Contrato EPC e empreitada: distinguindo regimes jurídicos incompatíveis
20 de dezembro de 2023, 18h29
O EPC, ou Engineering Procurement and Construction, é um contrato de construção cuja utilização é tão comum na prática internacional que acabou sendo incorporado ao direito brasileiro. Como é natural, a difusão de sua adoção gerou a necessidade de interpretá-lo à luz do ordenamento jurídico brasileiro e, nesse âmbito, muitos logo o equipararam à empreitada, espécie de contrato positivada na legislação nacional.
Contudo, embora ambos tenham como premissa básica a entrega de obra mediante remuneração, a aplicação indistinta dos dispositivos próprios da empreitada aos contratos EPC acaba por desnaturar a lógica complexa do tipo contratual, afetando drástica e negativamente o negócio jurídico firmado pelas partes. Por meio da compreensão dos conceitos e características de ambas as modalidades e, consequentemente, da distinção entre eles, é possível identificar a razão para tanto.

A empreitada já possuía previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro desde o Código Comercial de 1850 [1], mas foi apenas com o advento do Código Civil de 2002 que a modalidade se tornou um tipo contratual autônomo, disciplinado entre os artigos 610 a 625, reaproveitando-se a maior parte das previsões anteriores.
Nas palavras de Caio Mario da Silva Pereira, empreitada é “o contrato em que uma das partes (empreiteiro) se obriga, sem subordinação ou dependência, a realizar certo trabalho para outra (dono da obra), com material próprio ou fornecido, mediante remuneração global ou proporcional ao trabalho executado.”[2]
Uma vez que se está a abordar contratos de construção, é importante notar que a empreitada prevista no Código Civil está amparada sob as premissas do design, bid and build (projetar, licitar e construir), conhecido pelo acrônimo “DBB”, cuja principal característica é a separação entre o projeto, de responsabilidade do dono da obra, e a construção, de responsabilidade do construtor.
Nesse modelo, o atingimento do objetivo se dá por meio de três etapas:
- a) a contratação de um projetista pelo dono da obra, o qual elaborará os documentos necessários para a caracterização do empreendimento e demais especificações
- b) a abertura de processo de concorrência, por parte do dono da obra, para atrair os interessados em construir, que apresentarão suas propostas a partir do material previamente disponibilizado
- c) a execução do projeto pelo vencedor
Dentro dessa lógica, o dono da obra responde pela qualidade e exatidão do projeto e das informações prestadas perante o construtor. Como consequência, caso seja constatada a presença de um vício, torna-se necessário verificar se sua origem advém de erro de projeto ou erro de execução. Por se tratarem de relações distintas, a correta identificação será essencial para apurar quem será responsabilizado pelo dono da obra: o projetista ou o construtor. Este apenas poderá ser responsabilizado se tiver se afastado das instruções que recebeu, ao o que, se executada a obra em conformidade com as instruções ofertadas, recairá sobre o projetista a culpa pelo defeito.
Por sua vez, o contrato EPC (Engineering, Procurement and Construction) é fruto da experiência internacional e resultado do aumento de complexidade e grandiosidade das construções de engenharia. Em síntese, sua proposta é concentrar (quase) todas as responsabilidades da obra no contratado (Epecista), de modo a ofertar maior previsibilidade ao dono da obra e evitar discussões sobre responsabilidade entre as várias partes envolvidas no canteiro de obras, o que causava “ineficiências e estouro de custos” [3].
A utilização do contrato EPC é disseminada entre os grandes projetos, sobretudo obras de infraestrutura e, nessa linha, é a relação com os agentes financiadores que norteia os alicerces da estrutura do negócio. Para viabilizar o empréstimo de gigantescas somas de dinheiro, exige-se do dono da obra elevado grau de certeza quanto ao cumprimento do cronograma de entrega, do preço e do desempenho do projeto, eis que a receita do empreendimento será a principal fonte de pagamento do empréstimo. A concentração da maior parcela dos riscos em um único agente, com grande liberdade de agir, foi a solução encontrada pelo mercado para atender essa demanda.
Uma vez provada sua efetividade, os grandes financiadores do mercado aram a exigir dos interessados a contratação do projeto via EPC para a liberação de empréstimos a grandes obras, o que, em última análise, levou à padronização internacional e disseminação do modelo.
No Brasil, esse movimento iniciou a partir de 1990, em virtude da mudança do cenário econômico decorrente da desestatização, o qual fomentou os investimentos privados em infraestrutura, possibilitados por leis que permitiam privatizações, concessões e parcerias público privadas [4].
Diferentemente da empreitada, o EPC não possui regulamentação específica no ordenamento jurídico nacional e, portanto, a análise de suas características se dá mediante o exame dos modelos de padrões internacionalmente reconhecidos e adotados, sendo o principal expoente o Silver Book, editado e publicado pela Federation Internationale des Ingenieurs-Conseils [5] (Fidic).
Pela breve introdução, percebe-se que o EPC está em esfera de responsabilidade diferente da empreitada. Se esta se desenvolve no modelo DBB, o EPC se enquadra no Design and Build (projetar e construir), ou “DB”, pois não há separação de responsabilidades, o que lhe atribui o aspecto de fit for the purpose.
Isto, pois, por meio do contrato de EPC, o construtor, ou epecista, obriga-se a executar um empreendimento em todas as suas etapas, entregando-o ao dono da obra em “estado de pronta operação”, assumindo o compromisso de o fazer em prazo e preço certo, além de garantir o desempenho acordado. Disto, extrai-se que o Epecista é responsável pelos métodos e processos construtivos, assim como pela performance do empreendimento quando estiver pronto, obrigando-se, inclusive, pelo resultado.
Dentro do escopo do EPC, também está, obrigatoriamente, o fornecimento dos materiais para construção, bem como dos equipamentos para o funcionamento da planta, devendo, ainda, providenciar sua instalação e assegurar que entregarão o resultado esperado. Por este motivo, atribui-se o termo turnkey, ou seja, uma vez entregue o projeto, o dono da obra deve poder “girar a chave” e “ligar” o empreendimento.
Por fim, os riscos inerentes à construção também são concentrados no Epecista, pois a despeito das várias imprevisibilidades inerentes à atividade, contrata-se por preço global e a prazo certo, sendo mínimas as hipóteses de reajuste ou de desculpa por atrasos. Por ter como principal finalidade ofertar segurança justamente sobre esses itens, essenciais para equacionar a conta do financiamento da obra, as matérias abertas para debate são bastante restritivas.
Conforme exposto, empreitada e EPC possuem uma relação de equivalências e contrariedades entre si, visto que, embora haja marcantes características que os diferenciem, ambos têm como finalidade a construção de determinada obra.
A correlação entre os tipos contratuais ganha relevância à medida que se torna necessário qualificar juridicamente os contratos EPC a fim de determinar quais regras lhe são aplicáveis. Na ausência de regulamentação específica ao aludido tipo, é possível lhe impor as normas de empreitada? A doutrina diverge.
Para a primeira corrente, o EPC seria um contrato legalmente típico, que remete especificamente à empreitada por preço global. Em termos gerais, os autores que a sustentam se apegam ao fato de ambas terem como objeto a entrega da obra em troca do recebimento do pagamento. Nessa linha, Luiz Olavo Baptista conclui que o contrato EPC é apenas a designação em inglês de empreitada, visto que “[o]lhando sob o prisma econômico, o contrato visa adquirir uma obra que será feita por alguém, mediante retribuição” [6].
Por outro lado, a segunda — e majoritária — corrente adota entendimento diametralmente oposto, classificando-o como contrato legalmente atípico. Segundo esta, a pluralidade de prestações distintas presentes no EPC, características de outros tipos contratuais, acarreta o “desprendimento” do contrato de EPC do tipo contratual de empreitada [7]. Orlando Gomes sintetiza esse raciocínio ao asseverar que “o engineering é considerado um contrato atípico da espécie contrato misto, no entendimento de que resulta da justaposição de prestações características de vários contratos típicos” [8].
Dessa forma, em que pese o esforço argumentativo para tentar aproximar os dois tipos contratuais, quando se examina o modelo contratual de empreitada ofertado pelas disposições do Código Civil em comparação com um modelo que remete às características usuais de um EPC, fica evidente a discrepância existente entre eles. Há substanciais divergências quanto: ao fornecimento de materiais; à titularidade do projeto a ser executado; às condições de alteração do projeto; aos riscos de execução; ao aceite da obra; à denúncia de vícios ou defeitos; ao recebimento da construção; à responsabilidade pós obra; ao preço; e à rescisão unilateral imotivada.
Nesse cenário, deve prevalecer o raciocínio de que o regramento de empreitada é “quase inteiramente incompatível” com contratos EPC ou com qualquer outro “modelo contratual complexo, em que as partes têm o cuidado em regular os riscos envolvidos de forma muito mais apropriada que o regime legal da empreitada” [9].
Essa observação é relevante, posto que os contratos de EPC, como regra, apresentam-se como self-contained contracts, o que significa que pretendem ser completos e autossuficientes, justamente pois objetivam não deixar margem para a aplicação dos dispositivos do ordenamento jurídico nacional.
Dito isto, parece natural concluir que, por se tratar de contrato atípico, não é atraída a incidência de disposições de contratos típicos, como o de empreitada. Deve-se privilegiar o regramento negociado entre as partes, o qual geralmente é bastante detalhado. A exceção fica para aquelas disposições que estejam em desacordo com a ordem pública e os princípios gerais do direito.
Assim, sustenta-se que os dispositivos da empreitada (artigos 610 a 626 do Código Civil) não devem ser aplicados para solução de conflitos advindos da complexa realidade dos contratos EPC, visto que não representam o arranjo contratual acordado pelas partes.
Contudo, cabe destacar que por mais completos e autossuficientes pretendam ser os Contratos EPCs, é inevitável a ocorrência de eventual lacuna no regramento das partes. Nesse caso, tais lacunas devem ser supridas por meio de fontes exteriores ao contrato. O aplicador do direito poderá basear sua análise em significativa doutrina a respeito do tema, assim como recorrer ao Silver Book (Fidic), o qual é o modelo paradigmático do contrato de EPC.
Diante de contratos EPC, portanto, a incidência dos dispositivos legais do Código Civil relativos à empreitada se limitaria à possibilidade efetiva de aplicação por analogia da solução prevista e desde que não conflite com uma norma característica do tipo social de EPC.
[1] Artigos 226 a 246 do Código Comercial de 1850.
[2] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Regis Fichtner (atual.). 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. 3, p. 315.
[3] CARMO, Lie Uema do. Contratos de Construção de Grandes Obras. Tese de Doutorado em Direito, USP, 2012. p. 101.
[4] ZENID, Luis Fernando Biazin. Breves comentários a respeito do contrato de aliança e a sua aplicação em construções de grande porte no Brasil. Revista de Direito Empresarial, v. 2, mar./abr. 2014, pp. 69-96.
[5] Federação Internacional de Engenheiros Consultores, em tradução livre.
[6] BAPTISTA, Luiz Olavo. Contratos da engenharia e construção. In: Id. (org.). Construção civil e direito. São Paulo: Lex, 2011, cap. I, pp. 39-40.
[7] SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto. Contrato de Engineering. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 29, n. 115, p. 509-526, jul./set. de 1992.
[8] GOMES, Orlando. Contratos. 26ª ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 579.
[9] SILVA, Leonardo Toledo da. Contratos de aliança: direito empresarial e ambiente corporativo. Tese de doutorado em Direito, USP, 2014. p. 183.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!