Opinião

O que não falamos sobre os estudos de David Metzker (e sua relação com Mr. Beast)

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24 de julho de 2024, 15h21

Jimmy Donaldson é o criador de conteúdo mais popular do YouTube. Conhecido como Mr. Beast, ele conta com mais de 300 milhões de seguidores.

Steven Khan

Seus vídeos na plataforma não têm um tema específico: ele já recriou o popular seriado Round 6 e já se propôs a ficar preso sozinho em uma ilha deserta por sete dias, dentre muitas outras aventuras. Curiosamente, sua fama atingiu os noticiários quando ele se dirigiu a um fim mais nobre: restaurar a visão de mil cegos. Todos tinham catarata.

O vídeo registrando esse feito viralizou. Houve quem o acusasse de charity porn (fazer um ato de bondade apenas para alcançar lucro) e quem elogiasse a iniciativa, dizendo que o conteúdo era valioso na conscientização de um problema de saúde comum e trazia à luz algo que poucos sabem: metade da cegueira no mundo poderia ser curada com uma cirurgia de 10 minutos.

Por que tanta polêmica em torno desse vídeo específico? Ao menos em parte, parece que ela é fruto de uma insatisfação em ver algo que deveria ser endereçado pelo Poder Público sendo realizado por um ente privado. Isso porque, por mais poderoso que Mr. Beast seja, ele dispõe de menos recursos que o Estado e, mais importante, ele não foi incumbido pela sociedade de empregar esses recursos em prol do bem comum.

Omissões

Essa reflexão parece pertinente quando olhamos a relação do trabalho de David Metzker sobre a jurisprudência do STJ com a atuação do próprio tribunal na divulgação de seus dados.

O labor desse advogado, mestrando e autor de pesquisas empíricas no âmbito de processos judiciais lembra o dos monges cristãos responsáveis pelo registro e organização do conhecimento em tempos medievais, tamanha minúcia e dedicação.

Spacca

O professor capixaba construiu uma base de dados meticulosa sobre todas as decisões monocráticas e acórdãos em HC, RHC e AgRg nesses procedimentos. Em razão de suas pesquisas e artigos, Metzker ganhou, de maneira justa e acertada, notoriedade. ou a ser citado por ministros, palestrar em encontros, incluindo o Fórum Jurídico de Lisboa.

Enquanto isso, o STJ parece contemplar esse quadro de forma, no mínimo, complacente. Institucionalmente falando, a Corte Superior conta com um verdadeiro exército de servidores qualificados, enquanto Metzker labora em sua pesquisa de forma solitária.

Esse cenário impõe uma pergunta incômoda: por que a jurimetria oficial do STJ disponível ao público é tão pior do que a do celebrado causídico?!

O trabalho de David Metzker nos revela uma verdade que deveria ser óbvia: a estatística e a análise de dados são ferramentas fundamentais para entender e melhorar o funcionamento do Poder Judiciário. No entanto, ao o em que sua análise exauriente merece ser celebrada pelo que elucida em termos de comportamento intrínseco do tribunal, ela também desnuda pontos de uma omissão institucional da corte.

E aqui David Metzker e Mr. Beast se encontram.

Em um mundo mais republicano, ninguém ficaria cego por catarata, o poder público interviria no sentido de disponibilizar a cirurgia ainda que o paciente não pudesse pagar. O conteúdo de Mr. Beast seria desnecessário, pois ninguém precisaria recorrer à caridade do bilionário. O vídeo foi polêmico porque revelou a mercantilização da saúde que só foi possível pela omissão do poder público.

Uma preocupação que deveria ser institucionalizada teve que ser abordada por um ente privado, exatamente pela omissão do ente público. Do mesmo modo, a qualidade e a importância do trabalho de Metzker revela as vulnerabilidades do STJ (em verdade, de todos os tribunais brasileiros).

O Tribunal da Cidadania não é alheio ao conceito de gestão de dados e transparência. A existência de instruções normativas, como a nº 11/2012 e a nº 14/2017, juntamente com a Portaria STJ/GP nº 482/2022, estabelecem um arcabouço que deveria, em teoria, assegurar uma coleta, processamento e divulgação eficiente de informações estatísticas.

Deficiências

Nesse contexto, surge o Grupo de Pesquisas Judiciárias (GPJ), criado com o propósito de gerenciar e validar dados estatísticos sobre a atuação do tribunal. Composto por servidores com especialização em estatística, ciência de dados e direito, deveria ser a vanguarda na análise do funcionamento do STJ. Por que, então, todos falam do trabalho de Metzker e não do GPJ?

Louvável por si mesma, a qualidade da análise de Metzker serve também para destacar as deficiências das estatísticas produzidas pelo STJ. Com toda a sua infraestrutura e pessoal especializado, a jurimetria do tribunal não trouxe o grau de detalhamento observado na pesquisa do advogado capixaba.

Em regra, as informações disponíveis pelo Tribunal estão mais ligadas à distribuição de processos de acordo com o período, com o ministro-relator, por volume de julgamentos e de redução de acervo. São dados frios que revelam muito pouco sobre o comportamento da Corte Superior, de seus integrantes e dos tribunais ordinários.

Por outro lado, Meztker trouxe dados qualitativos: número de processos por estado; percentual de provimento/desprovimento de recursos, com indicação do recorrente (MP, defensoria, advogado) e da matéria; comparativo entre liminares, negativas e superação da Súmula 691-STF; tipos de crime envolvidos, dentre tantos outros.

A ressonância que o trabalho do professor encontrou na comunidade jurídica se dá pela capacitação que proporciona a quem quer ser ouvido no STJ. Enquanto a jurimetria oficial só permite compreender o absurdo volume de demandas que entram e que saem do tribunal.

Metzker traçou um mapa detalhado que permite até ao mais inexperiente dos navegadores velejar com mais segurança pelas águas tormentosas do tribunal, desviando de obstáculos de jurisprudência defensiva e permitindo a compreensão de tendências no comportamento dos julgadores. Algo valiosíssimo no ambiente de sobrecarga que impera no STJ.

Já a jurimetria oficial traça um mapa que só aponta o ponto de partida e o ponto de chegada.

Algo de errado

Vivemos em uma era em que a automação e a inteligência artificial revolucionaram a maneira como gerimos e analisamos dados. E, ainda assim, o STJ parece recorrer a números que dizem muito pouco sobre a qualidade da prestação jurisdicional. Metzker, sozinho, nos trouxe muito mais informação, qualitativa e quantitava, do que todo o aparato de um tribunal.

Se a produtividade de um agricultor familiar supera a de um grande latifundiário, há algo de muito errado na forma como a grande propriedade é istrada. Por quê? Porque a disposição de maiores recursos traz consigo a responsabilidade por resultados melhores.

De igual maneira, as ferramentas e os recursos disponíveis ao STJ lhe trazem o ônus de melhorar a qualidade e a ibilidade das estatísticas oficiais. A crítica não é dirigida unicamente ao STJ. Muito longe disso, o Tribunal da Cidadania é apenas um exemplo de uma visão institucionalizada do Poder Judiciário que enxerga a jurimetria de forma limitada.

Nosso ponto é que, do mesmo modo que seria impossível encontrar voluntários para o experimento de Mr. Beast na Finlândia porque lá a saúde pública é de qualidade, o STJ deveria agir para que o trabalho de David Metzker fosse desnecessário. Melhor, para que, a partir da jurimetria oficial, fosse possível ao profissional traçar reflexões ainda mais sofisticadas.

Convite à ação

Jurimetria oficial é uma questão de transparência, algo que deve ser visto como um desafio ao fortalecimento da confiança pública no Poder Judiciário e não como uma ameaça. Abrir dados ao público permitiria análises independentes e potencialmente reveladoras sobre a eficiência e eficácia do tribunal. Ainda, sobre gargalos e desigualdades no o à justiça entre os diferentes estados e carreiras do Direito.

Do mesmo jeito que o STF ganhou a alcunha de “Guardião da Constituição”, o STJ é chamado frequentemente de “Tribunal da Cidadania”. O nome é justificado: a corte foi e é fundamental na defesa de uma série de direitos fundamentais.

A questão é que a cidadania também se constrói a partir da capacitação da sociedade civil para informar, criticar e melhorar a atuação das instituições. Isso só é possível com transparência que, no mundo do Direito, implica fortalecimento da jurimetria oficial.

Nesse sentido, é preciso que o STJ encare o cenário traçado como um convite à ação de reavaliação e reforma de suas práticas, enquanto um reflexo de seu dever enquanto Tribunal da Cidadania. Isso porque a promoção da cidadania não se deve se dar apenas a partir de seus julgamentos, mas também a partir de sua comunicação, algo que a sociedade espera e merece do STJ.

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