Opinião

Execução do contrato de empreitada: tempo e ruína

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19 de agosto de 2024, 20h42

O tempo não é, por si só, um fato jurídico; mas elemento da composição dos fatos jurídicos [1]. Assim, todo contrato — como fato jurídico que é — manifesta-se em uma dimensão temporal. Ou ele foi celebrado e executado (ado), ou ainda será (futuro). Mais comumente, porém, os contratos existem em estado de fluxo, manifestando-se em múltiplas instâncias ao longo do tempo; principalmente porque “contrato” pode denotar não somente o acordo de vontades propriamente dito, mas toda a relação jurídica que dele surge, bem como os demais fatos e atos jurídicos vinculados a essa mesma relação. Daí que falar em “contrato” implica referir-se a algo que foi (ado), está sendo (presente) e ainda poderá ser (futuro).

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Citação, intimação

São muitos os contratos cuja implementação e execução podem oferecer desafios à dogmática jurídica. Este texto, porém, pretende lidar com uma particular questão do contrato de empreitada. A execução do contrato de empreitada — a princípio, uma questão aparentemente simples — adquire certa complexidade em virtude de sua prolongada eficácia pós-contratual.

O que dizer do caso em que certa pessoa contrata um empreiteiro para construir-lhe sua casa em bairro nobre de uma grande cidade. Celebrado o contrato, serviço prestado e casa entregue; o proprietário a a viver em seu novo imóvel até quando — 15 anos depois — muro e piso externos começam a ceder. Laudo de engenharia aponta falha na edificação, afundamento de piso, deslocamento de peças estruturais no muro de divisa e rompimento de viga de sustentação da obra.

Para se evitar a ruína do prédio, seriam necessárias obras ao custo de centenas de milhares de reais. Pressupondo que não há terceiros envolvidos nem a incidência de eventos externos, o problema jurídico que se põe é, portanto, definir a quem recai o a responsabilidade pelo prejuízo: ao empreiteiro ou ao proprietário.

Artigo 618 do CC/02 como regra excepcional

Independentemente de qualquer análise sobre o inadimplemento ou culpa na execução do empreiteiro, a responsabilidade no contrato de empreitada frequentemente terá de lidar com a sua dimensão temporal.

Especialmente, terá de lidar com o enunciado do artigo 618 do Código Civil, o qual dispõe que empreiteiro permanece responsável (responderá) pelo prazo de cinco anos pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais como do solo”; o qual é complementado por outro de 180 dias, previsto no parágrafo único do mesmo artigo e que se conta a partir do “aparecimento do vício ou defeito”.

Esse artigo é regra especial que excetua a norma geral de responsabilidade no contrato de empreitada, segundo a qual a responsabilidade do empreiteiro cessa a partir do momento em que houver a entrega e aceitação da obra. Primeiramente, trata-se de norma que se aplica apenas ao empreiteiro que fornece materiais. Nesse caso, a regra-base é aquela do artigo 611 do CC/02, que atribui os riscos contratuais ao empreiteiro “até o momento da entrega da obra, a contento de quem a encomendou”, desde que forneça os respectivos materiais.

Se fornecer somente a mão de obra, a regra incidente será aquela do artigo 612 do CC/02, que atribui ao dono da obra os seus respectivos riscos, desde que não tenham sido causados por culpa do empreiteiro.

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Em segundo lugar, a norma do artigo 618 do CC/02 aplica-se exclusivamente às chamadas “construções consideráveis”. A redação remonta ao Código Civil de 1916, de modo que a sua razão é esclarecida por Clóvis Bevilaqua [2], segundo quem tal regra destina-se a lidar com os vícios ocultos presentes nas empreitadas substanciais, uma vez que — ao contrário das obras de menor porte — nesse tipo de construção eles costumam demorar a se manifestar. Se a obra em questão apresentar porte reduzido, estará excluída a incidência deste artigo, atraindo aquela do artigo 441 do CC/02 [3].

Prescrição, decadência e prazo legal

O problema do artigo 618 do CC/02, contudo, refere-se aos seus prazos. Se a responsabilidade do empreiteiro perdura até cinco anos após a entrega da obra, surge a questão de como compatibilizá-lo com o dispositivo de seu parágrafo único, que determina que “decairá o direito assegurado neste artigo” se o dono da obra não prop ação no prazo de 180 dias do aparecimento do vício.

Note-se que as previsões não são autônomas. Não é possível aplicar o parágrafo único do artigo 618 do CC/02 sem verificar a incidência de seu “caput”, mas o dispositivo não indica claramente a qual posição jurídica ele se refere. Ele diz que o não ajuizamento da respectiva ação no prazo “decairá do direito assegurado neste artigo”.

Aí se tem uma pista: “decair” é termo técnico para indicar decadência; a qual não incide sobre pretensões, mas sobre direitos potestativos [4]. Daí que o prazo do parágrafo único não deveria incidir sobre eventuais pretensões do dono da obra à indenização por perdas e danos ou alguma outra prestação qualquer do empreiteiro, mas apenas sobre o exercício de direitos potestativos (ou formativos positivos ou negativos), tal como o direito de resolução contratual, redibição ou abatimento do preço [5].

Porém, permanece a dúvida sobre qual o prazo prescricional para pretensões indenizatórias, ou, dito de outro modo, qual o prazo prescricional para se exigir o pagamento de quantias certas. A primeira inclinação seria concluir que esse tipo de pretensão estaria sujeita ao prazo de cinco anos no artigo 618, caput, do CC/02. No entanto, a jurisprudência e dogmática atuais têm-no interpretado de outra forma.

Uma análise mais atenta indicará que o prazo de cinco anos do caput não limita o exercício de nenhuma pretensão ou direito formativo. Dizer que o empreiteiro “responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo” não é o mesmo que dizer que o dono da obra “poderá exigir” ou “poderá exercer, resolver, constituir, desconstituir, etc”. O dono da obra poderá ou não se ver diante de um vício ou ruína de seu prédio, poderá ou não ter uma pretensão ou direito perante o empreiteiro. Mas este, em todo e qualquer caso, ainda responderá.

Isso porque o prazo de cinco anos do artigo 618, caput, do CC/02 não é prazo prescricional ou decadencial, mas o que se acostumou chamar de prazo de garantia.

Na verdade, trata-se de verdadeira obrigação pós-contratual do empreiteiro. As obrigações de garantia são caracterizadas por terem como conteúdo o dever de “eliminação de um risco que pesa sobre o credor”, que terá eficácia haja ou não a constatação de um efetivo defeito [6]. Nesse mesmo sentido que o artigo 764 do CC/02 dispõe, em relação ao contrato de seguro que “o fato de se não ter verificado o risco […] não exime o segurado de pagar o prêmio”. Consequentemente, não se trata de prazo prescricional, mas de prazo de vigência obrigacional; de forma que, uma vez transcorrido, extingue-se esse específico dever do empreiteiro.

Assim, o prazo de cinco anos será a janela de tempo na qual o empreiteiro estará vinculado a eliminar o risco do defeito constatado ao longo desse período. Descoberto o vício até então oculto, surgirá uma nova posição jurídica a favor do dono da obra, que poderá ser um direito potestativo ou uma pretensão indenizatória. No primeiro caso, o dono da obra deverá exercê-lo no prazo de 180 dias (artigo 618, parágrafo único, CC/02); mas no segundo caso, sua pretensão estará sujeita ao prazo comum de dez anos das pretensões indenizatórias.

Veja-se o entendimento do STJ resumido pela ministra Nancy Andrighi no julgamento do AgInt. No AREsp. Nº 2.092.461-SP, julgado em 16 de junho de 2023:

“[…] sob a regência do Código Civil/2002, se o comitente constatar o vício da obra dentro do prazo quinquenal de garantia, poderá, a contar do aparecimento da falha construtiva: i) redibir o contrato ou pleitear abatimento no preço, no prazo decadencial de 180 dias; ii) pleitear indenização por perdas e danos, no prazo prescricional de 10 anos.”

De qualquer forma, tal entendimento parece dar excessivo valor ao conteúdo textual do art. 618 CC/02, delimitando sua aplicação para potencializar a proteção do dono da obra. A princípio, não haveria razões para se crer que o parágrafo único do mencionado artigo tenha sido escrito com a consciência das diferenciações científicas entre prescrição e decadência, de modo que o termo “decairá” ali presente poderia muito bem ter sido empregado de maneira impensada. O que permitiria uma interpretação no sentido de que o prazo de 180 dias poderia ser tanto prescricional quanto decadencial, a depender da posição jurídica a ser exercida [7].

Garantia legal no CC e no CDC

Por fim, faça-se uma ressalva quanto às relações de direito do consumidor, cuja dinâmica é diferente, em virtude da incidência conjunta do artigo 26, §3º, do CDC.

Sob um regime exclusivo de direito civil, como exposto anteriormente, caso o defeito da obra tenha sido constatado após o término do prazo de garantia de cinco anos, não nascerá nenhuma pretensão ou direito em favor do dono da obra, já que o empreiteiro já terá deixado de estar vinculado ao dever de eliminação do risco.

No entanto, em se tratando de uma relação de consumo, ficaria afastada mencionada norma. Esse é o entendimento que tem sido veiculado pelo STJ em questões semelhantes. Veja-se o que diz a ministra Nancy Andrighi no mesmo julgado anteriormente citado: “[…] em se tratando de relação jurídica regida pelo Código de Defesa do Consumidor, como é o caso do presente contrato de empreitada, não há essa exigência de que os vícios apareçam no referido prazo de 5 anos”.

E complementa dizendo que:

Com efeito, sob a regência do CDC, o prazo para o consumidor reclamar de vício oculto somente se inicia no momento em que ficar evidenciado o dano, nos termos do art. 26, §3º, do referido diploma legal, ficando o consumidor resguardado de vícios na obra, ainda que estes surjam após o prazo de 5 anos do seu recebimento.”

Mas, nesse caso, o Superior Tribunal de Justiça parece deliberadamente ignorar a expressão “prazo decadencial” indicada no artigo 26, §3º, do CDC, interpretando o mencionado dispositivo tanto para pretensões indenizatórias quanto para direitos potestativos.

De qualquer forma, o cenário que hoje se delineia em matéria de consumo é um que permite o exercício de pretensões indenizatórias contra os empreiteiros, no prazo de 10 anos, contado do aparecimento do defeito, mesmo que se tenha transcorrido o prazo de garantia de cinco anos do artigo 618 do CC/02.

Conclusão

Reitere-se o caso exemplar mencionado no início do texto. As soluções que ali se apresentam são distintas, caso se trate de uma relação de direito civil puro ou de direito do consumidor. No caso, efetivamente julgado [8], o empreiteiro foi condenado a pagar ao proprietário do prédio uma indenização no valor dos reparos necessários a evitar a sua ruína, mesmo tendo transcorrido em muito tempo o prazo de cinco anos do artigo 618 do CC/02, justamente porque se tratava de uma relação de consumo.

No fundo, os dispositivos concernentes à responsabilidade do empreiteiro parecem itir outras interpretações, bem como outras consequências normativas. Mas, após décadas de incerteza, a jurisprudência brasileira aparenta estar caminhando para a estabilização de um entendimento que distingue prazos prescricionais, decadenciais e prazos de garantia, aplicando regimes distintos seja uma relação civil ou de consumo.

 


[1] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Tratado de direito privado – Parte geral – Tomo I – Introdução. Pessoas físicas e jurídicas, 3ª ed., Rio de Janeiro, Borsoi, 1970, §12, 1, p. 30-31.

[2] Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, Vol. 4, 6ª ed., Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1943, p. 432-433.

[3] Lopez, Teresa Ancona, Comentários ao Código Civil – parte Especial – Das Várias Espécies de Contratos – Da Locação de Coisas; Do Empréstimo; Da Prestação de Serviços; Da Empreitada; Do Depósito (Arts. 565 a 652), São Paulo, Saraiva, 2003, p. 295-296.

[4] Amorim Filho, Agnelo, Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis, in Mendes, Gilmar Ferreira e Stoco, Rui (org.), Doutrinas Essenciais – Direito Civil – Volume V – Prescrição, Decadência e Prova, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2011, p. 43.

[5] Lopez, Teresa Ancona, Comentários ao Código Civil – parte Especial – Das Várias Espécies de Contratos – Da Locação de Coisas; Do Empréstimo; Da Prestação de Serviços; Da Empreitada; Do Depósito (Arts. 565 a 652), São Paulo, Saraiva, 2003, p. 300.

[6] Comparato, Fábio Konder, Obrigações de meios, de resultado e de garantia, in Nery Jr., Nelson e Nery, Rosa Maria (org.), Doutrinas Essenciais – Responsabilidade Civil – Volume V – Direito Fundamental à Saúde, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 347

[7] Confira os comentários ao art. 618, itens 4 e 5 de Nery Jr., Nelson e Nery, Rosa Maria de Andrade, Código Civil Comentado, 11ª Ed., São Paulo, RT, 2014. Mencionados autores, porém, parecem ter se alinhado ao restante do entendimento jurisprudencial atual em obra posterior (cf. Instituições de direito civil – contrato – Volume III, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2016, p.350-351)

[8] STJ, AgInt. No AREsp. Nº 2.092.461-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 12/06/2023, Dje. 14/06/2023.

Autores

  • é coordenador da área de Contratos e Negócios Comerciais do TN Advogados, Professor Universitário na Harven Agribusiness School, doutorando em Direito Civil pela Università degli Studi di Sassari, Itália, e mestre em Direito Romano e Sistemas Jurídicos Contemporâneos pela Universidade de São Paulo.

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