Opinião

O fuzilamento do Superior Tribunal de Justiça e a Lei de Hume

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28 de outubro de 2024, 10h35

A guilhotina não perdoa

Embora não tenha sido “feita” para o Direito, há uma famosa “lei” que não deve ser violada, principalmente no âmbito do Estado Democrático: chama-se a Lei de Hume ou a guilhotina de Hume.

O conceito: de um “é” não se pode tirar um “deve”. Por exemplo, o fato de haver um aumento da violência (o “é”) não se pode derivar algo do tipo “vamos instituir um drástico aumento de penas ou até mesmo a pena de morte”.

Tudo para dizer que da proposição de fato “há mensagens e documentos que mostram corrupção no STJ” não deriva que “há ministros envolvidos”. Também não se pode derivar uma generalização acerca de todos os funcionários da corte e de todos os ministros.

Otavio Luiz Rodrigues Jr me inspirou a escrever este texto com o seu, publicado na ConJur de domingo último (ler aqui o artigo Investigações no STJ: um elogio, um desagravo e uma defesa desnecessários). Estamos na mesma linha. Escrevemos, na especificidade “acusações a ministros do STJ”, textos que nem seriam necessários. Escrevemos por causa das violações da Lei de Hume. No mínimo por isso. Nosso histórico mostra a defesa das instituições e da institucionalidade.

A Lei de Hume e as deduções sem premissa – o que se induz, outro deduz

Com efeito.

Digo isso porque a Lei de Hume é violada todos os dias tanto no senso comum como pela mídia e redes sociais. Dificilmente uma reportagem jornalística escapa da guilhotina humeana. O repórter induz. O leitor deduz. Porém, deduções somente são verdadeiras se as premissas são auto evidentes. Ou se estão absolutamente demonstradas.

Portanto, tratamos, Otavio e eu, de uma “questão institucional”. Em jogo, reputações e credibilidades. Sabemos que todos os dias reputações são espicaçadas. Todavia, isso apenas aponta para a necessidade de exercermos o dever de cautela. E a presunção de inocência. De não ministros e ministros. De não assessores de ministros e assessores de ministros.

Sabe-se que o ambiente da capital federal favorece o surgimento de picaretas e jus proxenetas que vendem facilidades. E “vendem” terceiros. Tudo facilitado pela estatística: há sempre 50% de o vigarista acertar nas hipóteses de “simples” (sic) “venda de autoridade”. Pela importância x, “consigo resolver”. Pode dar certo. Pode dar errado.

Da função de julgar para a função de gestor – criações coletivas?

Com milhares de processos para julgar, a função de ministro se transforma em gestor [1]. Os julgadores são obrigados a abdicar da vaidade de produzir textos próprios para emprestar seu ofício à construção da melhor decisão ou do melhor acórdão (e aqui entra o perigo do monocratismo crescente e acachapante!), entregando ao povo a justiça célere de que espera do “supremo tribunal do direito ordinário”, que é o STJ.

Essa é a realjuridik. Bom, nem mesmo as peças feitas pelos grandes advogados são totalmente por eles redigidas. E jornalistas possuem auxiliares. Colunas são produzidas por equipes. O que não é feito por equipes nestes tempos de massificação?

Spacca

Bons textos são reescritos por coordenadores. Maus textos também. Inclusive textos que escapam ao controle do gestor. Quem delega corre riscos. A vida neste Zeitgeist é assim. Não há como ter um panóptico judicante, que tudo vê e tudo sabe. Panóptico: o olho invisível do poder.

Voltando à (violação da Lei de Hume): o jornalismo de fatos sofreu uma metamorfose: os jornais (e as redes sociais) concluem que está chovendo porque o sujeito entrou na sala molhado. Eis a violação da Lei de Hume. Ocorre que a técnica do “silogismo ficto” já mergulhou na era da pós-verdade. Se dois vigaristas citam o nome de alguém, o quanto esse alguém fica comprometido? Até o pescoço. Interceptemos diálogos entre jornalistas, por exemplo…. Ou, como na vaza jato, entre procuradores. Vale? Ali tinha até escárnio com a morte, lembram?

Vale?

Sigo com Hume. David. De um é não se tira um deve. Se se tirasse, teríamos “deduções induzidas” como “jornais vendem notícias fraudulentas ditadas por quem os paga”; “delegados estão vendendo relatórios do Coaf (agora que não prescindem mais de ordem judicial)”; “delegacias vendem investigações e sumiço de B.Os.”; “congressistas vendem projetos”; “agências reguladoras vendem proteção a empresas”; “religiosos vendem lorotas…”, “padres católicos vendem Ora Pro Nobis…”. De algum é se tiram muitos “deve”?

Todos os integrantes de cada segmento?

Claro que é inaceitável a pistolagem no Judiciário. Essas notícias todas (fora as suposições e ilações sem fundamento) são válidas e corretas. Mas é válido também contextualizar: por que essa escalada agora, neste exato tempo histórico? Vingar-se do empoderamento do STF, metralhando o Judiciário, pode não solucionar nada. Ao contrário.

Há algo no ar além dos aviões

Há algo no ar para além dos aviões atrasados, caros e desconfortáveis, nos quais os comissários gritam no alto falante pensando que os ageiros são surdos. Que haveria um cerco/troco já se sabia. Ele viria depois da frustração dos lavajatistas. Eles estão por todos os lugares. Até no açougue e nos elevadores. Nos fóruns, tribunais e assembleias. E nas entidades. De classe. O cerco “avisou” de novo com a derrota do bolsonarismo golpista. E cada integrante dessas forças tarefas foi se incorporando, cada qual por seus motivos.

O Congresso. porque teve ceifado seu amplo poder de emendar o orçamento (custo altíssimo!); a imprensa, por ter perdido protagonismo (como era bom ter a cada dia uma notícia exclusiva fornecida, à socapa e à sorrelfa [2], por um integrante da “lava jato”, pois não?) e mananciais gloriosos com o movimento anti-STF (fechem o STF diziam as placas dos manifestantes, radialistas, jornalistas e jornaleiros – e até causídicos e parlamentares!); a primeira instância do próprio Judiciário — e nisso inclui o Ministério Público — mostra certo grau de ressentimento (notaram que as entidades de classe não saíram em defesa dos seus associados até agora; diz-se, à boca pequena, que há muita gente de piso endossando o fuzilamento do andar de cima do Judiciário). É o troco.

Em síntese: o ódio ao STJ e ao STF deixou de ser latente. Está explícito. Por isso, de qualquer “é” já se tira um pesado “deve”.

Não esqueçamos que a expansão jurisdicional do STF com centenas de dispositivos da CF, mais as dezenas de artigos das disposições transitórias, mais as 136 emendas e os 60 artigos não regulamentados da CF/88 (convite a mais judicialização e ativismo; não esqueçamos: STF não age de ofício, não põe outdoor oferecendo seus “produtos”) mostram que a escalada contra o Judiciário é uma vingança contra a escalada do empoderamento dos tribunais.

Existe pistolagem no Judiciário. Existe. Mas o fuzilamento ainda não mostrou que o objetivo é melhorar o Brasil, a Democracia ou o Estado de Direito. Eis o busílis. Eis o é da coisa. Ou a coisa desse é. Será que o que estamos vendo não é uma revanche? Uma revanche com Katchanga? Real? Como faz o parlamento com suas PECs contra o STF?

Talvez o não dito seja: há muita gente descontente que quer o seu poder de volta. E que o STJ e o STF estejam atrapalhando.

Leia-se isso como se quiser.

 


[1] O texto de Otavio lembra bem a análise de Fernando Fontainha sobre o tema.

[2] À socapa e à sorrelfa são usados deliberadamente – trata-se de uma ironia contra o modo de noticiar com Target Effect: atiram a flecha e depois pintam o alvo. Não erram nunca.

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