É o fim da história? Sobre o Seminário Internacional Prova e Justiça Criminal
18 de outubro de 2024, 8h00
“A vida é um soco no estômago”, teria repetido Clarice Lispector, no auditório do Superior Tribunal de Justiça na semana que ou.
As narrativas estabelecidas nos dias 9 e 10 de outubro desta semana, no Seminário Internacional Prova e Justiça Criminal: Novos Horizontes para o Reconhecimento de Pessoas, promovido pelo CNJ, STJ e a Secretaria de o à Justiça do Ministério da Justiça e Segurança Pública, com o apoio da Secretaria de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e do Innocence Project Brasil, revelaram a dificuldade do humano em encarar a necessidade de mudança.
O evento celebrou a paradigmática alteração jurisprudencial quanto à necessidade de observância às regras sobre o procedimento do reconhecimento de pessoas, dispostas no artigo 226 do Código de Processo Penal.
A posição anterior era de que tais normas não avam de mera recomendação. Proceder a identificações totalmente desatreladas da lei e às melhores práticas da psicologia do testemunho não gerava qualquer consequência para a ação penal.
Para a ação penal. Somente. Porque para o rapaz pobre e negro da periferia, erroneamente reconhecido, as consequências eram (são) incontáveis e deletérias.
Só o começo
O caminho da mudança despontou a partir do histórico Habeas Corpus nº 598.886, da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no ano de 2020, de relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz, cujo caso de fundo foi levado pela Defensoria Pública de Santa Catarina. De lá para cá, a nova orientação jurisprudencial foi adotada também pela 5ª Turma do STJ e pelo Supremo Tribunal Federal.
Porém, o reconhecimento de pessoas equivocado continua a ser uma das principais causas de erro judiciário, conforme demonstrado por ampla produção científica, nacional e internacional e, apesar disso, com música, arte e lágrimas, o debate estabelecido revelou que ainda estamos no começo.
Muito mais que alterar posição jurisprudencial, é preciso construir uma nova cultura jurídica sobre o tema, um novo horizonte de pré-compreensões, uma nova hermenêutica, sob lentes das interseccionalidades de raça e de gênero.

O seminário veio para fincar essa pedra! E, no propósito de plantar mais sementes na desafiadora missão de transformar uma cultura, os organizadores buscaram pluralizar ao máximo as mesas de debates. Ministros do STJ, do STF, conselheiros do CNJ, representantes do governo federal, Defensoria Públicas, polícia judiciária, Ministério Público, magistratura, imprensa, sociedade civil, artistas.
Fim da história?
Mas as vítimas dos reconhecimentos injustos também se fizeram ouvir. Nada sobre nós, sem nós. As vidas destruídas de pessoas presas injustamente e de seus familiares transmitidas em forma de vídeos produzidos pelo Innocence Project demonstraram a perpetuação de injustiças e a resistência dos juízes em seguir os avanços trazidos pelas mais diversas áreas.
O ponto alto foi a exibição do teaser do longa-documentário “Reconhecidos”, da pesquisadora Fernanda Amim e do cineasta Micael Hocherman. É preciso chamar a empatia.
O tempo de duração de uma prisão preventiva equivocadamente decretada faz destruir aquilo que de mais caro temos no Estado democrático. A dignidade da pessoa humana parece estar desprezada. E as próprias vítimas desses erros judiciários fizeram ecoar sua voz sobre as agruras do cárcere injusto.
Então, a jurisprudência mudou, o seminário veio mudar a cultura, jovens negros e periféricos, injustiçados por reconhecimentos errôneos, tiveram espaço e voz ativa. Seria esse o fim da história? Como num conto de fadas infantil, todos viveremos felizes para sempre?
Não, a leitura não é bem essa! O próprio Superior Tribunal de Justiça, em 2023, já havia divulgado pesquisa que mostra a resistência à adoção da jurisprudência sobre reconhecimento de pessoas pelos juízos de primeiro grau.
Isso não é novidade, mas mais uma vez nos mostra o quanto lenta é a mudança no cenário jurídico. Mas não é só. Além de lutarmos por mudar dogmas do ado, o futuro também releva seus próprios percalços.
Também não podemos esquecer que o reconhecimento de pessoas tem uma fragilidade insuperável, inerente à falibilidade dos sentidos e da memória e ainda, da forma como é produzido (disciplina jurídica e práticas) no Brasil. Por isso é preciso que se advirta: por mais qualificado que seja um eventual ‘protocolo’ de redução de danos, que incorpore as recomendações trazidas pela psicologia cognitiva, sempre haverá uma fragilidade inerente e insuperável no reconhecimento pessoal.
Daí a cautela com que deve ser valorado, exigindo elementos externos de corroboração, jamais sendo a única prova usada para condenação. Também não é suficiente a rotineira fórmula empregada em muitos julgados: palavra da vítima + reconhecimento pessoal feito pela vítima = (in)suficiência probatória.
Sublinhe-se: não há suficiência probatória para um juízo condenatório porque não se rompe com a circularidade ‘palavra da vítima’. É preciso outros elementos probatórios que corroborem a palavra da vítima (= reconhecimento feito pela vítima), para que se tenha uma qualidade epistêmica da prova com suficiência para sustentar um juízo condenatório racional e com um mínimo de confiabilidade.
Portanto, mesmo melhorando muito a “forma” (e isso é imprescindível), o ponto chave está valoração: não se pode atribuir ao reconhecimento pessoal um valor decisivo, jamais. A fragilidade e falibilidade da memória e dos sentidos humanos sempre estarão presentes.
O uso da inteligência artificial tampouco é solução neste terreno, já que o rosto negro não é lido pelos sistemas regimentados pela inteligência artificial. A perpetuação das atitudes racistas e de sua criminalização revelada nas decisões judiciais acarretam anos de prisões injustas e destruição de famílias inteiras. Isso não pode deixar de tocar o coração das pessoas. A pena transcende. A cor, que antes era apontada como pressuposto para prisões em flagrante, hoje está estampada nas ‘capas’ dos processos.
Baixa participação
Os desafios para a qualificação da investigação criminal e da produção da prova penal parecem desconsiderar que temos pressa. Assim como é imprescindível o fortalecimento da Defensoria Pública, responsável pela defesa da grande maioria dos processos em que pobres e negros desfilam suas dores, que teve menção tímida nas falas de alguns componentes das mesas.
E, por fim, não se pode deixar de notar que, a despeito de o seminário se destinar a membros das mais diversas carreiras jurídicas e advocacia criminal, a diminuta presença dos membros do Ministério Público foi sentida. Um silêncio eloquente.
Precisamos de um Ministério Público voltado aos ideais constitucionais e democráticos para mudar verdadeiramente uma cultura. Isso faz parte de seu mister de proteger a sociedade. Os jovens negros, pobres e periféricos punidos por reconhecimentos injustos também são sociedade. Precisamos buscar caminhos alternativos e, isso só se faz verdadeiramente quando defesa, acusação, autoridade policial e justiça estão irmanados no mesmo propósito.
Mas, preferimos terminar como o fez o ministro Rogério Schietti Cruz, citando um conterrâneo de uma das autoras deste artigo, o cearense Belchior, na bela canção Como Nossos Pais:
Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor é uma coisa boa
Mas também sei que qualquer canto
É menor do que a vida de qualquer pessoa.
Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos.
Como os nossos pais
Mas é você que ama o ado e que não vê
É você que ama o ado e que não vê
Que o novo sempre vem
Ainda somos os mesmos. A cultura jurídica ainda não mudou. Mas o novo sempre vem. Tenhamos esperança.
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