Opinião

As interfaces cérebro-máquina e os neurodireitos

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  • é sócia da área de Direito Consultivo Empresarial e especialista em Direito Digital e Proteção de Dados do Nascimento e Mourão Advogados.

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12 de julho de 2024, 16h20

Interfaces cérebro-máquina, até pouco tempo atrás, eram temas circunscritos aos filmes futuristas de ficção científica. Hoje, porém, são uma realidade que inclusive têm feito parte dos debates jurídicos, ao redor do mundo, provocando reflexões e estudos dos operadores do direito para garantir os chamados neurodireitos.

Rawpixel/Freepik

Esses dispositivos vão desde óculos que funcionam como controles-remotos em jogos eletrônicos, emitindo os comandos diretamente das ondas cerebrais, já à venda nos mercados, até chips implantados no cérebro de forma invasiva, que transportam os dados capturados das ondas cerebrais, diretamente para dispositivos de tecnologia, como computadores, por exemplo.

Inclusive em maio deste ano a empresa Neuralink fez o primeiro implante intracerebral, que consistiu na inserção de um chip do tamanho de uma moeda, no cérebro de um ser humano, a fim de que um computador pudesse ser completamente controlado, apenas via pensamento.

Essa primeira tentativa foi utilizada em um voluntário que havia perdido sua capacidade motora, do pescoço para baixo, após grave acidente. Após a implantação do chip, afirmou estar se sentindo novamente independente.

É importante salientar que, desde a implantação, apenas 15% dos receptores implantados tiveram um bom funcionamento. Todo o restante, ainda sem causa identificada, não teve o desempenho esperado. E foram necessárias mais algumas cirurgias para que o sistema fosse “recalibrado”, conforme afirmou a Neuralink.

O cientista brasileiro Miguel Nicolelis — considerado um dos 20 maiores em sua área, no começo da década ada, pela revista de divulgação Scientific American[1] —, em entrevista à revista Forbes, em março deste ano, trouxe diversas reflexões sobre o tema.

Spacca

A primeira delas foi reivindicar para si a autoria da primeira interface cérebro-máquina, capaz de controlar aparelhos tecnológicos diretamente a partir das ondas cerebrais, porém de forma não invasiva. Nesse ponto, Nicolelis chama atenção para o risco da implantação de chips, por exemplo, considerando que é possível conseguir bons efeitos, a partir de técnicas não invasivas, pedindo cautela ao afirmar que “para que a tecnologia possa atingir o máximo possível de pacientes, não tem como trabalhar com técnicas invasivas”.

“Esse é o primeiro mandamento da medicina. Tudo o que você fizer não pode colocar a pessoa em mais risco do que ela já está”,[2] disse. Além disso, Nicolelis faz críticas ao que chama de mercantilização da pesquisa científica que seria a preponderância de busca por investimentos a partir de afirmações de descobertas que despertem atenção do grande público, principalmente nas mídias sociais, sem que haja uma pesquisa científica bem desenvolvida sobre os temas.

Decisões livres de neurotecnologias

Do ponto de vista jurídico, o debate também é acalorado, de forma que no centro das discussões está a criação de regramento que garanta que o indivíduo mantenha o controle sobre seus processos decisórios, livre de qualquer manipulação oculta de neurotecnologias, já que os estudos já demonstram ser possível que essas interfaces alterem as ondas cerebrais e portanto os pensamentos. Ou seja, podem ultraar o caminho cérebro-máquina, em que as ondas cerebrais comandam aparelhos de tecnologia, para que os dispositivos comandem pulsos cerebrais, portanto, pensamentos, onde o viés seria sobre máquina-cérebro.

Nesse sentido, temos a construção dos neurodireitos, que se relacionam ao regramento e proteção dos direitos individuais diante da possibilidade da manipulação cerebral, denominação criada pela NeuroRights, uma plataforma gerida pela Universidade de Columbia, Nova York, que trouxe a proposta de uma nova estrutura jurídica internacional de direitos humanos, com a classificação de cinco grandes neurodireitos e os respectivos preceitos:

  • (i) Direito à Privacidade Mental: Os dados sobre atividade cerebral das pessoas não podem ser usados sem o consentimento delas, sendo vedada a leitura da mente e a venda de dados cerebrais;
  • (ii) Direito à Identidade Pessoal: Sob nenhuma circunstância, a neurotecnologia pode alterar o sentido do “Eu”;
  • (iii) Direito ao Livre-Arbítrio e à Liberdade Cognitiva: As pessoas serão capazes de tomar decisões livremente, ou seja, sem manipulação de neurotecnologias;
  • (iv) Direito Equitativo: A melhoria das capacidades cerebrais através da neurotecnologia deve estar disponível para todos;
  • (v) Direito de Proteção aos Vieses: Os indivíduos não podem ser discriminados a partir de dados obtidos através de neurotecnologia.

No quesito de incorporação desses conceitos aos regramentos jurídicos, o Chile tornou-se referência no tema, sendo o primeiro país no mundo a incorporá-los em sua Constituição.

Na Espanha, as provas obtidas através do uso de neurotecnologia são permitidas em processos criminais, havendo excepcionalidade do direito à privacidade mental em relação ao réu, para o fim exclusivo de localização de vítimas, o que tem provocado grande indignação em muitos operadores do direito.

No Brasil, está em trâmite a Proposta de Emenda Constitucional nº 29/2023 (PEC), que propõe a alteração da Constituição para incluir, entre os direitos e garantias fundamentais, a proteção à integridade mental e à transparência algorítmica.

O tema também está sendo debatido pela comissão responsável pela revisão e atualização do Código Civil, porém sem propositura de disposições objetivas, até o momento.

Portanto, os movimentos de tecnologia têm demandado de todos nós a necessidade de conhecimento sobre o tema e seus desdobramentos, como um cenário que já caminha nos nossos tempos como uma realidade, para assim, somarmos nas reflexões sobre os contornos a serem considerados nesses avanços, a fim de que traga desenvolvimento ao ser humano e não supressão dos direitos já conquistados.

 


[1] Edição 2009.

[2] https://forbes.com.br/forbes-tech/2024/03/criei-ha-25-anos-o-que-musk-fez-agora-diz-miguel-nicolelis/

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