Paradoxo da Corte

Falta de comprovação do feriado não mais destrói o direito do recorrente

Autor

  • é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

    Ver todos os posts

2 de agosto de 2024, 8h00

Não é de hoje que os advogados criticam os estratagemas pretorianos, que, ao longo do tempo, têm sido criados pelos tribunais, os quais, além de manifestamente ilegais, conspiram, a um só tempo, contra o direito fundamental de o à jurisdição e a garantia do devido processo legal.

Importa frisar que tal expediente não encontra paralelo nas mais diversificadas experiências jurídicas do mundo ocidental, que de algum modo guardam similitude com o sistema recursal brasileiro.

Como já tive oportunidade de ressaltar em anterior estudo, para combater essa verdadeira vertente inescrupulosa dos tribunais pátrios, inexcedível sob a égide do revogado Código de Processo Civil, o vigente diploma processual contemplou três regras preciosas, em defesa da sociedade brasileira. Refiro-me aos artigos 932, 1.007 e 1.029, parágrafo 3º, que têm por precípua finalidade contornar o não conhecimento dos recursos por defeitos formais.

Não se pode olvidar outrossim o disposto no artigo 86 do Regimento Interno do próprio Superior Tribunal de Justiça, que tem a seguinte redação: “Se as nulidades ou irregularidades no processamento dos feitos forem sanáveis, proceder-se-á pelo modo menos oneroso para as partes e para o serviço do Tribunal”.

Diante da clareza destes preceitos legais, os advogados, de um modo geral, que exercem a profissão na esfera do contencioso imaginavam que em boa medida o legislador lograra banir ou, pelo menos, minimizar aquele questionável posicionamento então sedimentado (equivocadamente denominado “jurisprudência defensiva”), em especial, nas nossas cortes superiores.

Contudo, a prática tem revelado, de forma contundente e lamentável, que, apesar da vigorosa tendência legislativa expressada no Código de Processo Civil de 2015, acima referida, não se entrevê qualquer movimento — de quem detém a atribuição de interpretar e aplicar as normas jurídicas — vocacionado a solucionar de forma inteligente e institucional o problema da enorme pletora de recursos.

São verdadeiras discussões improdutivas, que não levam a nada, senão o desiderato determinado de obstar o conhecimento do recurso, para diminuir, de forma deliberada, o acervo pessoal de cada julgador, em detrimento evidente do direito do jurisdicionado!

Convenhamos, todo debate, por exemplo, que se travou há pouco tempo atrás nos domínios do Superior Tribunal de Justiça acerca do feriado do carnaval poderia ser resolvido de modo razoável e descomplicado, valendo-se inclusive, por analogia, da regra do artigo 81 do Regimento Interno da corte, que arrola, entre os feriados naquele tribunal, “os dias de segunda e terça-feira de carnaval” (inciso III).

Inicialmente, o Superior Tribunal de Justiça considerava descabida a comprovação de feriado local após a interposição de recurso. No entanto, no final de 2012 tal orientação foi superada, ando a prevalecer a benfazeja tese de que era itida a posterior comprovação do feriado local.

Spacca

Como bem apontou, a propósito, Gustavo Favero Vaughn, tal posicionamento estava absolutamente correto, visto que “nada condiciona a comprovação da ocorrência de feriado local somente ao ato de interposição do recurso; aqui, a ausência de tal advérbio tem relevância na exegese da regra legal. Em síntese, o artigo 1.003, parágrafo 6º, não prescreve que o vício da falta de comprovação do feriado local é insanável” (Contra a Jurisprudência Defensiva, Migalhas, 8.5.2020).

Nessa linha de raciocínio, em 2017, atenta exegese do Código de Processo Civil resultou no entendimento de que era permitida a comprovação posterior da existência de feriado local.

Não obstante, em 2019, nova polêmica surgiu no âmbito da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça. Com efeito, num julgamento por maioria de votos, que marcou época, do Recurso Especial n. 1.813.684/SP, da relatoria designada do ministro Luis Felipe Salomão, sobreveio a orientação de que tal falha não daria ensejo à regularização em momento posterior à respectiva interposição, como se infere da seguinte conclusão, textual:

“O novo Código de Processo Civil inovou ao estabelecer, de forma expressa, no parágrafo 6º do artigo 1.003, que ‘o recorrente comprovará a ocorrência de feriado local no ato de interposição do recurso’. A interpretação sistemática do C/2015, notadamente do parágrafo 3º do artigo 1.029 e do parágrafo 2º do artigo 1.036, conduz à conclusão de que o novo diploma atribuiu à intempestividade o epíteto de vício grave, não havendo se falar, portanto, em possibilidade de saná-lo por meio da incidência do disposto no parágrafo único do art. 932 do mesmo Código.”

Ademais, na Questão de Ordem, suscitada no referido julgamento, pela ministra Nancy Andrighi, a Corte Especial, em complementação assentou que:

“Consoante revelam as notas taquigráficas, os debates estabelecidos no âmbito da Corte Especial, bem como a sua respectiva deliberação colegiada nas sessões de julgamento realizadas em 21.08.2019 e 02.10.2019, limitaram-se exclusivamente à possibilidade, ou não, de comprovação posterior do feriado da segunda-feira de carnaval, motivada por circunstâncias excepcionais que modificariam a sua natureza jurídica de feriado local para feriado nacional notório.”

Diante desse radical entendimento, a despeito de ter a natureza de irregularidade formal, excetuando-se a segunda-feira de carnaval, qualquer descuido do advogado, no sentido de deixar de comprovar, no ato da interposição do recurso, a existência de feriado, implicava o seu respectivo não-conhecimento.

Entre muitas outras, esta posição era de tirar o sono de qualquer advogado da área do contencioso cível. Singela desatenção punha tudo a perder, não tendo o causídico, à evidência, como explicar ao seu constituinte tal falha mortal…

Observa-se, contudo, que no curso desta semana, mais precisamente no dia 30 de julho, por iniciativa do Poder Executivo, foi publicada no Diário Oficial da União, a Lei n. 14.939, com eficácia imediata, que, em boa hora, alterou a redação do parágrafo 6º do artigo 1.006, para prever que o tribunal determine a correção do vício de não comprovação da ocorrência de feriado local pelo recorrente, ou desconsidere a omissão caso a informação conste do processo eletrônico, in verbis:

“§ 6º O recorrente comprovará a ocorrência de feriado local no ato de interposição do recurso, e, se não o fizer, o tribunal determinará a correção do vício formal, ou poderá desconsiderá-lo caso a informação já conste do processo eletrônico.

Não é preciso dizer que tal texto legal — simples, mas de altíssima relevância social — merece os encômios de todos nós, advogados brasileiros, que doravante deixaremos de ter, sobre a aludida questão, uma verdadeira espada de Dâmocles sobre as nossas cabeças!

Autores

  • é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da Aasp, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual, conselheiro do MDA e vice-presidente do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos da Fiesp.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!