Conforme explica Leandro Paulsen, o conceito jurídico de renda deve estar fundamentado na realização concreta de riqueza nova, sendo inissível a simples presunção legal desvinculada da realidade econômica. Em sua análise:
“O conceito jurídico mais adequado de renda é o de acréscimo patrimonial, englobando os ganhos de capital, exceto as transferências de renda, tais como doações e heranças, segundo o ordenamento jurídico constitucional de 1988. (…) O conceito legalista (fiscalista) de renda, no sentido de ser considerado renda aquilo que a lei ordinária do imposto estabelecer que é, está ultraado e superado pela jurisprudência do STF, como nos leading cases de desapropriação (não incidência do imposto), da não tributação das variações monetárias (ganho nominal e não real) e da não tributação adicional pelo Imposto de Renda com relação aos lucros distribuídos (art. 38 da Lei 4.506/64). (…) Quaisquer limitações temporais ou quantitativas com relação às despesas e provisões devem guardar estrita compatibilidade com a teoria do acréscimo patrimonial e com a atividade do contribuinte, sob pena de serem inconstitucionais, por violarem o conceito jurídico de renda, por implicarem tributação direta ou indireta do capital e não do seu efetivo acréscimo e por afrontarem a capacidade contributiva do sujeito ivo da obrigação tributária, além de mitigarem ou anularem a rígida discriminação da competência tributária entre União, Estados e Municípios.” [2]
Essa compreensão fortalece a crítica à tentativa de tributar doações e heranças com base em mera valorização de ativos, pois se trata de uma transferência de patrimônio que não gera renda em sentido jurídico-constitucional. Permitir o contrário seria retroceder ao modelo fiscalista, já superado, que tolerava hipóteses de incidência tributária dissociadas da materialidade econômica. Essa é, aliás, a diretriz fixada pelo próprio Supremo em outras situações de reconhecimento da inexistência de critério material válido para o IRPF, como nos casos de juros de mora por danos morais (RE 855.091/RS) e lucros não distribuídos (RE 541.090/PR). Em ambos, a Corte reconheceu que, sem acréscimo patrimonial, não há como se falar em renda tributável.
Risco de bitributação
Em julgamentos anteriores envolvendo a problemática discutida no tema 1.391 do STF, como no RE 1.387.761, parte da controvérsia foi direcionada à possibilidade de bitributação, tese que chegou a ser reconhecida pelo ministro Luís Roberto Barroso. A União, por sua vez, sustenta que não há bitributação, já que imposto de renda e ITCMD possuem sujeitos ivos e bases de cálculo distintos. Argumenta ainda que o imposto de renda incide apenas sobre a valorização patrimonial ocorrida entre a data de aquisição e a data de alienação do bem, e não sobre a transmissão gratuita em si.
Sob o ponto de vista técnico, no entanto, o vício central da norma não está na eventual sobreposição de competências — que, inclusive, beneficiaria o contribuinte —, mas na ausência de materialidade econômica suficiente para legitimar a incidência. Portanto, a inconstitucionalidade decorre da não satisfação do critério material da regra-matriz de incidência do IRPF, pois não há ingresso de riqueza nova nem manifestação concreta de capacidade contributiva que justifique a tributação.
A expectativa, portanto, é que o julgamento do Tema 1.391 sirva para reafirmar os limites da regra-matriz de incidência do IRPF. No entanto, caso a definição da problemática em questão venha a validar a tributação pretendida pelo artigo 23 da Lei nº 9.532/1997, estaremos diante de um preocupante retrocesso no desenvolvimento do direito tributário brasileiro. Ao itir a incidência do IRPF sem o preenchimento do critério material da regra-matriz, a corte constitucional abrirá um precedente perigoso, permitindo que a noção de renda se descole de sua essência econômica e constitucional. Isso fragilizaria a própria lógica do sistema tributário, ao legitimar a incidência do imposto sobre hipóteses que, embora formalmente previstas em lei, carecem de correspondência com a efetiva realidade econômica.
[1] (SCHOUERI, Luis Eduardo. Comentários – Imposto sobre a Renda: A Aquisição da Disponibilidade Jurídica ou Econômica como seu Fato Gerador. In: OLIVEIRA, R. Mariz de; et al. (Org.). Diálogos Póstumos com Alcides Jorge Costa. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Tributário, 2017. p. 236-239).
[2] (PAULSEN, Leandro. Constituição e código tributário comentados: à luz da doutrina e da jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 292).
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!