Apontamentos históricos sobre a liberdade testamentária
24 de junho de 2024, 13h24
Afirma-se que a liberdade para dispor causa mortis tem sua origem no direito romano, embora os romanistas debatam se esta liberdade já existia na época arcaica ou foi introduzida em momento posterior. Uma primeira corrente entende que a norma 5.3 da Lei das 12 Tábuas [1] reconhecia ao testador ampla liberdade para dispor livremente de seus bens em favor de qualquer pessoa, de forma que se poderia incluir no testamento comicial [2], além da transmissão da soberania familiar, outras disposições, como nomeação de tutor e instituição de legados.

Em sentido contrário, sustenta-se que não se poderia falar de verdadeira liberdade para testar até os séculos 4-3 a.C, à época do desenvolvimento econômico de Roma, que deixaria de ser uma sociedade eminentemente agrícola, com os bens vinculados à terra, para começar a se destacar como uma potência comercial, estabelecendo-se uma economia de troca, traduzida, do ponto de vista sucessório, na aparição do testamentum per aes libram [3], possibilitando que o testador instituísse os sui heredes [4] ou os deserdasse, nomeando terceiros estranhos [5].
Afigurava-se imprescindível, no testamento romano, a instituição de herdeiro (heredis institutio). Poderia haver disposição de última vontade sem instituição de herdeiro, mas este ato não constituía testamento, senão codicilo, que somente surgiu ao tempo de Augusto [6]. Certo é que a instituição de herdeiro deveria ser feita in perpetum (semel heres, semper heres — uma vez herdeiro, sempre herdeiro) e este deveria receber toda a herança, e não apenas parte dela (nemo partim testatus decedere potest — ninguém pode falecer em parte testatus e, em parte, intestatus), embora fosse possível a instituição de uma pluralidade de herdeiros.
Diz-se, embora não sem questionamentos [7], que a denominada herança material ou direito hereditário material [8] surge no final da República, quando se ou a censurar aqueles que deserdavam, sem motivo justo, determinados parentes próximos, predominando o princípio de que o testador tinha o dever de afeição (officium pietatis), de modo que o testamento que contivesse tais deserdações seria inofficiosum (inoficioso, ou seja, contra o officium pietatis).
Deste modo, determinados herdeiros poderiam utilizar a querela inofficiosi testamenti na hipótese de o testador não deixar, a estes parentes, a quota que lhes seria destinada se a sucessão fosse ab intestado (inexistência de testamento ou sendo ineficaz em sentido estrito, ou nulo) [9].
No direito clássico, esta quota (portio debita ou legitima) era constituída da quarta parte dos bens do testador, por analogia à quarta da lei Falcidia, relativa aos legados, calculada sobre o patrimônio líquido do testador no momento de sua morte. Justiniano, posteriormente, na Novella 18, estipulou que a portia debita ou legitima corresponderia à terça parte, se existissem descendentes até o número de quatro, ou metade dos bens, caso o testador tivesse deixado cinco ou mais filhos [10]. Na Novella 115, Justiniano fixou que os descendentes e ascendentes, além de terem o direito à portio legitima, deveriam ser necessariamente instituídos herdeiros (herdeiros necessários).
Por sua vez, não se pode falar, inicialmente, de um direito hereditário germânico. O proprietário da terra, no sentido atual do termo, não era o camponês ou o grupo de familiares vivos em dado momento, mas a cadeira geracional concebida como unidade supratemporal e eterna, a qual pertenciam tanto os mortos quanto os vivos e inclusive aqueles por nascer. A terra ava dos pais para os filhos sem a necessidade de intervenção do direito hereditário, pois “os bens fluem como sangue” (“Das Gut rinnt wie das Blut”) [11].
Salvação das almas
A mudança desta concepção se efetiva com o surgimento da Igreja missionária, que compensava a cessão de bens imóveis com a salvação de almas. Assim, as primeiras disposições testamentárias a serem estabelecidas foram aquelas realizadas para o bem da alma do doador. Aquele que não fizera nenhuma doação testamentária para fins piedosos tinha sua confissão e absolvição negadas, obrigado a morrer intestatus e incofessus.
O instituto da doação testamentária unilateral se consolida, destarte, na segunda metade da Idade Média, por forte influência da Igreja, que assumia a jurisdição nos casos de testamentos e defendia, em teoria, a liberdade das disposições mortis causa. A Igreja sempre desenvolveu meios para moderar os requisitos formais do direito romano relativos aos testamentos [12].
Na Alta Idade Média, o rígido princípio germânico foi gradualmente sendo modificado, à medida que os laços familiares e tribais se perderam e em razão da forte influência canônica, de forma que as disposições mortis causa refletiam um amálgama de elementos oriundos de diversos sistemas [13].

Não se afigura correto afirmar, neste sentido, que o direito medieval saxão ignorava completamente as disposições post mortem, uma vez que o direito hereditário se desenvolveu por intermédio das doações inter vivos. O Sachsenspiegel, compilação do direito costumeiro saxão, datado do começo do século 13, embora não contivesse previsões expressas sobre testamentos, trazia restrições à possibilidade de uma pessoa ar a propriedade a terceiros, especialmente no que diz respeito aos bens imóveis [14].
Na zona rural, a sucessão testamentária sofreu maiores limitações, tendo em vista a possibilidade de um membro da família ocasionar a perda do patrimônio construído durantes gerações. Instituía-se, então, o fideicomisso familiar, pelo qual se entregava a istração fiduciária (fidei commissum — confiado à sua lealdade) dos bens, que somente podiam ser gravados com hipotecas com a permissão dos demais familiares, sem a faculdade de alienação.
Também por meio dos institutos do Anerbenrecht e do Näherrecht vinculava-se o solo à família. Pelo primeiro, ava-se a herança indivisa a um membro da geração seguinte, que deveria indenizar os irmãos não contemplados. O Näherrecht também restringia o direito testamentário, ao o que, aquele que desejasse alienar a terra, deveria previamente oferecê-la aos parentes. Caso assim não procedesse, cabível o direito de retratação (Retraksrecht), mediante o prévio reembolso do preço de compra [15].
O tema foi regulado também no direito comum prussiano (Allgemeines Landrecht für die Preußischen Staaten — ALR), em 1794, que previa expressamente o direito à legítima dos filhos, em proporção ao número de descendentes deixados. No BGB, o princípio da liberdade testamentária (Testierfreiheit) é limitado pelas restrições trazidas pelos §§ 2303 e seguintes, na medida em que os parentes próximos têm assegurado a legítima (Pflichtteilsrecht), correspondente à metade do valor da quota-parte legal da herança [16].
Relativamente ao direito luso-brasileiro, tem-se reconhecido notadamente a influência do direito visigótico, que, no século 5, ao tempo da invasão visigótica na Península Ibérica, formou, em razão da confluência de algumas regras germânicas e princípios sucessórios romano-vulgares, um sistema sucessório deveras original [17], embora se ita a obscuridade do regramento emprestado por este povo, especialmente em razão da precariedade das fontes que nos chegaram.
No Código Visigótico, fixa-se como legítima, em favor apenas dos descendentes, quatro quintos do patrimônio do falecido, estabelecendo-se a quota disponível em apenas um quinto, a denominada “quinta visigótica” [18].
Direito foraleiro
Com a Reconquista e a formação, em 1139, do Reino de Portugal, tem-se uma grande concorrência de fontes do Direito em Portugal, sobressaindo-se o direito foraleiro, em que cada foral determinava a sua fração, com parcelas abrangendo desde um oitavo até metade da herança. Com a posterior centralização istrativa e jurídica, são editadas as Ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e Filipinas (1603), todas fixando a legítima em dois terços, independentemente do número de filhos. As Ordenações portuguesas, por influência do direito românico e do direito canônico, e diferentemente do direito visigótico, preveem os as ascendentes como herdeiros necessários.
Teixeira de Freitas, em sua Consolidação das Leis Civis, artigo 1.008, reforça o direito dos herdeiros necessários às duas partes dos bens do testador, considerando-se como herdeiros necessários os descendentes e os ascendentes (artigo 1.006). A disciplina só vem a ser alterada com a “Lei Feliciano Penna” (Decreto nº 1.839/1907), que aumentou a quota disponível para metade da herança, redefinindo ainda a ordem de sucessão ab intestato.
À época da elaboração do Código de 1916, o Senado chegou a aprovar emendas que previam a abolição da legítima. De volta à Câmara, no entanto, foi repelida a inovação, apesar do apoio de alguns parlamentares (45 votos contra 76) [19]. O próprio Clóvis Beviláqua pretendia, inicialmente, restaurar a “terça” das Ordenações portuguesas, tendo prevalecido na Câmara, contudo, o sistema da “Lei Feliciano Pena” [20].
Manteve-se, assim, a legítima correspondente à metade do patrimônio deixado, calculando-se a quota disponível sobre o total dos bens existentes, abatidas as dívidas e as despesas do funeral (artigo 1.722). A ordem de vocação hereditária foi definida da seguinte forma: a) descendentes; b) ascendentes; c) cônjuge sobrevivente; d) Estados, Distrito federal ou à União (artigo 1.603).
O Código Civil de 2002 também estabeleceu a legítima em metade da herança (artigo 1.846), trazendo como novidade a previsão do cônjuge como herdeiro necessário (artigo 1.845), sem mencionar expressamente o companheiro, o que tem gerado acirradas discussões na doutrina. A ordem de vocação hereditária sofreu alterações, explicitando um confuso sistema de concorrência, a depender do regime de bens em que casado o cônjuge ou companheiro com o falecido (artigo 1.829).
Consta do Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil inovações como a retirada do cônjuge do rol de herdeiros necessários (artigo 1.845), bem como o estabelecimento de uma ordem de vocação hereditária mais simplificada [21]. Conserva-se a legítima em metade dos bens da herança, possibilitando-se, contudo, que o testador destine até um quarto da legítima a descendentes e ascendentes que sejam considerados vulneráveis ou hipossuficientes (artigo 1.846).
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).
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[1] “Uti legassit super pecunia tutelave suae rei, ita ius esto”.
[2] O testamento comicial parece ter sido uma espécie de adoção por causa da morte, constituindo o seu objeto, exclusiva ou principalmente, permitir a quem não possuía descendentes impedir o desaparecimento de sua casa e do culto familiar (JÖRS, Paul; KUNKEL, Wolfgang. Derecho privado romano. Trad. L. Prieto Castro. Barcelona: Editorial Labor, 1937, p. 438).
[3] Trata-se originalmente de uma alienação fiduciária entre vivos, que se realizava com a entrega de seus bens, pelo testador, a uma pessoa de confiança (familiae emptor), com o encargo de transmiti-lo, depois de sua morte, às pessoas indicadas por aquele (JÖRS, Paul; KUNKEL, Wolfgang. Derecho privado romano…, cit., p. 438).
[4] “Os sui heredes eram as pessoas que estariam sob o pátrio poder ou a manus do de cuius, se ainda estivesse vivo” (MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito romano. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 744).
[5] PEDREIRA, Adela López. ¿Se está modificando el régimen de legítimas en el Código Civil español? In: LOUREIRO, João Costa (org). O direito das sucessões: ao direito romano ao direito actual. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 1295-1296.
[6] NONATO, Orosimbo. Estudos sobre sucessão testamentária. Rio de Janeiro: Forense, 1957, v. 1, p. 72.
[7] Acerca da controvérsia, cf. MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais: 1984, v. 55, p. 205-208.
[8] O testador possuía restrições de duas ordens: a) formal – deveria mencionar, no testamento, alguns herdeiros legítimos, seja para instituí-los herdeiros, seja para deserdá-los; b) material – necessidade de atribuir a certos herdeiros legítimos certa quota de bens (MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito romano…, cit., p. 755).
[9] MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito romano…, cit., p. 760-761.
[10] Examinava-se o patrimônio do falecido no momento da morte, deduzidas as despesas do funeral e as dívidas, computando-se o que o testador deixou em bens, mesmo que com a denominação de legado ou fideicomisso (WARNKOENIG, L. A. Instituições de direito romano privado compostas em latim. Trad. Antonio Maria Chaves e Mello. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1882, p. 248).
[11] HATTENHAUER, Hans. Conceptos fundamentales del derecho civil. Trad. Gonzalo Hernández. Barcelona: Editorial Ariel, 1987, p. 172.
[12] HÜBNER, Rudolf. A History of Germanic Private Law. Trad. Francis S. Philbrick. New Jersey: The Lawbook Exchange, 2000, 750-751.
[13] SZENDE, Katalin. From mother to daughter, from father to son? Inheritance of movables in late medieval Pressburg. In: SZENDE, Katalin; ELIASSEN, Finn-Elinar. Generation in towns: succession and success in pre-industrial urban societies (ed.). Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2009, p. 47.
[14] RÜFNER, Thomas. Customary mechanisms on family protection: late medieval and early-modern law. In: REID, Kenneth G. C.; WAAL, Marius J. De; ZIMMERMANN, Reinhard (eds.). Comparative succession law: mandatory family protection. Oxford: Oxford University Press, 2020, p. 59.
[15] HATTENHAUER, Hans. Conceptos fundamentales del derecho civil…, cit., p. 176.
[16] TRULSEN, Marion. Pflichtteilsrecht und englische family provision im Vergleich. Tübingen: Mohr Siebeck, 2004, p. 5 e ss.
[17] CRUZ, G. Braga da. A sucessão legítima no código euriciano. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 29, p. 198– 274, 1953.
[18] HIRATA, Alessandro; MARCOLINI FILHO, Guilherme. A origem e o desenvolvimento da legítima no direito romano e seus reflexos no direito brasileiro. In: SALMORIA, Camila Henning et al. (orgs). Temas de direito civil contemporâneo. Ponta Grossa: Atena, 2024, p. 184.
[19] BEVILÁQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. 10. ed. Rio de Janeiro: Paulo de Azevedo, 1958, v. 6, p. 12.
[20] MAXIMILIANO, Carlos. Direito das sucessões. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1937, v. 1, p. 364-365.
[21] “Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes; II – aos ascendentes; III – ao cônjuge ou ao convivente sobrevivente; IV – aos colaterais até o quarto grau”
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