Justiça dos modelões: do uso de IA na produção de decisões e sentenças criminais
21 de maio de 2025, 8h00
O debate sobre o uso de inteligência artificial (IA) pelo Judiciário brasileiro como instrumento auxiliar na confecção de decisões e sentenças tem se intensificado, sobretudo diante do aumento de episódios nos quais são noticiadas alucinações da ferramenta que, por exemplo, cria jurisprudências ou julgados inexistentes. Não são poucos os exemplos recentes: decisões judiciais e recursos elaborados com o auxílio de IA que citam precedentes fictícios, magistrados e advogados que se apoiam em informações falsas geradas por ferramentas como o ChatGPT, e pedidos de anulação de sentenças sob a alegação de terem sido escritas por máquinas se multiplicam. Tais casos têm mobilizado o Conselho Nacional de Justiça e provocado discussões sobre os riscos e limites do uso dessas tecnologias no processo judicial.
Apesar das questões que circundam sua implementação, a introdução de IA no Judiciário brasileiro já é uma realidade, com múltiplos sistemas em operação para triagem, agrupamento de casos semelhantes, análise preditiva e mesmo redação de minutas de decisões [1]. Os sistemas de IA são especialmente eficazes em tarefas que envolvem reconhecimento de padrões, classificação de documentos e identificação de precedentes.
Questiono, no entanto, até que ponto essas distorções tecnológicas são de fato inovações e não um reflexo meramente operacional de práticas já corriqueiras do próprio Judiciário. A partir dos dados da pesquisa etnográfica que desenvolvi ao longo da minha tese de doutorado observei um fenômeno próprio das instituições judiciárias que classifico como procedimentalização, compreendida como uma característica estrutural da produção de decisões e sentenças [2].
Embora meu campo tenha se voltado para as varas criminais, na instância de primeiro grau, ao longo dos últimos anos interagindo com profissionais dos mais diversos nichos da prática judiciária é possível afirmar que o cotidiano dos operadores do direito é marcado pelo uso sistemático de modelos padronizados. Os modelões que, como destaco, são preenchidos por servidores e estagiários, antes mesmo dos fatos serem efetivamente conhecidos pelo julgador. O resultado é uma linha de montagem decisória que separa casos “semelhantes” (tratados de forma automática e impessoal) dos “excepcionais” (que eventualmente rompem a rotina e recebem uma atenção mais individualizada).
O fenômeno da procedimentalização não aparece como uma dinâmica isolada no campo das instituições judiciárias. Ao contrário, é fruto de um sistema que privilegia a tradição escrita, burocrática e sigilosa do direito brasileiro, como já observava Roberto Kant de Lima desde os anos 80 [3]. Trata-se de um modelo que valoriza o controle formal, o segredo e a hierarquia, ao invés da transparência e do debate público. Na esfera criminal, há uma tendência de que os documentos que sucedem a fase inquisitorial, reproduzam todo seu conteúdo, privilegiando assim, versões produzidas em sede policial.
A maior evidência dessa prática se expressa pelo ato de replicar, quase que automática, do Ministério Público da tipificação penal feita pela autoridade policial no momento da denúncia. A prática irá se repetir ao longo de toda instrução criminal, já que os relatórios, descrição dos fatos e mesmo as oitivas em audiências tendem à reprodução de tais versões [4].
Nesse contexto, ao que parece, o uso de IA apenas potencializa e automatiza uma racionalidade que já está presente no funcionamento do Judiciário: a produção de decisões em larga escala, com pouca abertura para o contraditório e compreensão das singularidades dos casos concretos, haja vista que a tomada de decisões pela adoção de modelos pré formatados tende à exclusão de versões apresentadas por réus, privilegiando a reprodução das versões construídas em sede policial [5].
Ao aprender com decisões anteriores, muitas destas marcadas por vieses históricos e desigualdades institucionais, os algoritmos tendem a perpetuar erros e distorções estruturais do sistema de justiça criminal. Isso significa que padrões discriminatórios, como a presunção de culpa do réu e a valorização do discurso policial em detrimento de versões da defesa, podem ser ainda mais cristalizados e naturalizados por meio da automação. A suposta neutralidade dos modelos matemáticos se desfaz quando se observa que a base de dados utilizada para “treiná-los” já reflete desigualdades que foram sistematicamente institucionalizadas.
O efeito das decisões automatizadas no Judiciário é ainda mais preocupante quando se considera a relação entre a presunção de culpabilidade e a replicação de padrões decisórios. Como demonstrado na etnografia que realizei no Rio de Janeiro, a presunção de culpa do réu opera como um princípio estruturante, conduzindo todas as fases do processo de maneira pré-determinada, de modo que fase após fase a verdade policial é reforçada, pelo crivo do judiciário. A IA, ao ser alimentada com documentos judiciais que já incorporam essa lógica, tende a reproduzi-la como uma norma implícita, dificultando ainda mais a quebra dessa racionalidade.

É nesse cenário que se torna fundamental discutir a relação entre fundo e forma na produção das decisões judiciais. Como demonstrei ao longo da minha pesquisa, a ênfase excessiva na forma – ou seja, no cumprimento de ritos, prazos e modelos – acaba por esvaziar o fundo, isto é, o conteúdo substancial das decisões. A defesa, por exemplo, muitas vezes é tratada na dinâmica processual apenas como um requisito formal a ser cumprido, sem que seus argumentos sejam de fato considerados. O processo se torna um ritual burocrático no qual a aparência de legalidade e imparcialidade é preservada, mas o exame dos fatos e das singularidades de cada caso é deixado em segundo plano.
O uso de IA para criar decisões e sentenças tende a reforçar ainda mais essa oposição entre fundo e forma, já que a máquina opera essencialmente sobre padrões formais e dados históricos, sem capacidade de captar nuances, contextos ou rupturas. Se a IA aprende com decisões anteriores marcadas por vieses e desigualdades, ela tende a reproduzir – e até intensificar – a lógica da culpabilização automática/presunção de culpabilidade, dificultando rupturas e a valorização de casos excepcionais. O risco é que, sob o verniz da inovação tecnológica, o Judiciário se torne ainda mais impermeável à crítica e à justiça concreta, cristalizando práticas que já naturalizam a condenação como regra e a defesa como mera formalidade.
Oralidade e escrita
Acrescento ainda à reflexão um ponto central que embora seja oriundo da minha pesquisa comparada na Espanha, está mais bem consolidado em sensibilidades jurídicas da tradição da Common Law: o papel fundamental da oralidade no processo judicial. Na Espanha, observei que os argumentos de acusação e defesa são apresentados oralmente ao magistrado, permitindo o contato direto entre as partes, o juiz e as provas, o que favorece o imediatismo, a concentração e a publicidade do julgamento. Esse modelo aproxima o juiz das singularidades do caso e amplia o espaço para a escuta real dos argumentos, reduzindo o risco de decisões automatizadas e distanciada das partes.
A tradição brasileira, ao contrário, privilegia a forma escrita, a burocracia e o sigilo das decisões, elementos que convergem com o uso de IA pelo Judiciário. A dinâmica descrita por Bárbara Lupetti na esfera cível [6] demonstra que os magistrados priorizam a celeridade processual, justificando que audiências são demoradas e pouco eficazes para o andamento dos casos. Essa lógica sustenta a ideia de que ouvir as partes não altera significativamente o processo, pois testemunhas podem mentir, esquecer detalhes ou serem subjetivas. Assim, a oralidade perde espaço e o julgamento se torna essencialmente documental e burocrático. Alguns juízes veem essa rapidez como um benefício ao cidadão, acreditando que uma sentença rápida é mais útil do que um processo prolongado e dialogado.
Nesse cenário, o Judiciário é percebido não como um espaço de escuta e resolução de conflitos, mas como um mecanismo de tomada de decisão técnica e objetiva. Na esfera criminal, a ênfase na rapidez das decisões, frequentemente justificadas pela morosidade das audiências, leva à padronização mecanizada dos julgamentos, nos quais a presunção de culpabilidade do réu se fortalece sem um exame aprofundado das especificidades do caso concreto. O desprestígio da oralidade e a redução do depoimento a uma mera formalidade reforçam a lógica burocrática que distancia o julgador da subjetividade dos envolvidos, perpetuando um modelo decisório baseado em fórmulas pré-estabelecidas.
Isso porque as aplicações de IA operam sobre grandes volumes de documentos escritos, extraindo padrões, automatizando decisões a partir de registros textuais, o que acaba por afastar ainda mais a oralidade e o contato direto entre juiz e partes. Esse distanciamento reforça a lógica que procedimentaliza, esvaziando o lugar do processo penal como uma garantia fundamental do acusado, transformando-o em algo ainda mais formalista. Assim, a discussão sobre IA no Judiciário não pode ser dissociada de uma reflexão mais ampla sobre as tradições e racionalidades que estruturam nosso sistema de justiça. A inovação tecnológica, longe de ser neutra, pode aprofundar problemas antigos – especialmente quando reforça a primazia da forma sobre o fundo e a presunção de culpabilidade sobre o direito de defesa. Preocupa o fato de que o avanço do uso de IA no Judiciário brasileiro, longe de aproximar o juiz da realidade dos casos, tende a consolidar uma justiça cada vez mais mediada por textos, modelos e algoritmos, em detrimento da oralidade e principalmente pela massiva ocultação de fundo no processo de tomada de decisões.
Referências:
[1] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programa-justica-4-0-divulga-resultados-de-pesquisa-sobre-ia-no-judiciario-brasileiro/. o: 30/04/2025.
[2] GARAU, Marilha Gabriela Reverendo. “Os modelões e a mera formalidade: Produção de decisões e sentenças em uma vara criminal da Baixada Fluminense do Rio de Janeiro”. Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia, n. 51, pp. 85-110, 2021. Disponível em: https://periodicos.uff.br/antropolitica/article/view/45546.
[3] LIMA, Roberto Kant de. Entre as leis e as Normas: Éticas corporativas e práticas profissionais na segurança pública e na Justiça Criminal. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social – Vol. 6 – n. 3 – OUT/NOV/DEZ 2013. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7436.
[4] GARAU, Marilha Gabriela Reverendo. Silêncio no Tribunal: representações judiciais sobre crimes de tráfico de drogas no Rio de Janeiro e em Málaga na Espanha. 1. ed. Rio de Janeiro: Autografia, 2022. v. 47. 370p.
[5] GARAU, Marilha Gabriela Reverendo. ‘Essa gente inventa muita história’: representações judiciais sobre testemunhos (a)creditáveis no julgamento de casos de tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Vivência: Revista de Antropologia, v. 1, p. 184-210, 2022. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/vivencia/article/view/28775.
[6] BAPTISTA, Bárbara Gomes Lupetti. Paradoxos e ambiguidades da imparcialidade judicial – entre “quereres” e “poderes”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2013.
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