Ambiente Jurídico

O regime probatório nas ações cíveis em defesa do patrimônio cultural

Autor

2 de novembro de 2024, 8h00

A proteção do patrimônio cultural é uma obrigação imposta ao poder público e à comunidade, por força do que dispõe a Constituição em seus artigos 216, § 1º, 23, III e IV e 30, IX. Ademais, trata-se a preservação do patrimônio cultural brasileiro de um direito fundamental e difuso, não sendo juridicamente issível qualquer ameaça ou lesão a tal bem jurídico, em razão de sua relevância.

Tanto para o poder público quanto para os particulares, o patrimônio cultural brasileiro é sempre indisponível e deve ser preservado em atenção inclusive às gerações futuras. Ressalte-se que o direito de todos ao patrimônio cultural abrange não somente a guarda, preservação e proteção desse bem, mas também a sua promoção, nela se inserindo o direito de o e fruição pela coletividade em geral, diante de sua titularidade difusa.

A responsabilização civil pelos danos causados ao patrimônio cultural possui funções preventiva, precaucional, pedagógica e dissuasória [1], contribuindo para obstar que a prática de atos contrários à higidez dos bens culturais possa valer a pena ou servir de estímulo para outros comportamentos deletérios de tal bem jurídico.

Impende salientar que, nos termos do artigo 935 do Código Civil, a responsabilidade civil é independente da criminal. Por isso, o agente que degrada bens de valor cultural pode ser absolvido no juízo criminal em face da prática de um fato inicialmente considerado delituoso e, no entanto, ser obrigado à reparação do dano no juízo cível. O agente pode, ainda, ser civilmente obrigado à reparação do dano muito embora o fato causador da lesão seja penalmente atípico. Assim, em regra, a responsabilidade do agente em uma esfera não implica a responsabilidade em outra em decorrência da independência das instâncias.

Regime probatório

Tema que merece destaque no âmbito da tutela do patrimônio cultural diz respeito ao especial regime probatório aplicado às ações cíveis que buscam a proteção de tal bem jurídico, a exemplo da ação civil pública e da ação popular.

Em decorrência das intrincadas e diversificadas questões que lhe incumbe solucionar, o Direito do Patrimônio Cultural não pode ficar adstrito aos institutos clássicos do Direito Processual Individual Comum e, quanto à produção de provas, mais se destaca a necessidade de se buscar novos critérios normatizadores de sua produção e valoração, a fim de se alcançar decisões consentâneas com indiscutível essencialidade do direito ao meio ambiente cultural, cuja violação implica reflexos às presentes e futuras gerações.

Spacca

Destarte, é preciso trilhar novos caminhos processuais e alcançar a necessária e adequada tutela do patrimônio cultural, deixando de lado a ritualística, o formalismo e as regras clássicas e obsoletas do conhecido direito probatório, em nada condizentes com a natureza especialíssima do direito ao patrimônio cultural, o qual deve ser efetivado, obviamente, mediante regras também especiais [2].

Por isso, vigora em sede do Direito Processual Coletivo, fundado em regras publicistas de um Estado Social, o Princípio da Distribuição Dinâmica do Ônus da Prova, segundo o qual o encargo probatório deve ser ado por quem está em melhores condições e/ou possibilidades de produzir a prova, ficando afastadas as regras rígidas e estáticas da distribuição do “onus probandi”, tornando-as mais flexíveis e adaptáveis a cada caso concreto.

Pouco importa a posição da parte, se autora ou ré; também não interessa a espécie do fato, se constitutivo, impeditivo, modificativo, ou extintivo de direitos, pois o importante é que o juiz valore, caso a caso, qual das partes dispõe das melhores condições de ar o ônus da prova, e imponha o encargo de provar os fatos àquela que possa produzir a prova com menos inconvenientes, despesas, delongas, mesmo que os fatos objeto de prova tenham sido alegados pela parte contrária. Tal teoria foi expressamente encampada pelo artigo 373, § 1º do NC.

Inversão do ônus da prova

Vale ainda destacar que os princípios da prevenção e precaução exercem inegável influência na aplicação das regras materiais do Direito do Patrimônio Cultural, com repercussões de relevo também na avaliação da prova de danos ou ameaças ao meio ambiente cultural, uma vez que o enfoque do sistema jurídico ambiental ou a ser o da prudência e da vigilância no trato das atividades potencialmente degradadoras do meio ambiente, em detrimento do enfoque da tolerância com essas atividades [3], de forma que, “onde há risco de dano irreversível ou sério ao meio ambiente, deve ser tomada uma ação de precaução para prevenir prejuízos” [4].

Em razão da aplicação desses dois princípios, a a caber ao imputado degradador o encargo de provar, cabalmente, que sua atividade não causa danos ou ameaças aos bens integrantes do patrimônio cultural invertendo-se o ônus da prova em seu desfavor (in dubio cultura), o que se harmoniza com a Súmula 618 do STJ, segundo a qual: “A inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental”.

Nesse sentido já decidiu a jurisprudência:

“AMBIENTAL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DEFESA DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. POSSIBILIDADE. 1. A inversão do ônus da prova em lide ambiental tem lastro no princípio da precaução, com assento constitucional (artigo 225, § 1º, incisos IV e V, da Constituição Federal), no artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor (com aplicação ampliada a todos os domínios da ação civil pública), na Declaração de Estocolmo de 1972, e na própria natureza objetiva da responsabilidade do agente (artigo 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81 (Lei de Política Nacional do Meio Ambiente). Com efeito, aquele que cria ou assume o risco de provocar danos ambientais tem o dever de reparar os prejuízos efetivamente causados e, em tal contexto, transfere-se a ele todo o encargo de provar que sua conduta não produziu efeitos lesivos. 2. A defesa do patrimônio arqueológico é de natureza ambiental, pois o meio ambiente deve ser considerado em suas mais variadas acepções, dentre elas a cultural. 3. Em se tratando de bens de valor arqueológico, cabe aos réus demonstrarem que suas atividades não os expõem a risco de perecimento ou extravio, sendo precipitado afirmar, neste estágio processual, que a prova é impossível, o que poderá ser avaliado, oportunamente, pelo juízo a quo, à luz das alegações das partes.” (TRF 4ª R.; AG 5012804-23.2024.4.04.0000; 4ª Turma; relª desª fed. Vivian Josete Pantaleão Caminha; Julg. 28/8/2024; Publ. PJe 4/9/2024).

Realmente, a igualdade substancial implica em proporcionar que as partes que venham a juízo em paridade de armas, pois que “o processo não deve ser um jogo em que o mais capaz sai vencedor, mas instrumento de justiça, com o qual se pretende encontrar o verdadeiro titular de um direito” [5].

Destarte, a inversão do ônus probatório em sede de tutela do patrimônio cultural é medida que pode contribuir para  o alcance de decisões mais justas e condizentes com a natureza do bem jurídico colocado em jogo nas respectivas ações cíveis que buscam a sua proteção.

 


[1] RSTJ, a. 27, (239): 23-424, julho/setembro 2015. p. 33.

[2] En esta área ríspida, grisácea, dura, ardua, complicada, no cabe levantar obstáculos, óbices procesales ni criterios de hermenéutica rígidos o matizados de exceso ritual, ni clausurar medios que eventualmente resulten útiles para cumplir el propósito de a la verdad jurídicamente objetiva… Deberá el intérprete actuar com amplitud e flexibilidad, a través de um pensamiento integrado de las ciencias de la cultura y de las ciencias de la naturaliza. MORELLO, Augusto M. e CAFFERATTA, Néstor A. Visión procesal de cuestiones ambientales. Rubinzal – Culzoni Buenos Aires, 2004. p. 241.

[3] MIRRA, Luiz Álvaro Valery. Ação civil pública e a reparação do dano ao meio ambiente. 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004.  p. 265.

[4] Rodolfo de Camargo Mancuso, Ação Civil Pública, p. 197. TJMS; AG 2007.021287-1/0000-00; Camapuã; 4ª Turma Cível; Rel. Des. Atapoã da Costa Feliz; DJEMS 20/11/2007; Pág. 16.

[5] BEDAQUE, José dos Santos. Garantias da Amplitude de Produção Probatória in TUCCI, José Rogério Cruz e (Coord). Garantias Constitucionais do Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 175.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!