Paradoxo da Corte

Em defesa da inamovibilidade de certos ministros do STJ... (parte 1)

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  • é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

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6 de dezembro de 2024, 8h00

Há exatos dez anos deixei de conviver com meu saudoso pai, Rogério Lauria Tucci, embora o seu maior legado continue fazendo parte do meu dia-a-dia profissional, vale dizer, os sábios conselhos que dele recebi na vida e, em particular, no exercício da advocacia.

Entre as nossas prolongadas e inesquecíveis conversas, certa vez, quando eu ainda estava nos bancos das Arcadas de São Francisco, ele me disse que o respeito aos magistrados era um dogma a ser seguido por todo advogado que se seduzira pela profissão que abraçara.

Jamais deixei de seguir esse valioso conselho!

Nestas quase cinco décadas, em momento algum tive qualquer problema ou me deixei enfurecer pela ocasional prepotência de alguns poucos juízes que enfrentei ao longo da carreira.

Sempre, portanto, procurei manter respeito e boas relações com os responsáveis pela prestação jurisdicional, ando a irar, de forma especial, alguns deles em diversas épocas da minha atividade como advogado.

Confesso que dentre esses magistrados, que mentalmente catalogo como “essenciais”, nestes últimos dez anos, destaca-se o ministro Marco Aurélio Bellizze, o qual, durante esse arco temporal, prestou notável contribuição para o aperfeiçoamento da interpretação e aplicação do direito privado brasileiro.

Foram tantas decisões pioneiras que seria impossível traçar, ainda que de forma abreviada, uma síntese da excelência de seus votos que nortearam um sem-número de pronunciamentos colegiados que marcaram época.

Refiro-me, em primeiro lugar, aos acórdãos mais recentes relatados pelo ministro Bellizze na área do direito das obrigações, como dá pálida mostra o importante julgamento da 3ª Turma, no Recurso Especial nº 2.165.134/PR, versando sobre ação anulatória de doação cumulada com pedido de conversão do direito sucessório em perdas e danos, no qual restou assentado que:

“A procuração em exame não pode ser considerada ‘em causa própria’ (nos termos do art. 685 do C), pois destinada à representação dos interesses do outorgante, e não do mandatário.

É nula, de pleno direito, a doação (instrumentalizada por procuração), realizada em momento posterior à morte do outorgante, com ciência inequívoca da mandatária e dos terceiros (donatários) a respeito do fato extintivo do mandato. Em se tratando de nulidade absoluta, tal como a lei taxativamente o declara, o correlato negócio jurídico não comporta convalidação, muito menos pela inissível (e suposta) ratificação de vontade do outorgante operada não por ele (que faleceu), tal como determina a lei, mas pela própria mandatária, que procedeu justamente de forma ilícita, em seu benefício e também dos terceiros (os donatários).

O contrato de mandato ostenta natureza personalíssima, celebrado, portanto, intuitu personae, tendo por substrato a indispensável relação de confiança e de lealdade existente entre mandante e mandatário. Desse modo, as pessoas do mandante e do mandatário constituem elemento causal do contrato, razão pela qual a morte de um deles enseja inarredavelmente a extinção do mandato, não se transmitindo aos seus herdeiros as obrigações advindas do mandato.

Pela mesma razão, já se pode antever a inviabilidade – de ordem conceitual e mesmo legal – de se itir a ratificação de um negócio jurídico (levado a efeito pelo mandatário sem poderes para tanto) por outra pessoa que não o próprio mandante. A ratificação, prevista em lei, somente é possível de ser considerada se este o fizer em vida.

Diante do tratamento específico da lei de regência para a exata situação retratada nos presentes autos (a doação – instrumentalizada por procuração –, realizada em momento posterior à morte do outorgante, com ciência inequívoca da mandatária e dos terceiros donatários a respeito deste fato extintivo do mandato), para a qual se reconhece a invalidade do negócio jurídico (art. 689, CC), afigura-se inviável invocar o art. 662 do Código Civil, que cuida de circunstância diversa (ratificação, em vida, do outorgante).

São inaplicáveis as regras normativas atinentes à representação do espólio (arts. 1791, I, do CC, e 12, V, do C), para o propósito de viabilizar uma suposta ratificação do negócio jurídico.

Falecido o outorgante (que, doravante, não titulariza relação jurídica com terceiros), nenhum negócio jurídico pode ser estabelecido em seu nome (inclusive em representação), razão pela qual, em tal situação, nada há a ser ratificado, inclusive pelo espólio (já que o mandato é personalíssimo e se extingue pela morte de qualquer das partes).

A demandante, neta e sobrinha dos requeridos, acabou sendo (voluntariamente ou não) prejudicada pelo negócio jurídico nulo em exame, com preterição de seu direito sucessório (sendo certo que a prescrição da pretensão petitória foi afastada pelo Tribunal de origem e não impugnada pelo recorrente nas presentes razões recursais), sendo-lhe possível, assim, promover a nulificação da doação e requerer a conversão (do direito sucessório) em perdas e danos, tal como pleiteado”.

Direito Empresarial

Destaca-se também interessante precedente da 3ª Turma, no terreno da propriedade intelectual, no julgamento do Recurso Especial nº 2.121.497/RJ, em que o voto do ministro Bellizze enfrentou a questão da ofensa a direito autorais, à luz do disposto nos artigos 26 e 27 da Lei nº 9.610/98, decidindo que, in verbis:

“A finalidade dos direitos autorais é a de servir de incentivo à produção artística, científica e cultural, fomentando o desenvolvimento cultural, mas, ao mesmo tempo, encorajar os autores à produção criativa e original reconhecendo ao autor direitos exclusivos sobre sua criação intelectual, conferindo-lhe o monopólio da exploração da obra e exigindo a prévia e expressa autorização para qualquer forma de sua utilização.

Em seu aspecto patrimonial, confere-se ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica, dependendo de autorização prévia e expressa do titular do direito a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como a sua reprodução parcial ou integral e sua utilização, direta ou indireta, conforme preveem os arts. 28 e 29 da LDA.

A utilização da obra intelectual, mediante sua reprodução ou representação, não configura intertextualidade, que é comum na atividade criativa, mas está sujeita a princípios que distinguem o reaproveitamento lícito do ilícito, de modo que a relação entre a criação preexistente e a nova é apenas de referência, sem que se caracterize o plágio. Um exemplo de intertextualidade lícita é a paródia, expressamente autorizada pelo art. 47 da LDA.

No caso dos autos, houve afronta ao direito de autor em razão da comercialização indevida de camisetas com reprodução de obras musicais do cantor e compositor Tim Maia pelo grupo empresarial detentor da grife Reserva. As estampas ultraam a mera referência às obras do autor, tratando-se de cópia das letras de suas músicas com o simplório acréscimo do conectivo ‘&’, o que configura a apropriação indevida da obra para exploração comercial.

Também não prospera o argumento de que as palavras estampadas nas camisetas são de uso ordinário e aplicadas em paráfrases, pois foram dispostas expressando sons, ritmo e melodia, da mesma forma em que combinadas harmoniosamente na obra do autor, o que apenas corrobora a originalidade e a criatividade empregada pelo autor na composição da obra, a qual, repita-se, foi indevidamente aplicada pela ré.

A legislação de regência não prevê critérios específicos para o arbitramento da indenização. No âmbito da responsabilidade civil há a regra geral de que a indenização mede-se pela extensão do dano (art. 944 do CC), a qual também deve ser estendida às violações aos direitos autorais, observando-se, ainda, o duplo caráter indenizatório das ofensas, isto é, abrangendo tanto a finalidade ressarcitória como também a punitiva, de modo que haja o desencorajamento do infrator, inibindo novas práticas semelhantes…”.

Spacca

Ainda no âmbito do Direito Empresarial, atinente aos créditos sujeitos à recuperação judicial, importa invocar o aresto, da relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, no qual se discutiu se o crédito titularizado por condomínio, advindo de despesas condominiais inadimplidas pela recuperanda, deve ser considerado extraconcursal, independentemente da observância do marco temporal estabelecido no artigo 49, caput, da Lei nº 11.101/2005, com base no artigo 84, inciso III, do mesmo diploma legal – tal como defende o ora recorrente –, ou o aludido dispositivo legal tem aplicação unicamente ao processo falimentar, do que não se cogita na hipótese retratada nos autos, conforme compreenderam as instâncias ordinárias.

Ficou então consignado no voto vencedor que:

“(…) Os julgados desta Corte de Justiça, ao abordar e decidir a mesma questão em exame, têm aplicado, inadvertidamente, posicionamento jurisprudencial edificado especificamente em processo falimentar (segundo o qual ‘os débitos condominiais estão compreendidos no conceito de despesas da massa, necessárias à istração do ativo, enquadrando-se como crédito extraconcursal’), em interpretação a regramento próprio, o qual, em princípio, não incide n o processo de recuperação judicial, podendo, inclusive, redundar na indesejada inobservância da tese vinculante firmada pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça no Tema 1.051. Por conseguinte, seja para confirmar a diretriz hoje adotada, lastreada, doravante, em julgado específico a esse propósito, seja para proceder a uma correção de rumos – o que, em última análise, mostra-se sempre salutar ao aprimoramento das decisões judiciais –, revela-se indispensável o enfrentamento pontual da matéria posta por esta Turma julgadora.

Não se concebe, por qualquer método hermenêutico que se adote, importar, simplesmente, a definição de créditos extraconcursais estabelecida para o processo falimentar (art. 84 da LRF) ao da recuperação judicial, ignorando sua disciplina específica (art. 49), sem prejuízo às finalidades e à coerência do sistema legal em exame.

Na falência, os créditos extraconcursais são aqueles originados, em regra, após a decretação da quebra, relacionados, de um modo geral, às despesas do processo falimentar (referentes à arrecadação, liquidação dos ativos da massa e pagamentos de credores desse período). Os titulares desse crédito são, portanto, credores da massa falida, e não do empresário ou da sociedade empresarial falida, razão pela qual devem receber precedentemente aos credores destes (do falido), elencados, em ordem de recebimento, no art. 83.

Também entram nessa categoria (de créditos extraconcursais) os créditos originados após o ajuizamento da recuperação judicial e que, posteriormente, tenha sido convolada em falência. A lei, ao assim dispor, teve o claro objetivo de conferir àqueles que se dispam a conceder financiamentos ao empresário em situação declarada de crise financeira, viabilizando a manutenção da fonte produtora (arts. 69-A a 69-F), ou aos que estabeleceram relações contratuais com a recuperanda, permitindo a manutenção do fornecimento de bens e serviços, a prerrogativa, em caso de convolação de falência, de receber antes dos credores do falido

Em todas as situações estabelecidas no art. 84 da LRF, a prioridade de pagamento decorre de uma razão objetiva: tais créditos existem justamente em razão da falência. Sobressai clara, desse modo, a impropriedade conceitual de se considerar o débito condominial de empresa em recuperação judicial como encargo da massa, se ausente o decreto falencial. Logo, somente podem ser compreendidas como encargos da massa as despesas condominiais posteriores ao pedido de recuperação judicial que veio a ser convolada em falência, do que não se cogita na hipótese retratada nos autos.

Na recuperação judicial, as razões e as finalidades que levaram o legislador a estabelecer quais créditos não se submeteriam ao processo recuperacional não guardam nenhum paralelo com os eleitos no processo falimentar. Nos termos do art. 49, caput, da Lei n. 11.101/2005, estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. Trata-se, pois, de um critério puramente objetivo que não comporta flexibilização por parte do intérprete. Dessa disposição legal sobressaem dois aspectos essenciais à concretude da finalidade precípua do instituto da recuperação judicial, que é propiciar, a um só tempo, o soerguimento da empresa em crise, bem como a satisfação dos créditos.

A par do critério temporal, a Lei n. 11.101/2005 elegeu, ainda, o critério material, para, em relação a específicos e determinados créditos (art. 6º, § 7º-B; art. 49, §§ 3º, 4º, 6º, 7º 8º e 9º; e art. 199, §§ 1º e 2º), independentemente da cronologia de sua constituição, afastá-los dos efeitos da recuperação judicial. Nesse rol legal (incluídas, aí, as previsões em leis especiais), o qual também não comporta ampliação pelo intérprete, não se insere o crédito titularizado por condomínio, advindo das despesas condominiais inadimplidas pela empresa em recuperação judicial (ainda que considerada a sua natureza propter rem).

Em conclusão, a submissão ou não à recuperação judicial do crédito titularizado pelo condomínio recorrente, advindo de despesas condominiais inadimplidas pela recuperanda, será definida com base, unicamente, no corte temporal estabelecido no art. 49, caput, da Lei n. 11.101/2005”.

Continua na parte 2

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  • é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da Aasp, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual, conselheiro do MDA e vice-presidente do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos da Fiesp.

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