35 anos das Constituições estaduais e o federalismo brasileiro
5 de outubro de 2024, 6h33
Neste dia 5 de outubro é comemorado o aniversário de 35 anos das Constituições Estaduais brasileiras. A data é um marco para um dos mais importantes temas do federalismo brasileiro: o constitucionalismo subnacional e, por isso, não poderia ar desapercebida pelo nosso Observatório do Federalismo [1].

Como pesquisadores de Constituições estaduais que somos, é importante destacar que o dia 5 de outubro é sempre comemorado como um marco para o constitucionalismo brasileiro, representando a data da promulgação da Constituição. Porém, é igualmente importante registrar que, infelizmente, muitos constitucionalistas esquecem que essa mesma data do dia 5 de outubro é comemorativa das Constituições estaduais promulgadas em 1989, exatamente um ano após a promulgação da carta de 88.
De fato, o artigo 11 do ADCT estabeleceu que “cada Assembleia Legislativa, com poderes constituintes, elaborará a Constituição do estado, no prazo de um ano, contado da promulgação da Constituição Federal, obedecidos os princípios desta”. Com isso, a imensa maioria dos estados promulgou, em 5 de outubro de 1989, suas respectivas Constituições estaduais [2]. O restabelecimento da democracia significou também a restauração do federalismo e das Constituições subnacionais que, embora formalmente vigentes, resultavam em cartas meramente nominais no regime anterior.
A história do constitucionalismo brasileiro se mistura com a história do federalismo. Não há Constituição Federal sem Constituições estaduais. Essa foi a lógica implementada com a queda do império e o estabelecimento da federação. Antes mesmo da promulgação da primeira Constituição Federal de 1891, o Decreto nº 802, de 1890, determinou aos governadores a convocação de eleições estaduais para Assembleias Legislativas, valendo destacar que “essas assembleias receberão dos eleitores poderes especiais para aprovar as Constituições dos estados” (artigo 2º), caracterizando-se, assim, a função constituinte estadual.
Referido decreto, nos considerados, deixou bem claro que a adoção do pacto federativo no plano federal não ocorreria enquanto os vários estados não possuíssem as suas respectivas Constituições: “o Congresso não poderá naturalmente entrar no exercício de suas funções ordinárias, depois de desempenhado o seu mandato constituinte, enquanto se não houverem reunido as constituintes dos Estados e decretado as suas constituições”[3]
Avanços e retrocessos nas Constituições
De 1890 para os dias atuais, muito aconteceu no plano da relação entre normas e poderes central e estaduais. Estamos atualmente na quinta geração de cartas subnacionais brasileiras, sobre a qual se repetem algumas tendências problemáticas e se encontram alguns alentos. De um lado o espaço constitucional subnacional continua comprimido: a Carta de 1988, apesar de todos os seus avanços, continuou a conter muitas normas de pré-ordenação institucional, entre outros elementos, que tolhem em parte a autonomia de estados e municípios.

Além disso, a compressão judicial da autonomia subnacional, com base nos princípios constitucionais estabelecidos e no pretoriano princípio da simetria, acaba por erodir gradualmente a autonomia subnacional, inclusive em sua dimensão constituinte, em prejuízo à construção de possíveis experiências de constitucionalismo local mais inovadoras.
De todo modo, o sistema federal brasileiro e seu constitucionalismo dúplice já contam com mais de 130 anos de existência, entre avanços e retrocessos muito superficialmente aqui sumarizados. E há alguns sinais que podem indicar a esperança de um papel mais significativo para o constitucionalismo subnacional no futuro dos estados-membros e do país.
Para tanto, parece necessário resgatar a importância do constitucionalismo subnacional brasileiro, o que significa, por conseguinte, resgatar a natureza verdadeiramente constitucional das constituições subnacionais, sua valorização, bem como certo grau de deferência, pelos entes centrais, à autonomia subnacional — dentro dos limites preconizados expressamente pelo texto constitucional federal. Para tanto, é imperioso compreender as cartas subnacionais como integrantes do bloco de constitucionalidade, não mais relegando as mesmas a um papel marginal ou quase inexistente no constitucionalismo brasileiro.
Direitos fundamentais estaduais
Este processo pode partir de estudos que conduzam à revalorização das Constituições estaduais e do registro dos avanços que também se realizaram. Esse movimento é mundial em diversos países federais ou quase federais que possuem um sistema de governança multinível, principalmente quando as cartas constitucionais subnacionais são compreendidas como um espaço natural de previsão de direitos fundamentais estaduais [4].
No Brasil, parece salutar recordar, por exemplo, que todas as 26 Constituições estaduais preveem direitos fundamentais, alguns consistentes em mimetizações dos federais, outros autônomos. Todas as cartas subnacionais contemplam pelo menos direitos dispersos ao longo de seu texto, e pelo menos 16 delas contemplam um catálogo formal de “direitos fundamentais estaduais”. [5]
Se a maioria das Cartas opta por uma abordagem mais modesta dos direitos fundamentais arrolados em seus catálogos, reproduzindo em boa medida direitos já protegidos em nível federal, algumas delas apresentam tentativas interessantes no sentido de um maior desenvolvimento. Destaque-se, ilustrativamente, a Constituição do estado do Rio de Janeiro de 1989 que contempla em seu catálogo de direitos — Título II — um total de 55 artigos — artigo 8º a 63.
Ademais, parte significativa das cartas subnacionais detalha, aprimora e desenvolve para além do texto federal direitos de grande relevância na atualidade. Cite-se como exemplo de grande relevância e atualidade o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que é amplamente desenvolvido no Brasil em nível subnacional, para muito além do texto federal. [6]
Autonomia dos estados-membros
Sem tornar a descentralização um dogma e sem endossar uma visão acrítica ou pueril dos problemas que envolvem a temática — revelados inclusive pela história do país envolvida com oligarquias locais e outros problemas amplamente conhecidos —, propõe-se aqui a necessidade de resgatar a ideia de autonomia constituinte subnacional e incluir as contribuições das constituições subnacionais no pensamento constitucional brasileiro.
Assim, parece fundamental, por ocasião dos 35 anos das cartas estaduais no mês de outubro deste ano, conclamar a comunidade para uma reflexão sobre os avanços e retrocessos dos constituintes estaduais. A finalidade é a de criar condições para aprimorar o exercício da autonomia dos estados-membros, enriquecendo o nosso ecossistema constitucional que, ao fim, é composto por um conjunto de textos, pessoas, geografias, políticas e vivências nacionais e estaduais. Só assim será possível enfrentar o grave desafio de conciliar unidade e diversidade no federalismo brasileiro.
Não é, portanto, uma data para ar desapercebida. Além de comemorado, o aniversário de 35 anos das constituições estaduais serve como oportunidade para trazer à luz todo o experimentalismo das Assembleias Legislativas e, quem sabe, um incentivo à ação por parte dos parlamentares estaduais para revalorização das Constituições subnacionais.
Uma esperança para que, muito além de ficarem dependendo do Congresso, os deputados estaduais possam (re)ocupar o espaço constitucional subnacional, assumindo o protagonismo para a construção de uma pauta efetiva de direitos fundamentais estaduais no contexto do federalismo brasileiro. É o que se espera de um país com tanta uniformidade mas, também, com tanta diversidade como o Brasil.
[1] O presente artigo deflagra o início da divulgação semanal do “Observatório do Federalismo”, projeto vinculado ao Centro de Estudos Constitucionais em Federalismo e Direito Estadual (ConState) que tem como objetivo monitorar, analisar e promover o debate sobre as práticas e teorias do federalismo no Brasil e no mundo. O ConState agrupa professores que pesquisam o federalismo em diversas perspectivas como a jurídica, ciência política, políticas públicas, relações internacionais, histórica e a perspectiva fiscal (www.constate.org , o em 14 de setembro de 2024).
[2] Alguns estados fizeram isso um pouco depois ou um pouco antes, como Minas Gerais, que promulgou em 21 de setembro de 1989. Mas a regra do prazo de um ano foi pensada para que as Assembleias Legislativas pudessem construir seus respectivos textos a partir da experiência da aplicação da constitucional federal que, conforme diz a regra do art. 11 do ADCT, deveria ter seus princípios respeitados quando da elaboração das respectivas constituições estaduais. De qualquer forma, o dia 5 de outubro de 1989 é considerado o marco inaugural das atuais constituições estaduais.
[3] Decreto nº 802, de 4 de Outubro de 1890. Disponível em : https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-802-4-outubro-1890-517470-publicacaooriginal-1-pe.html . Consulta em 20 de setembro de 2024.
[4] Veja-se, à propósito, o “Routledge Handbook of Subnational Constitutions”, com estudos de constituições subnacionais de diversos países, cujo capítulo brasileiro foi escrito pelo primeiro autor deste artigo (https://www.routledge.com/Routledge-Handbook-of-Subnational-Constitutions-and-Constitutionalism/Popelier-Delledonne-Aroney/p/book/9780367510176?srsltid=AfmBOoomHNALnH7Gctf0pCbMZdxupTlcY-_3wsDB9DmOjygGaHeGo). Ver também o trabalho “Sub-National Constitutions in Federal Systems”, de Michael Burgess e Alan Tar, disponível em https://www.forumfed.org/wp-content/s/2021/06/SUB_NATIONAL_CONSTITUTIONSINFEDERALSYSTEMS.pdf )
[5] Sobre o tema dos direitos fundamentais conferir SGARBOSSA, Luís Fernando; ARAÚJO, Marcelo Labanca Corrêa de. Direitos Fundamentais Estaduais e Constitucionalismo Subnacional. Recife: Publius Editora, 2022. A eventual aprovação a PEC n. 19/2021 pela Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco, que visa incluir o Capítulo I-A à Carta pernambucana de 1989, com os artigos 4º-A e 4º-B, incluindo também naquela constituição um catálogo formal de direitos fundamentais, poderá aumentar para 17 o número de cartas que contemplam tal item.
[6] Dados coligidos em estudo ainda inédito de co-autoria de um dos autores deste texto demonstram que a constituição ecológica subnacional revela-se de 1,5 a 2 vezes mais longa e analítica do que sua homóloga federal. As cartas subnacionais mais desenvolvidas neste particular são a Constituição do Estado do Amazonas, a carta fluminense e, ainda, a Lei Orgânica do Distrito federal. A pesquisa do tema revelou que apesar de uma propensão do constituinte local à mimetização de normas constitucionais federais, em matéria de proteção do meio ambiente houve um significativo exercício de autonomia por parte daquele.
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