Opinião

Levando as garantias constitucionais a sério

Autor

  • é promotor de Justiça do Ministério Público de Sergipe titular da 2ª Promotoria de Justiça da Infância e Adolescência de Aracaju pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Sergipe ex-juiz de Direito e autor de artigos jurídicos.

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29 de outubro de 2024, 15h20

A Constituição estabeleceu a inimputabilidade dos menores de 18 anos e que os mesmos estão  sujeitos às normas da legislação especial aplicável:

Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.

Por sua vez, no artigo 227, §3º, IV, a Carta trouxe as balizas da proteção especial conferidas ao autor de ato infracional, isto é, da conduta típica definida como crime ou contravenção penal, no tocante ao processo apuratório:

Art. 227 (…)

§ 3º O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

(…)

IV – garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo disp a legislação tutelar específica;

No caso de ato infracional, as sanções aplicáveis não apresentam natureza ou caráter penal, posto que são de natureza ou espécie reeducativa ou socioeducativa, mas de conteúdo pedagógico e caráter sancionador, conforme a doutrina e jurisprudência sempre repetem:

“(…) 4. A medida socioeducativa não representa punição, senão mecanismo de proteção ao adolescente e à sociedade, de natureza pedagógica e ressocializadora. (…).” [1]

“as medidas sócio-educativas enumeradas no art. 112 do Estatuto são, portanto, medidas jurídicas de conteúdo pedagógico, porém, também de caráter sancionador, cuja eleição deve atender a três elementos: capacidade do adolescente para cumprir a medida, circunstâncias e gravidade da infração.” [2]

Assim, não é possível vislumbrar qualquer dúvida acerca da incidência e aplicação dos direitos e  garantias fundamentais expressos, bem como outros decorrentes do regime, princípios e tratados incorporados ao ordenamento jurídico por força do artigo 5º, §2º e 3º, a Constituição [3].

Garantias aplicadas ao processo de apuração

A Constituição foi redundante com o propósito de reafirmar que as garantias processuais se aplicam inclusive ao processo de apuração de ato infracional.

Spacca

Portanto, diante do inequívoco viés sancionador da medida socioeducativa, além do caráter pedagógico, é possível a sua aplicação ou manutenção quando o órgão acusatório postula seu descabimento?

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069/90, editado em caráter regulamentar da Constituição de 88, estabeleceu parâmetros diversos do antigo Código de Menores, vigente através da revogada Lei n° 6.697/79.

Neste aspecto, o princípio acusatório prescreve a existência de órgão autônomo e diverso do julgador[4]. A Constituição conferiu ao Ministério Público a titularidade da ação penal pública, artigo 129, I, e, da mesma forma, por equiparação, também lhe conferiu a titularidade para atribuição de ato infracional (CF, 227, §3º, IV, acima já mencionado), como assim constou, por conseguinte, da legislação Especial, o ECA, seu artigo 201, I e II:

Art. 201. Compete ao Ministério Público:

I – conceder a remissão como forma de exclusão do processo;

II – promover e acompanhar os procedimentos relativos às infrações atribuídas a adolescentes;

O sistema acusatório consta explicitado mediante declaração inserida no artigo 3º-A, do Código de Processo Penal, (P):

“Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.” (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

Substituição na produção de provas

Ora, se é vedado ao juiz substituir as partes na produção probatória[5], tampouco será possível que o órgão judicante venha decretar de ofício medidas cautelares ou prisões não cogitadas pelo órgão ministerial[6], e, por inferência, condenar o réu, como já vem decidindo a jurisprudência[7], e também se discute através da ADPF 1.122, e mais recentemente a ADPF 1.192, que apontam a inconstitucionalidade, ausência de recepção, ou mesmo revogação do artigo 385 do P[8], diante da inclusão do referido artigo 3º-A, reafirmando a existência do sistema acusatório.

Pelo argumento interpretativo a fortiori, qui non potest minus non potest plus, isto é aquele que não pode menos, por conseguinte, não pode mais!. Como explica Carlos Maximiliano, “se é vedado o menos, conclui que o será também o mais; a condição imposta ao caso de menor importância prevalece para o de maior valor da mesma natureza (…)”.[9]

Ademais, a ratificação da adoção da estrutura acusatória do processo penal com norma declaratória do artigo 3º -A do P sinaliza no sentido de afastar interpretações pontuais em sentido contrário a um sistema, como assinala o professor Zeno Veloso ao comentar o artigo 2º, §2º da atual Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro:

“Entretanto, se a lei nova edita um regime jurídico integral, trata globalmente do assunto, regula inteiramente a matéria, a lei anterior – geral ou especial – que disciplinava o mesmo tema fica revogada.”[10]

(…)

Utilizando o direito comparado, vale lembrar, por exemplo, que a Suprema Corte Americana, no longínquo ano de 1967, ao examinar o caso In re Gault[11] [12], concluiu que as garantias processuais fundamentais não são exclusivas dos criminosos adultos, mas salvaguardas que também devem ser aplicadas indistintamente aos jovens delinquentes, e, respectivamente, observadas também pelos tribunais juvenis:

“As leis do tribunal juvenil do Arizona e de outros estados, conforme apontado pelo Tribunal, são resultado de planos promovidos por pessoas altruístas e visionárias para fornecer um sistema de tribunais, procedimentos e sanções considerados menos prejudiciais e mais brandos para crianças do que para adultos. Por essa razão, tais leis estaduais geralmente proporcionam métodos menos formais e menos públicos para o julgamento de crianças. Alinhando-se a essa política, tanto os tribunais quanto os legisladores têm relutado em rotular essas leis como “criminais” e preferem chamá-las de “civis”. Isso, em parte, foi para evitar a aplicação total das salvaguardas da Declaração de Direitos aos casos do tribunal juvenil, incluindo a notificação conforme previsto na Sexta Emenda, o direito a um advogado garantido pela Sexta Emenda, o direito contra a autoincriminação garantido pela Quinta Emenda e o direito ao confronto garantido pela Sexta Emenda. No entanto, o Tribunal aqui sustenta que essas quatro salvaguardas da Declaração de Direitos se aplicam para proteger um jovem acusado em um tribunal juvenil por uma acusação que pode resultar em detenção por anos. (…)

Quando uma pessoa, criança ou adulta, pode ser presa pelo Estado, acusada e condenada por violar uma lei penal estadual, e então ordenada pelo Estado a ser confinada por seis anos, acredito que a Constituição exige que ela seja julgada de acordo com as garantias de todas as disposições da Declaração de Direitos aplicáveis aos Estados pela Décima Quarta Emenda. Sem dúvida, isso seria verdadeiro para um réu adulto, e seria uma clara negação da proteção igualitária das leis – uma discriminação odiosa – sustentar que outros sujeitos a punições mais severas poderiam, por serem crianças, ser privados dessas mesmas salvaguardas constitucionais. Consequentemente, concordo com o Tribunal que a lei do Arizona, conforme aplicada aqui, negou aos pais e ao filho o direito de notificação, o direito a um advogado, o direito contra a autoincriminação e o direito de confrontar as testemunhas contra o jovem Gault.” [13]

Interpretação do ECA

Independentemente do resultado do julgamento das ADPFs 1.122 e.1.192, no caso de ato infracional, mesmo afastado o caráter criminal, não será possível aplicação ou manutenção de sanção de qualquer espécie, ainda que de natureza socioeducativa ou reeducativa, sem pleito ou requerimento ministerial, considerado não apenas padrão acusatório sistêmico, mas do subsistema do próprio ECA.

Já ou da hora de deixarmos de interpretar o ECA a partir de instrumentos do antigo Código de Menores[14], onde constava que:

Art. 15. A autoridade judiciária poderá, a qualquer tempo e no que couber, de ofício ou mediante provocação fundamentada dos pais ou responsável, da autoridade istrativa competente ou do Ministério Público, cumular ou substituir as medidas de que trata este Capítulo.

Art. 86. As medidas previstas neste Código serão aplicadas mediante procedimento istrativo ou contraditório, de iniciativa oficial ou provocados pelo Ministério Público ou por quem tenha legítimo interesse.

Não haverá lógica nem razoabilidade aplicar ao processo de apuração de ato infracional e execução de medida socioeducativa padrão ou standard do antigo Código de Menores, revogado pelo ECA, inferior ao estabelecido pelo artigo 3ª-A do P para o processo criminal comum, e, em qualquer caso, incompatível com a Constituição.

Então, vamos parar de ficar falando como o antigo Código de Menores foi superado e revogado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sem promover sua aplicação de fato em conformidade com as Garantias Constitucionais?

De outra forma, a previsão constitucional de proteção especial terá sido apenas uma promessa vazia, mera retórica com palavras inúteis, fundada em um desvio de perspectiva a partir de prática interpretativa ultraada e descabida[15].

Já ou da hora de levar as garantias e os princípios constitucionais a sério.

 


[1] STJ, AgRg no HABEAS CORPUS Nº 722.607 – SC, Rel. Min. Olindo Menezes, julgado em 05/04/2022.

[2] ROSSATO, Luciano Alves et all. In Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, RT, 2010, pg. 321.

[3] BRASILEIRO, Renato: “…o sistema acusatório caracteriza-se pela presença de partes distintas, contrapondo-se acusação e defesa em igualdade de condições, e a ambas se sobrepondo um juiz, de maneira equidistante e imparcial. Aqui, há uma separação das funções de acusar, defender e julgar. (…)

Pelo sistema acusatório, acolhido de forma explícita pela Constituição Federal de 1988 (CF, art. 129, inciso I), que tornou privativa do Ministério Público a propositura da ação penal pública, a relação processual somente tem início mediante a provocação de pessoa encarregada de deduzir a pretensão punitiva (ne procedat judex ex of icio), e, conquanto não retire do juiz o poder de gerenciar o processo mediante o exercício do poder de impulso processual, impede que o magistrado tome iniciativas que não se alinham com a equidistância que ele deve tomar quanto ao interesse das partes. Deve o magistrado, portanto, abster-se de promover atos de ofício …” (Manual de Processo Penal,  Podium, 4aed., 2016, pgs 13, 14 e 15, respectivamente.

[4] Inicialmente o P vedou a decretação de prisão sem requerimento do MP, Assistente de Acusação, ou da Polícia:

[5] Vide aqui no Conjur o excelente Texto de Galtiênio da Cruz Paulino, Modelo de processo acusatório e os limites de atuação probatória do juiz: /2024-set-23/modelo-de-processo-acusatorio-e-os-limites-de-atuacao-probatoria-do-juiz/#_ftnref1

[6] Art. 282. (…) § 2º As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)

Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.

Ainda neste sentido, vide Decisão Monocrática proferida pelo Ministro MESSOD AZULAY NETO no HABEAS CORPUS Nº 926724 – MG (2024/0242714-9), que apontou a impossibilidade, em qualquer hipótese, da decretação da prisão preventiva de ofício pelo magistrado em homennagem ao sistema acusatório consubstanciada nos termos dos arts. 282, § 4º, e 311, do P, com a redação conferida pela Lei n. 13.964/2019.

[7] AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PENAL. PROCESSUAL PENAL.(…) MONOPÓLIO DA AÇÃO PENAL PÚBLICA. TITULARIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PEDIDO MINISTERIAL DE ABSOLVIÇÃO. NECESSÁRIO ACOLHIMENTO. ART. 3º-A do P. OFENSA AO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.

  1. (…)
  2. Nos termos do art. 129, I, da Constituição Federal, incumbe ao Ministério Público o monopólio da titularidade da ação penal pública.
  3. Tendo o Ministério Público, titular da ação penal pública, pedido a absolvição do réu, não cabe ao juízo a quo julgar procedente a acusação, sob pena de violação do princípio acusatório, previsto no art. 3º-A do P, que impõe estrita separação entre as funções de acusar e julgar.
  4. Agravo regimental desprovido. Ordem concedida de ofício para anular o processo após as alegações finais apresentadas pelas partes. (STJ, 5ª Turma, AgRg no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.940.726 – RO (2021/0245185-9), relator para o Acórdão, Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, j. em 06/09/2022)

[8] Art. 385. Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada.

[9] Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, 19ª ed., pg 200.

[10] Comentários à Lei de introdução ao Código Civil, arts. 1º a 6º, 2a ed., UNAMA, pg. 45.

[11] In re Gault, 387 U.S. 1 (1967), fonte: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/387/1/ e também: https://www.uscourts.gov/educational-resources/educational-activities/facts-and-case-summary-re-gault

[12] Quando a Suprema Corte dos Estados Unidos decide um caso “in re…”, geralmente está tratando de uma questão  que não envolve diretamente uma demanda entre duas partes, mas, sim de interesse público ou de natureza processual relacionada frequentemente com direitos fundamentais ou procedimentos legais.

[13] Trecho do equivalente ao voto do Justice Hugo Black em tradução livre.

[14]Lei nº 6.697/79.

[15] Como magistralmente lecionou o Prof. José Carlos Barbosa Moreira, “Não se escapou, aqui, de uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo”. (O poder judiciário e a efetividade da nova Constituição. Revista Forense, n. 304, p. 152, 1988).

Autores

  • é promotor de Justiça do Ministério Público de Sergipe, titular da 2ª Promotoria de Justiça da Infância e Adolescência de Aracaju, pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Sergipe, ex-juiz de Direito e autor de artigos jurídicos.

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