Opinião

Noite ou dia: os desafios na execução de mandados

Autor

  • é delegado de polícia do estado de São Paulo pós-graduado pela Faculdade de Direito de Coimbra (FDUC) e pela Pontifícia Universidade Católica do Chile (PUC-Chile) e especialista em Segurança Pública Direito Penal e Direito Processual Penal.

    Ver todos os posts

17 de maio de 2024, 7h02

O cumprimento do mandado de busca e apreensão no Brasil é tema delicado que envolve o exercício do poder estatal para garantir a segurança pública e a aplicação da lei, ao mesmo tempo em que se respeitam os direitos essenciais de todos. Um dos princípios basilares a serem observados nesse contexto é a inviolabilidade do domicílio, definida no artigo 5º, XI, da Constituição.

Polícia Federal

A inviolabilidade do domicílio é um direito fundamental que assegura a todo indivíduo ter sua casa respeitada como local de privacidade e de proteção contra invasões arbitrárias por parte do Estado. No entanto, esse direito não é absoluto e pode ser relativizado nas hipóteses constitucionais: (1) mediante consentimento do morador; (2) em caso de flagrante delito; (3) em situação de desastre; (4) para prestar socorro; e (5) por ordem judicial, desde que se cumpra durante o dia.

Importante ressaltar que o conceito de “casa” para fins de inviolabilidade do domicílio é interpretado de forma ampla pela jurisprudência brasileira. Ele não se limita apenas à residência onde alguém vive permanentemente, mas também pode incluir outros locais que sirvam como moradia temporária ou mesmo espaço de trabalho, como quartos de hotéis, de pensões, apartamentos alugados; ou seja, onde haja uma expectativa razoável de privacidade por parte do ocupante.

E o mandado de busca e apreensão é uma ordem judicial que autoriza os agentes policiais a adentrarem na casa de uma pessoa para realizar buscas e apreender o que possa servir como provas de um crime praticado; o que, conforme já mencionado, somente pode ser cumprida durante o dia, por expressa disposição do artigo 5º, XI, da Constituição.

Dia ou noite?

A partir daí surgem alguns questionamentos, como: o que é dia e o que é noite? Qual é o momento em que os agentes policiais poderão concretizar a ordem expedida? Esperar o marcador do relógio ou a luz do dia? Qual a porcentagem de luz que termina a noite e dá início ao dia? A definição desses períodos tem sido objeto de intensa discussão e controvérsia, já que não existe consenso doutrinário ou jurisprudencial sobre o tema.

Atualmente, subsistem diferentes critérios utilizados para determinar esses períodos: o critério cronológico, o critério temporal, o critério físico-astronômico e o critério misto são alguns dos mais comuns.

O critério legal se baseia na Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/19) que estabelece um horário específico para cumprimento do mandado de busca e apreensão. Define-se que a concretização da ordem judicial das 21h às 5h é conduta apta a tipificar crime de abuso de autoridade (artigo 22, § 1º, III). Por essa razão, parcela doutrinária entende que período noturno é exatamente este horário estampado na lei: das 21h às 5h.

Por exclusão, tem-se que dia é das 5h às 21h. Nesse período (dia), o cumprimento do mandado estaria de acordo com a Constituição, sendo válida e não tipificando crime (ao menos no que diz respeito ao horário de execução da ordem) a diligência. Já o cumprimento noturno, após 21h e antes das 5h, invalidaria o ato e possibilitaria conferir natureza criminosa à conduta.

Parcela doutrinária enxerga o critério legal como o mais imutável, consagrado na legislação e deliberado pelos representantes democraticamente eleitos pelo corpo político, conferindo-lhe uma base democrática sólida. O que proporciona não apenas maior segurança jurídica, mas também promove a estabilidade e a confiança necessárias para o funcionamento eficaz do ordenamento jurídico.

O critério cronológico leva em consideração um aproximado de horários em que o sol nasce e se põe, predominantemente fixado pela doutrina das 6h às 18h, buscando solidez em sua definição. Então, nessa faixa de horário (6h às 18h) temos o dia. Entre as 18h e 6h do dia seguinte, temos o conceito de noite.

O critério físico-astronômico considera a luminosidade ambiente e as condições meteorológicas para determinar o que é dia. O raiar do sol com suas primeiras luzes invadindo a cidade indica o começo do dia, possibilitando o ingresso domiciliar. O pôr do sol e a ausência de sua luz indicam o começo da noite, obstando a entrada.

Já o critério misto combina elementos dos critérios cronológico e físico-astronômico, buscando uma abordagem mais equilibrada: luminosidade ou o horário; o que, naquele contexto, for mais benéfico ao réu/investigado. Caso o relógio marque 6h30, mas a escuridão da noite ainda permeie o ambiente, deve-se esperar o alvorecer.

Parâmetro rejeitado

No informativo de nº 800 foi noticiada a decisão prolatada pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) rejeitando a adoção do critério legal. Entendeu a corte que violar domicílio alheio em razão de cumprimento de mandado de busca e apreensão depois das 5h é ível de nulidade, caso ainda esteja de noite.

Nota-se a adoção de critério outro, dando o STJ primazia à luminosidade do ambiente para execução da ordem judicial, o que parece se aproximar da escolha do critério físico-astronômico, ou mesmo misto, para determinação do que é dia e/ou noite.

Como consequência do julgado, tem-se possível a existência de violação de domicílio que é ilícita (gerando sua nulidade), mas que não tipifica abuso de autoridade, como o cumprimento da ordem judicial às 5h30, porém em momento que ainda estava escuro/noite.

Nestes casos não há crime, porque o tipo penal expressamente aloca como seu elemento que o mandado seja executado entre as 21h e 5h para que a conduta seja delitiva (artigo 22, § 1º, III, da Lei 13.869/19). E a diligência é ível de nulidade, pois, a depender do critério adotado, não seria possível cumpri-la caso ainda ausente o amanhecer.

Assim, resta-nos dois cenários: um critério fixado na legislação para tipificação do crime de abuso de autoridade (horário), e outro para aferir a legalidade (ou não) da execução da ordem judicial exarada (luz solar).

Atualmente, pode-se identificar o critério misto como o que concede maior segurança jurídica aos envolvidos, devendo os agentes policiais realizarem a diligência após as 5h e desde que já exista a luz da manhã permeando o ambiente. Apenas poderão realizá-la durante o período em que seja dia. Com o cair da noite, ausente a direta luz solar, a diligência poderá ser invalidada, mesmo que antes das 21h.

Inegável, portanto, que o cumprimento do mandado de busca e apreensão no Brasil envolve uma série de desafios e dilemas, especialmente no que diz respeito à definição dos horários para sua execução. É fundamental que os agentes policiais e as autoridades judiciais estejam atentos a essas questões e busquem adotar critérios que respeitem os direitos fundamentais dos cidadãos e ao mesmo tempo garantam a eficácia das investigações criminais.

Autores

  • é delegado de polícia do estado de São Paulo, pós-graduado pela Faculdade de Direito de Coimbra (FDUC) e pela Pontifícia Universidade Católica do Chile (PUC-Chile) e especialista em Segurança Pública, Direito Penal e Direito Processual Penal.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!