Justo Processo

Lei 14.843/2024: populismo penal ataca novamente (parte 2)

Autores

  • é mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra e defensora pública do estado de Pernambuco.

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  • é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

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13 de julho de 2024, 8h00

O presente artigo demonstra o viés populista camuflado na Lei 14.843/2024. Semana ada, nos debruçamos sobre a repristinação do exame criminológico como requisito obrigatório para progressão de regime. Doravante, vamos discorrer sobre a restrição do direito à saída temporária e a exacerbação da monitoração eletrônica dos presos.

A saída temporária é um direito cuja fruição exige o cumprimento de inúmeros requisitos legais, além de autorização judicial, depois de ouvidos o Ministério Público e a istração Penitenciária.

O mapeamento dos presos em favor de quem são concedidas saídas temporárias atesta que mais de 95% dos detentos regressam regularmente à unidade prisional para a continuidade do cumprimento da pena. Dos menos de 5% restante, a maioria dos descumprimentos restringem-se a atrasos, sendo escassos os casos de abandono [1]. Acrescenta-se que, nessas hipóteses, o apenado é punido com a regressão do regime prisional.

Se um dos objetivos do cumprimento da pena é justamente a ressocialização, a saída temporária é instrumentos idôneos a possibilitar o retorno gradual do preso à sociedade. Contudo, no imaginário popular, a estigmatizada “saidinha” é um salvo conduto concedido aos presos para circularem livre e “perigosamente” pela sociedade. Esse discurso foi endossado pela Lei 14.843/24, cujo objetivo inicial era mesmo suprimir esse “privilégio”.

A princípio, o presidente da República vetou a supressão da saída temporária para os casos de visita à família e participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social. Contudo, em 28/05/2024, o Congresso derrubou o veto presidencial, mantendo a saída temporária tão somente nas hipóteses de estudo no ensino médio, supletivo ou cursos profissionalizantes.

Spacca

De mais a mais, a Lei 14.843/24 impôs restrições à saída temporária que significam, em termos práticos, o seu aniquilamento. Consoante nova redação do §2º do artigo 122 da LEP: “não terá direito à saída temporária de que trata o caput deste artigo ou a trabalho externo sem vigilância direta o condenado que cumpre pena por praticar crime hediondo ou com violência ou grave ameaça contra pessoa”.

No novo cenário, podem desfrutar deste direito os condenados a crimes não hediondos, e desde que cometidos sem violência ou grave ameaça. Ocorre que os integrantes deste grupo, em regra, sequer estão presos, pois lhes são oportunizados o uso de institutos despenalizadores.

De outra banda, diante da vedação das saídas temporárias para a maioria dos presos que cumpre pena no regime semiaberto (crimes hediondos ou cometidos com violência ou grave ameaça), resta frustrado o sistema progressivo de cumprimento de pena, praticamente igualando-se o regime semiaberto ao fechado.

Agora, a única diferença entre eles é que, enquanto os presos do regime semiaberto podem exercer qualquer forma de trabalho externo, os encarcerados no regime fechado ficam adstritos ao trabalho externo em obras públicas (artigo 36 da LEP). Diante dos dados estatísticos — menos de 5% dos presos tem o a trabalho externo [2] — podemos afirmar que essa diferença é mera falácia.

Regras inconstitucionais

Defendemos que essas novas regras são inconstitucionais, porquanto, ao conferir tratamento igualitário ao regime fechado e semiaberto, viola o sistema progressivo e o princípio constitucional da individualização da pena.

Acrescenta-se ainda que, ciente o condenado de que não terá direito a saída temporária, certamente ficará desmotivado a manter um bom comportamento carcerário, o que pode desencadear problemas para as istrações prisionais.

Spacca

Pontua-se ainda que as novas regras restritivas da saída temporária configuram nítida novatio legis in pejus, na medida em que ampliam a pretensão punitiva estatal, tornando mais severa a sua satisfação. Por conseguinte, não podem retroagir para atingir os apenados por crimes cometidos antes da sua vigência. Uma decisão monocrática do ministro André Mendonça nesse sentido, nos autos do HC 240.770 (28/05/2024), alimenta a expectativa de que a jurisprudência dos tribunais superiores endossará esse posicionamento.

Por fim, a Lei 14.843/2024 ampliou as hipóteses de monitoração eletrônica para incluir também os presos em regime aberto, em livramento condicional e ainda os que cumprem pena restritiva de direitos, quando se estabelecer limitação de frequência a locais específicos. Mais uma vez, o Estado terá dispêndios para aplicação de uma medida que em nada contribui para a diminuição da criminalidade ou ressocialização do preso. Pelo contrário, induz à dessocialização e a criminalização secundária.

O uso da tornozeleira eletrônica implica que o egresso leve consigo o “carimbo” de criminoso. Diante desta estigmatização, a sociedade lhe nega direitos e possibilidades. Submerso numa cadeia de adversidades, é induzido a buscar oportunidades ilegítimas, que desemboca na delinquência secundária [3].

Sábias são as palavras de Carnelutti: “o encarcerado, saído do cárcere, crê não ser mais encarcerado; mas as pessoas não. Para as pessoas, ele é sempre encarcerado; quando muito se diz ex-encarcerado [4]”.

Em arremate, podemos concluir que a obrigatoriedade do exame criminológico, a restrição das saídas temporárias e a ampliação da monitoração eletrônica agravam o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiro. Em outras palavras, a Lei 14.843/24 é puro populismo penal.

Ademais, a Lei 14.843/24 descortina a falta de diálogos institucionais entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Primeiro, o legislador extinguiu a saída temporária para fins de visita à família e atividades de reinserção social. O Executivo vetou a alteração legislativa. O Congresso derrubou o veto presidencial.

Agora, a questão encontra-se sub judice: a Anacrim (Associação Nacional da Advocacia Criminal) impetrou uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 7.663) no STF questionando a restrição dos direitos dos presos. O ministro Edson Fachin submeteu o julgamento da referida ADI diretamente ao Plenário da Corte, sob o fundamento da matéria ser de extrema relevância para a ordem social e segurança jurídica.

Nas democracias contemporâneas, as Cortes Constitucionais, na sua missão contramajoritária, devem assegurar a efetivação dos direitos fundamentais, o que inclui sindicar e sanar possíveis violações decorrentes de ações ou omissões dos poderes constituídos, inclusive do Congresso. O advento da jurisdição constitucional tonificou o conceito de democracia, na medida em que impede sua conversão em despotismo da maioria [5].

No contexto do julgamento da ADI 7.663, entendemos que o STF deve garantir a reintegração do preso ao convívio social, declarando a inconstitucionalidade da restrição das saídas temporárias pelos fundamentos elencados ao longo do presente texto, não permitindo, pois, que o punitivismo irracional prevaleça sobre critérios técnico-jurídicos.

Como já nos manifestamos nesta coluna anteriormente, “o sistema penal não é, e não pode ser tratado como panaceia dos problemas sociais ou de regulamentação de condutas desejadas pelo Estado e pelo grupo homogêneo dominante”. É fundamental para o Estado de Direito que os representantes políticos compreendam que “política criminal não é sinônimo de repressão ou de criminalização”. [6]

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[1] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/01/brasil-soltou-57-mil-presos-na-saidinha-de-natal-e-menos-de-5-nao-voltaram-para-a-cadeia.shtml, o em 25/4/2024.

[2] Disponível em: https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios/relipen/relipen-2-semestre-de-2023.pdf, o em 23/04/2024.

[3] ANDRADE, Manuel da Costa. O novo código penal e a moderna criminologia. In O novo Código penal português e legislação complementar / Jornadas de Direito Criminal. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 1984, p. 195 e ss.

[4] CARNELUTTI, sco. As Misérias do Processo Penal. São Paulo: Editora Nilobook, 2013, p.99

[5] BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus Diálogos Constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 5.

[6]Populismo penal e o princípio da recodificação”, publicado em 10 de fevereiro de 2024.

Autores

  • é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • é advogado criminalista habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional em Haia, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

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