Quando a verba do Fundeb pode ser utilizada em outra esfera pelos prefeitos
8 de março de 2024, 7h04
O Decreto-Lei nº 201/1967, que dispõe sobre a responsabilidade dos prefeitos e vereadores, prevê, ao longo dos 23 incisos de seu artigo 1º, uma série de crimes de responsabilidade que podem ser perpetrados por prefeitos.
Aqui, cumpre destacar as modalidades previstas nos incisos II e III do referido dispositivo, que punem as condutas de “utilizar-se, indevidamente, em proveito próprio ou alheio, de bens, rendas ou serviços públicos” e de “desviar, ou aplicar indevidamente, rendas ou verbas públicas”, respectivamente.
Nesse contexto, sempre foi muito comum a investigação, e posterior acusação, da prática desses delitos por parte de prefeitos que, ao receberem, por exemplo, recursos públicos federais via precatório, provenientes do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) — que substituiu o antigo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização do Magistério (Fundef) —, destinavam parte desse montante ao pagamento de honorários advocatícios, devidos a escritórios de advocacia que atuavam no patrocínio do Município, visando ao recebimento de valores da educação.
Isso ocorria muito (e ainda ocorre) em municípios pequenos, que não possuem uma Procuradoria-Geral do Município (PGM), [1] necessitando, por conseguinte, contratarem advogados particulares para ajuizarem ações coletivas — geralmente por meio de associações municipalistas —, visando à complementação de valores devidos pelo antigo Fundef.
Nessa toada, era/é comum a fixação de honorários contratuais entre as partes em um percentual a ser recebido pelo município do valor do precatório da União, de modo que, uma vez recebido o valor do precatório, parcela dessa quantia seria destinada ao pagamento do escritório de advocacia.
Sucede que, até pouco tempo, era assente na jurisprudência o entendimento de ser vedado o uso de recursos do Fundef/Fundeb no financiamento de despesas que não se enquadrem em ações de desenvolvimento e manutenção do ensino, de modo que o pagamento de honorários advocatícios se encaixa nessa vedação:
[…] 1. A Primeira Seção do STJ, na sessão de julgamento do dia 10/10/2018, no bojo do REsp 1.703.697/PE, sob a relatoria do Ministro Og Fernandes, firmou entendimento no sentido de não ser possível o destaque dos honorários advocatícios contratuais, nos termos do art. 22, § 4º da Lei 8.906/94, em crédito do FUNDEB/FUNDEF concedido por via judicial, em face da vinculação constitucional e legal dos referidos recursos a investimentos na área da educação (REsp 1.703.697/PE, Rel. Ministro Og Fernandes, Primeira Seção, DJe de 26/02/2019). […]
(AgInt nos EDcl no REsp n. 1.638.668/AL, relator Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 29/11/2021, DJe de 2/12/2021).
Embargos de declaração em embargos de declaração em agravo regimental em embargos de declaração em recurso extraordinário. 2. Direito Financeiro. 3. Vinculação de verbas da União para manutenção e desenvolvimento da educação básica. Uso dos recursos para despesas diversas. Inviabilidade. 4. Ausência de omissão, contradição ou obscuridade. Acórdão embargado suficientemente motivado. Embargos protelatórios. 5. Embargos de declaração rejeitados, sem majoração da verba honorária.
(RE 1122970 ED-AgR-ED-ED, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 22-08-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-173 DIVULG 30-08-2021 PUBLIC 31-08-2021).

Assim, a princípio, estar-se-ia utilizando e/ou aplicando de forma indevida verbas recebidas via precatório da União para pagamento de despesas estranhas à esfera da educação (honorários advocatícios), o que configura, ao menos formalmente, o crime do artigo 1º, II e/ou III, do Decreto-Lei nº 201/67.
Contudo, tal hipótese criminal não pode mais ser vislumbrada, porquanto, em março de 2022, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 528/DF, o Supremo Tribunal Federal considerou constitucional a utilização do valor dos juros de mora, de natureza não vinculada e indenizatória, nas ações judiciais relacionadas com verbas do Fundef/Fundeb, para pagamento de honorários advocatícios.
Eis um trecho do acórdão:
[…] 1. A orientação do TCU que afasta a incidência da regra do art. 22 da Lei 11.494/2007 aos recursos de complementação do FUNDEB pagos por meio de precatórios encontra-se em conformidade com os preceitos constitucionais que visam a resguardar o direito à educação e a valorização dos profissionais da educação básica.
- O caráter extraordinário da complementação dessa verba justifica o afastamento da subvinculação, pois a aplicação do art. 60, XII, do ADCT, c/c art. 22 da Lei 11.494/2007, implicaria em pontual e insustentável aumento salarial dos professores do ensino básico, que, em razão da regra de irredutibilidade salarial, teria como efeito pressionar o orçamento público municipal nos períodos subsequentes – sem o respectivo aporte de novas receitas derivadas de inexistentes precatórios –, acarretando o investimento em salários além do patamar previsto constitucionalmente, em prejuízo de outras ações de ensino a serem financiadas com os mesmos recursos.
- É inconstitucional o pagamento de honorários advocatícios contratuais com recursos alocados no FUNDEF/FUNDEB, que devem ser utilizados exclusivamente em ações de desenvolvimento e manutenção do ensino. Precedentes.
- A vinculação constitucional em questão não se aplica aos encargos moratórios que podem servir ao pagamento de honorários advocatícios contratuais devidamente ajustados, pois conforme decidido por essa CORTE, “os juros de mora legais têm natureza jurídica autônoma em relação à natureza jurídica da verba em atraso” (RE 855091-RG, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 15/3/2021, DJe de 8/4/2021).
- Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental julgada IMPROCEDENTE.
(ADPF 528, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 21-03-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-075 DIVULG 20-04-2022 PUBLIC 22-04-2022).
Ou seja, o valor principal de precatório pago pela União não pode ser objeto de desconto para fins de pagamento de honorários advocatícios contratuais, por ser uma parcela vinculada e destinada aos programas de desenvolvimento educacional.
Porém, esse impedimento não se estende aos encargos moratórios decorrentes deste precatório, que poderão servir à quitação de honorários advocatícios devidamente ajustados com o Município — desde que, obviamente, os valores utilizados para tal fim estejam limitados ao valor global recebido a título de encargos moratórios.
Isso foi ratificado pelo plenário do STF em sede de repercussão geral (Tema nº 1256), ocasião em que foram fixadas as seguintes teses:
[…] 1. O Supremo Tribunal Federal, ao julgamento da ADPF 528/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, DJe 22.4.2022, assentou a inconstitucionalidade do destaque das verbas destinadas ao FUNDEF/FUNDEB para pagamento de honorários advocatícios. Na ocasião, o Plenário desta Suprema Corte, por maioria, ressaltou que a possibilidade de pagamento de honorários advocatícios contratuais pelos Municípios valendo-se tão somente da verba correspondente aos juros moratórios incidentes no valor do precatório devido pela União é constitucional.
- Recurso Extraordinário provido em parte, para permitir que a verba honorária seja destacada tão somente dos valores correspondentes aos juros moratórios incidentes no valor do precatório devido pela União.
- Fixadas as seguintes teses: 1. É inconstitucional o emprego de verbas do FUNDEF/FUNDEB para pagamento de honorários advocatícios contratuais. 2. É possível utilização dos juros de mora inseridos na condenação relativa a rees de verba do FUNDEF, para pagamento de honorários advocatícios contratuais.
(RE 1428399 RG, Relator(a): MINISTRA PRESIDENTE, Tribunal Pleno, julgado em 16-06-2023, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-141 DIVULG 26-06-2023 PUBLIC 27-06-2023).
Tal entendimento também foi positivado pela Lei nº 14.365/2022, que incluiu o artigo 22-A à Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil):
Art. 22-A. Fica permitida a dedução de honorários advocatícios contratuais dos valores acrescidos, a título de juros de mora, ao montante reado aos Estados e aos Municípios na forma de precatórios, como complementação de fundos constitucionais.
Parágrafo único. A dedução a que se refere o caput deste artigo não será permitida aos advogados nas causas que decorram da execução de título judicial constituído em ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal.
Apesar disso, houve uma resistência inicial dos tribunais[2] em cumprirem o precedente do STF, firmado em sede de controle concentrado de constitucionalidade, com a manutenção do argumento de que seria ilegal o pagamento de honorários advocatícios com base no valor dos juros de mora, posto que, tratando-se de verba ória, deve seguir a sorte do principal — violando, assim, o artigo 927, I, do Código de Processo Civil,[3] e o artigo 10, § 3º, da Lei nº 9.882/1999.[4]
Todavia, atualmente, é firme nos Tribunais Regionais Federais ao redor do país a aplicação da tese assentada,[5] que também vem sendo aplicada de forma pacífica por ambas as turmas do Supremo:
Embargos de declaração no agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. 2. Direito istrativo e Processual Civil. 3. Legitimidade do Município. Discussão de índole infraconstitucional. Ofensa reflexa à Constituição Federal. 4. FUNDEB. Complementação de recursos. Ree pela União. 5. Pagamento de honorários advocatícios contratuais. Possibilidade de utilização dos valores recebidos a título de juros de mora. ADPF 528. 6. Embargos de declaração acolhidos, com efeitos infringentes, para dar parcial provimento ao recurso extraordinário.
(ARE 1205203 AgR-ED, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Relator(a) p/ Acórdão: GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 22-05-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 27-06-2023 PUBLIC 28-06-2023).
[…] 1. No julgamento da ADPF 528, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o caráter constitucionalmente vinculado das verbas orientadas à educação inseridas no FUDEB-FUNDEF.
- O pagamento dos honorários advocatícios contratuais referente à condenação de complementação de transferência de verbas destinadas ao FUNDEB-FUNDEF revela-se cabível quando incidentes sobre eventuais encargos moratórios, que não estão constitucionalmente vinculados e possuem natureza jurídica autônoma da verba principal em mora.
- Embargos de declaração acolhidos, com efeitos infringentes, para itir o agravo e DAR provimento ao recurso extraordinário, com fundamento no disposto no artigo 932, V, do Código de Processo Civil/2015 e no 21, § 1º, do RISTF, reformando o acórdão recorrido para itir a execução dos honorários advocatícios contratuais na forma do decidido pelo Pleno desta Corte no julgamento da ADPF 528.
(ARE 1375480 AgR-ED, Relator(a): LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 22-02-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 24-02-2023 PUBLIC 27-02-2023).
No mesmo sentido, as duas turmas especializadas em Direito Público do Superior Tribunal de Justiça:
[…] 1. Presente a vinculação dos recursos provenientes do FUNDEF, independentemente de como tenham sido obtidos pelo município (por transferência direta da União ou pelo posterior reconhecimento judicial do valor faltante), sua destinação remanescerá vinculada às finalidades do fundo, ou seja, direcionada à exclusiva manutenção e ao desenvolvimento do ensino de base, sendo vedado o emprego dos respectivos montantes em situações diversas, a exemplo da pretendida retenção para o adimplemento de verba advocatícia contratual.
- No entanto, ante o que foi decidido pelo STF na ADPF n. 528/DF, esta proibição não exclui a alternativa de que, uma vez requerida a retenção dos honorários advocatícios contratuais, conforme permitido no art. 22, § 4º, da Lei 8.906/94, a verba seja extraída do valor correspondente aos juros de mora incidentes sobre o quantum devido pela União.
- Embargos de declaração acolhidos, com efeitos infringentes, para tornar sem efeito a decisão embargada e, em novo exame, dar parcial provimento ao agravo interno.
(EDcl no AgInt no REsp n. 1.868.269/CE, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 23/10/2023, DJe de 26/10/2023).
[…] I – Na origem, trata-se de impugnação apresentada pela União ao cumprimento de sentença ajuizada por Município e Escritório de Advocacia, relativamente à verba de ree do Fundo de Manutenção de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério – FUNDEF.
II – Na sentença, extinguiu-se o feito, por inexequibilidade do título. No Tribunal a quo, a sentença foi reformada, para determinar a execução do valor devido, nos termos dos cálculos apresentados pelo contador do Juízo, bem como para reconhecer que é direito do causídico a retenção do percentual de honorários contratuais se requerida mediante a juntada do contrato, antes da expedição do requisitório.
III – Nesta Corte, deu-se parcial provimento ao recurso especial da União para afastar a possibilidade de retenção do valor correspondente aos honorários advocatícios contratuais na quantia a ser paga por meio de precatório, decisão mantida em agravo interno.
IV – Ocorre que, ao julgar a ADPF n. 528/DF, o Supremo Tribunal Federal, declarando constitucional o respectivo acórdão do Tribunal de Contas da União, vedou o pagamento dos honorários advocatícios contratuais com recursos alocados no FUNDEF/FUNDEB, ressalvado o pagamento de honorários advocatícios contratuais valendo-se da verba correspondente aos juros de mora incidentes sobre o valor do precatório devido pela União em ações propostas em favor dos Estados e dos Municípios.
V – Nesse panorama, a hipótese se insere na natureza excepcional do recebimento dos aclaratórios.
VI – Embargos de declaração acolhidos, com excepcional efeito modificativo, para dar provimento ao agravo interno e, como consequência, reformar o comando decisório de parcial provimento ao recurso especial da União, no sentido de que a retenção da verba honorária não abrange a parcela correspondente aos juros de mora incidentes sobre o valor do precatório por ela devido.
(EDcl no AgInt no REsp n. 1.765.447/PE, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 22/5/2023, DJe de 24/5/2023).
Destarte, com base na jurisprudência atual acima esmiuçada, não há mais a possibilidade de se imputar ao prefeito que se vale do montante dos juros de mora, oriundo de valores destinados à educação, recebidos da União via precatório, para pagar honorários contratuais ao advogado/escritório que represente o município, o cometimento do delito de responsabilidade tipificado no artigo 1° do Decreto-Lei nº 201/67, dada a manifesta atipicidade da conduta.
[1] Segundo pesquisa divulgada nesta ConJur em 2017, das 5.570 cidades brasileiras, 3.677 não têm procuradores municipais concursados, o que representa 66% dos municípios. Disponível em: /2017-dez-03/76-cidades-brasileiras-nao-procurador-concursado/. o em: 27 fev. 2023.
[2] Dentre outros, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (PROCESSO: 08012057720204058302, APELAÇÃO CÍVEL, DESEMBARGADOR FEDERAL PAULO MACHADO CORDEIRO, 2ª TURMA, JULGAMENTO: 09/05/2022).
[3] Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
[4] Art. 10. Julgada a ação, far-se-á comunicação às autoridades ou órgãos responsáveis pela prática dos atos questionados, fixando-se as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental.
§ 3º A decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público.
[5] A título exemplificativo, os seguintes precedentes do TRF1 (AC 1007803-50.2017.4.01.3300, DESEMBARGADOR FEDERAL ROBERTO CARVALHO VELOSO, DÉCIMA TERCEIRA TURMA, PJe 14/09/2023) e do TRF5 (PROCESSO: 08038214120164050000, AGRAVO DE INSTRUMENTO, DESEMBARGADOR FEDERAL PAULO ROBERTO DE OLIVEIRA LIMA, 2ª TURMA, JULGAMENTO: 28/11/2023).
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