Direito Civil Atual

Fim da retrocessão no direito brasileiro

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  • é advogado; mestrando em Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; bacharel pela mesma instituição; pós-graduado em Direito Privado; e pesquisador vinculado à Rede de Direito Civil Contemporâneo.

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8 de abril de 2024, 14h20

A Lei nº 14.620 de 2023, que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida, promoveu uma significativa alteração normativa na disciplina geral das desapropriações. Incluiu uma série de disposições no vetusto Decreto-Lei n. 3.365 de 1941, que agora a a permitir expressamente que a istração Pública dê a imóvel desapropriado destinação pública diversa da indicada na declaração de utilidade pública, e, de forma inovadora, permite até mesmo a alienação do imóvel, desde que observada a Lei Geral de Licitações e Contratos istrativos.

Enquanto a primeira hipótese indicada já era itida pela jurisprudência, sob a designação de tredestinação lícita, a segunda hipótese não era itida, e era considerada tredestinação ilícita, que dava azo ao direito de retrocessão (ou, ainda, direito à retrocessão). Era esse o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça. [1]  [2]  [3]

A retrocessão, portanto, era o direito do sujeito ivo da desapropriação — “expropriado” — de reaver o bem para si, quando a istração Pública não desse ao bem qualquer destinação (adestinação), ou desse ao bem destinação estranha ao interesse público (tredestinação).

Constituição imperial

Trata-se de instituto anterior ao Código Civil de 1916, positivado no direito pátrio ainda sob a Constituição Imperial de 1824, que já reconhecia ao Estado a prerrogativa de desapropriação da propriedade privada. Positivado o direito à retrocessão pela primeira vez na Lei nº 57 de 1836 da Província de São Paulo, foi então regulamentado, em âmbito nacional, pela Lei nº 1.021 de 1903 (artigo 2º, §4º).

ConJur

Os embates doutrinários surgiram com o advento do Código Civil de 1916, que estabeleceu, para a mesma situação fática, o direito de preempção legal — ou preferência legal: “Art. 1.150. A União, o Estado, ou o Município, oferecerá ao ex-proprietário o imóvel desapropriado, pelo preço por que o foi, caso não tenha o destino para que se desapropriou”.

A redação deste dispositivo ensejou grande dissenso doutrinário, pois parecia, para muitos, incompatível com o tradicional recurso a ações reivindicatórias para viabilizar a retrocessão, o que naturalmente significava um reconhecimento, antes da codificação civil, da natureza real do direito à retrocessão.

A morte da retrocessão foi, assim, anunciada por ninguém menos que o pai do Código Civil, Clovis Bevilaqua:

“O ex-proprietário, por isso que perdeu o seu domínio, não tem o direito de reivindicação, que, erroneamente, se lhe reconhecia, outrora; mas, sim, o direito de preempção, aliás sob a forma particular de não depender da alienação da coisa e, sim, tão somente de não lhe ser dado o destino para que se desapropriou. O sistema do Código é mais conforme ao rigor dos princípios. Se a União, o Estado ou o município, não cumprir a sua obrigação de oferecer o bem ao ex-proprietário, no caso previsto pelo art. 1.150, incorrerá em perdas e danos.” [4]

Eis que Clovis Bevilaqua e seu Código pretensamente individualista iniciavam, com  o artigo 1.150, uma batalha contra os defensores do direito (real) à retrocessão, que viam na tredestinação (lícita ou ilícita) de imóveis desapropriados uma afronta ao direito de propriedade.

No entanto, o peso da tradição foi mais forte do que a normatividade do artigo 1.150 do CC-1916, e o instituto da retrocessão sobreviveu por obra dos tribunais e de parte dos doutrinadores, especialmente istrativistas (vale excepcionar Hely Lopes Meirelles, que, à luz do artigo 1.150 do CC-1916, negava eficácia real à retrocessão).

O Código Civil de 2002 não alterou substancialmente o cenário acima delineado, ando a dispor, em seu artigo 519, que “se a coisa expropriada para fins de necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, não tiver o destino para que se desapropriou, ou não for utilizada em obras ou serviços públicos, caberá ao expropriado direito de preferência, pelo preço atual da coisa”.

Tanto sob a vigência do Código Civil atual quanto na de seu antecessor, a maior parte dos autores — especialmente os istrativistas – enxergavam os institutos da retrocessão e da preempção legal como “complementares”, [5] o que impedia o desaparecimento do primeiro: a retrocessão como instituto de direito público, e garantidor de pretensão reivindicatória, de natureza real; a preempção legal como instituto de direito privado, essencialmente obrigacional, e que impunha ao Estado uma obrigação de fazer (oferecer o imóvel ao expropriado, caso não desse ao bem a destinação pública originalmente anunciada), cujo descumprimento ensejava indenização por perdas e danos.

Marco Zaoboni

É o pensamento, por exemplo, de Maria Sylvia Zanella di Pietro, para quem essa complementaridade significa o reconhecimento do direito de escolha, por parte do prejudicado, entre a pretensão reivindicatória e a ressarcitória. [6]

É verdade que esse panorama simplificado não faz jus à riqueza de detalhes com que o tema era tratado pela comunidade jurídica. Para uma análise pormenorizada dos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais a respeito da temática, remete-se o leitor aos comentários de Otavio Luiz Rodrigues Junior ao artigo 519 do Código Civil. [7]

Em linhas gerais, contudo, é essa a brevíssima história da “sobrevivência” do direito à retrocessão. Assim é que, ao menos até o advento da recente alteração legislativa, os tribunais pátrios ainda itiam a pretensão reivindicatória do expropriado em face de tredestinação ilícita.

Capítulo final

A Lei nº 14.620 de 2023, contudo, pretendeu colocar um capítulo final na biografia da retrocessão. Conforme as disposições [8] incluídas no artigo 5º do Decreto-Lei nº 3.365 de 1941, a istração ou a ter a faculdade de dar ao bem desapropriado uma destinação diversa daquela declarada em decreto: o Poder Público pode até mesmo deixar de dar qualquer destinação pública ao imóvel, e decidir por sua alienação.

Assim é que, “comprovada a inviabilidade ou a perda objetiva de interesse público em manter a destinação do bem prevista no decreto expropriatório”, o Poder Público poderá “destinar a área não utilizada para outra finalidade pública” (o que já era há muito itido), ou mesmo “alienar o bem a qualquer interessado, na forma prevista em lei, assegurado o direito de preferência à pessoa física ou jurídica desapropriada” (artigo 5º, §6º, inc. II).

Dessa forma, ao expropriado só resta, agora, o direito de preferência em eventual licitação, direito de natureza obrigacional, e cuja violação enseja somente indenização por perdas e danos (caso comprovado o prejuízo).

Atualmente, portanto, não resta dúvidas de que ao e fático dos institutos em análise restou apenas a incidência da preempção legal. Para os que consideravam os institutos como um só, não há mais margem para a defesa da natureza real da preempção legal: a alteração legislativa é clara quanto à opção por uma solução de natureza obrigacional, conforme posicionamento clássico de autorizados civilistas.[9] [10]

Além disso, a nova regulamentação encerra as discussões quanto à (aparente) disparidade de tratamento [11] do direito de preferência nas relações entre particulares e naquelas entre particulares e a istração Pública. Vige, atualmente, tratamento francamente uniforme, em que a inobservância da preferência gera direito a indenização por perdas e danos, mediante, é claro, a comprovação do prejuízo.

Por fim, é de se registrar que a regra é aplicável não apenas às desapropriações por utilidade pública, mas também às desapropriações por interesse social, por força do artigo 5º da Lei nº 4.132 de 1962, que determina a aplicação subsidiária das normas legais que regulam a desapropriação por unidade pública.

Tem-se, finalmente, a harmonização da disciplina normativa do e fático do direito de preferência legal em âmbito civil e istrativo, tendo o ordenamento jurídico optado pela solução há muito defendida por autorizados civilistas. Ao que parece, a exegese do artigo 519 do Código Civil enfim saiu de águas tormentosas, desvencilhando-se do velho instituto oitocentista que o codificador de 1916 tentara sem sucesso abolir.

É a segunda morte da retrocessão. Resta saber se a prática jurídica consagrará essa contribuição social [12] da civilística para o direito brasileiro, ou se a história do instituto se repetirá, e a retrocessão ressuscitará para sua terceira vida.

 

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2 — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

______________________

[1] STJ, REsp n. 1.421.618/RJ, relator Ministro Benedito Gonçalves, relator para acórdão Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 26/9/2017, DJe de 20/11/2017.

[2] STJ, REsp n. 1.516.000/MG, relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 9/8/2016, DJe de 26/8/2016.

[3] STJ, REsp n. 853.713/SP, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 6/8/2009, DJe de 27/4/2011.

[4] BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. vol. IV. Rio de Janeiro: F. Alves, 1958. p. 259.

[5] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito istrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 752-753.

[6] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito istrativo. 36. ed. São Paulo: Forense, 2023. p. 193.

[7] RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Código civil comentado: compra e venda, troca, contrato estimatório: artigos 481 a 537. vol. VI, tomo I / Otavio Luiz Rodrigues Junior. Coordenador Álvaro Villaça Azevedo. São Paulo: Atlas, 2008. p. 407-418.

[8] Art. 5º. Consideram-se casos de utilidade pública:

(…)

  • 6º Comprovada a inviabilidade ou a perda objetiva de interesse público em manter a destinação do bem prevista no decreto expropriatório, o expropriante deverá adotar uma das seguintes medidas, nesta ordem de preferência: (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023)

I – destinar a área não utilizada para outra finalidade pública; ou (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023)

II – alienar o bem a qualquer interessado, na forma prevista em lei, assegurado o direito de preferência à pessoa física ou jurídica desapropriada. (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023)

[9] BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. vol. IV. Rio de Janeiro: F. Alves, 1958. p. 259.

[10] CHAMOUN, Ebert. Da retrocessão nas desapropriações. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 45.

[11] Para uma análise crítica da aparente disparidade de tratamento da preempção entre particulares e entre os particulares e a istração Pública, confira-se: RODRIGUES JUNIOR., Otavio Luiz. Código civil comentado: compra e venda, troca, contrato estimatório: artigos 481 a 537. vol. VI, tomo I / Otavio Luiz Rodrigues Junior. Coordenador Álvaro Villaça Azevedo. São Paulo: Atlas, 2008. p. 417.

[12] A opção legislativa por uma solução de natureza obrigacional, e não real, ao problema da tredestinação ilícita nas desapropriações é uma solução que revela distanciamento de uma concepção clássica absolutista de propriedade. Esse distanciamento é fruto da evolução do direito constitucional no século XX – e não o resultado de uma suposta mudança paradigmática que teria sido provocada pela Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, “O Estado, por força da incontestável evolução do direito constitucional no século XX, derruiu a idéia clássica do direito de propriedade”. (RODRIGUES JUNIOR., Otavio Luiz. Código civil comentado: compra e venda, troca, contrato estimatório: artigos 481 a 537. vol. VI, tomo I / Otavio Luiz Rodrigues Junior. Coordenador Álvaro Villaça Azevedo. São Paulo: Atlas, 2008. p. 417).

Autores

  • é advogado; mestrando em Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; bacharel pela mesma instituição; pós-graduado em Direito Privado; e pesquisador vinculado à Rede de Direito Civil Contemporâneo.

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