Vício na procuração para o exercício do direito de representação criminal
29 de setembro de 2024, 9h26
Os advogados atuam, em regra, após a formalização de uma procuração, na qual a parte interessada outorga determinados poderes — gerais, expressos ou especiais — para se ver representada.
Recentes precedentes judiciais no âmbito do Direito Processual Civil aram a explicitar a importância de se distinguir poderes expressos e poderes especiais no instrumento de mandato advocatício.
A análise desses julgados não pode ar despercebida no âmbito do Direito Processual Penal, sobretudo no que tange à procuração que concede poderes aos advogados para o exercício do direito de representação criminal.
Isso porque os efeitos da ausência de concessão de poderes especiais pode justificar a decretação da extinção da punibilidade em ação penal pública condicionada à representação, conforme se ará a expor.
Prazo e poderes
Inicia-se breve digressão acerca das normas vinculadas à celeuma.
O legislador incorporou ao ordenamento jurídico brasileiro a previsão de que, quando a lei exigir, a representação do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo será requisito para a instauração de inquérito policial (artigo 5º, inciso II, §4º, do P) e para a promoção de denúncia pelo Ministério Público nos crimes de ação pública condicionada à representação (artigo 24 do P).
O agente legiferante, com fulcro no princípio da segurança jurídica, definiu um lapso temporal para o exercício do direito de representação.
Assim, no artigo 38 do P e no artigo 103 do , fez-se constar que decairá o direito de representação se o ofendido ou seu representante legal não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia da ciência da suposta autoria do ilícito.
Por sua vez, o artigo 39 do P consagra que o direito de representação será exercido pessoalmente pelo ofendido ou por procurador com poderes especiais.
Nessa linha, sob o ponto de vista de validade jurídica da procuração, é significativa a distinção entre “poder expresso” e “poder especial”.

Há que se conferir aqui os merecidos méritos à 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça na encampação da discussão no âmbito do Direito Processual Civil, no julgamento do REsp nº 1.814.643/SP [1].
É imperativo citar a ementa do referido precedente:
“DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 282/STF. PROCURAÇÃO. OUTORGA DE PODERES EXPRESSOS PARA ALIENAÇÃO DE QUAISQUER IMÓVEIS EM TODO O TERRITÓRIO NACIONAL. NECESSIDADE DE OUTORGA DE PODERES ESPECIAIS.
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Ação declaratória, por meio da qual se objetiva a declaração de nulidade de procuração pública outorgada ao recorrido e, via de consequência, da alienação de imóvel realizado pelo causídico com sufrágio neste mandato.
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Ação ajuizada em 16/04/2007. Recurso especial concluso ao gabinete em 13/11/2017. Julgamento: C/2015.
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O propósito recursal é definir se a procuração que estabeleceu ao causídico poderes para alienar “quaisquer imóveis localizados em todo o território nacional” atende aos requisitos do art. 661, § 1º, do CC/02, que exige poderes especiais e expressos para tal desiderato.
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Nos termos do art. 661, § 1º, do CC/02, para alienar, hipotecar, transigir, ou praticar quaisquer atos que exorbitem da istração ordinária, depende a procuração de poderes especiais e expressos.
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Os poderes expressos identificam, de forma explícita (não implícita ou tácita), exatamente qual o poder conferido (por exemplo, o poder de vender). Já os poderes serão especiais quando determinados, particularizados, individualizados os negócios para os quais se faz a outorga (por exemplo, o poder de vender tal ou qual imóvel).
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No particular, de acordo com o delineamento fático feito pela instância de origem, embora expresso o mandato – quanto aos poderes de alienar quaisquer imóveis localizados em todo território nacional – não se conferiu ao mandatário poderes especiais para alienar aquele determinado imóvel.
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A outorga de poderes de alienação de “quaisquer imóveis em todo o território nacional’ não supre o requisito de especialidade exigido por lei que, como anteriormente referido, exige referência e determinação dos bens concretamente mencionados na procuração.
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Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido.”
Como se vê, o Superior Tribunal de Justiça salienta que “poder expresso” é a simples menção à denominação do poder que se pretende conferir, enquanto “poder especial” é a particularização/determinação/individualização do objeto a sofrer a consequência do poder expresso.
Seara penal
Enfrentando o assunto no âmbito do Direito Processual Penal, em especial na seara das ações penais públicas condicionadas à representação, pode-se concluir que, se a vítima não exercer a representação criminal pessoalmente, deverá outorgar o direito de representação especificamente em face de pessoa(s) determinada(s), sob pena de não conceder quaisquer poderes especiais (artigo 39 do P), mas meramente expressar a denominação do poder.
Em síntese, se outorgado não pode alienar “quaisquer imóveis localizados em todo território nacional” diante de procuração expressando a denominação do “poder especial de alienar” sem a designação de qual ou quais bens se pretende alienar; também não pode representar “qualquer pessoa em território nacional” diante de procuração que expresse a denominação do “poder especial de representação criminal” sem a designação de qual ou quais pessoa(s) pretende representar.
A doutrina processual penal oferta guarida ao posicionamento ora suscitado.
Elucidativa sobre a temática é a brilhante lição apresentada por Flávio Rolim, Nefêz Imamy Cury e Marcelo Zago em obra coordenada por Cláudia Barros Portocarrero, Filipe Ávila e Rogério Greco [2]:
“Essa procuração para o direito de representação não basta ser uma procuração outorgando poderes genéricos. Necessita-se que nela conste expressamente a outorga do direito de exercer a representação em face de tal fato e em face de tais autores e partícipes que o ofendido ou seu representante tenham conhecimento. Diante disso é que se fala ‘procuração com poderes especiais’.”
Destaca-se que simples menção, na procuração, da expressão de outorga do poder de representação não revela o interesse do suposto ofendido em representar contra determinada(s) pessoa(s), não ostentando o advogado o livre arbítrio para decidir em face de quem deseja representar.
Esse raciocínio é inspirado na PET de nº 9.345 do Supremo Tribunal Federal, de relatoria o ministro Luís Roberto Barroso, segundo o qual “É compreensível a exigência de mandato com poderes especiais, uma vez que, entre as sérias consequências de uma ação penal, está, inclusive, a possibilidade de ser imputada, ao querelante [representante], a prática do crime de denunciação caluniosa (art. 339 do )” [3].
Portanto, in abstrato, seria impossível a imputação de ilícito de denunciação caluniosa a suposto ofendido (representante) que não tenha previamente manifestado o nítido desejo de representar contra determina/específica/individualizada pessoa, motivo pelo qual o advogado não pode assumir a função de decidir contra a quem irá representar.
É necessário levar em consideração que ao advogado é vedada a assunção de agente propulsor do litígio.
Esse entendimento se coaduna com o disposto no artigo 2º, incisos VI e VII, do Código de Ética e Disciplina da OAB, segundo o qual são deveres do advogado: “estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios” e “aconselhar o cliente a não ingressar em aventura judicial”.
Depreende-se do consignado acima, que o causídico, nos casos de ação penal pública condicionada à representação, só deve atuar depois que lhe for concedido o poder especial (não generalizante, tampouco meramente expresso) de representar contra determina(s) pessoa(s), do contrário se estaria concedendo ao advogado um poder incompatível ao seu dever de máxima evitação de instauração de ações penais.
Noutros termos, por ter a obrigação de aconselhar o outorgante a não instaurar litígios em face de casos concretos, o advogado se consubstancia em figura incompatível para escolher — a seu bel prazer — contra quem irá representar.
Salienta-se que, se fosse interesse do legislador retirar da esfera do ofendido o poder de decidir contra quem deseja representar (ação pública condicionada à representação), não transmitiria tal responsabilidade a advogado destituído de efetivo poder especial, mas determinaria que próprio Ministério Público apresentasse diretamente a denúncia em ação pública incondicionada.
Entendimento do STF sobre vício no instrumento de mandato
A exigência de concessão de poderes especiais para o ato de representar contra alguém é um mecanismo instituído pelo agente legiferante, no artigo 39 do P, que corrobora para a efetiva identificação da vontade do suposto ofendido em representar contra determinada(s) pessoa(s); viabiliza a aplicabilidade do contido no artigo 339 do (denunciação caluniosa); evita a judicialização predatória; e impede que o advogado detenha poderes incompatíveis com a sua profissão.
Uma procuração que contenha a mera expressão de outorga de “poder especial de representação criminal” não deve ser consagrada como válida, pois não é capaz de conceder um poder especial de representação em face de sujeito(s) determinado(s), revelando latente irregularidade na instrumentalização da pretensão punitiva.
Nessa linha, a ministra Rosa Weber, ao constatar vício na instrumentalização da pretensão punitiva em razão da deficiência no instrumento de mandato (procuração) e ao verificar a ausência de regularização antes do transcurso do prazo decadencial, julgou extinta a punibilidade de determinado acusado consagrando que [4]:
“EMENTA AGRAVO REGIMENTAL EM PETIÇÃO. AÇÃO PENAL PRIVADA. CRIMES CONTRA A HONRA. DEFEITO NO INSTRUMENTO DE MANDATO. TRANSCURSO DO PRAZO DECADENCIAL. NÃO PROVIMENTO DO
RECURSO. 1. Para a regular instrumentalização da pretensão punitiva, pela via da ação penal privada, é insuficiente a indicação, no instrumento de mandato, da figura típica correspondente à conduta alegadamente praticada, exigindo-se também a menção ao fato criminoso que dá ensejo à imputação.
Precedentes: RHC nº 105920, Rel. Celso de Mello, 2ª Turma, DJ 30/10/2014; Petição 7.872, rel. min. Marco Aurélio, 1ª Turma, DJe 12/3/2021; Petição 9.866, rel. min. Dias Toffoli, DJe nº 200 de 6/10/2021; Inquérito 4.348, rel. min. Edson Fachin, DJe nº 171 de 3/8/2017; Petição 6.349, rel. min. Roberto Barroso, DJe 31/7/2017). 2. Em razão das características que singularizam o transcurso dos prazos decadenciais, é inviável a regularização do vício que macula o instrumento de transferência de poderes, uma vez transcorrido o interstício de seis meses contados da data do fato narrado na inicial acusatória. 3. Agravo regimental conhecido e não provido.”
O Supremo Tribunal Federal já pacificou o entendimento de ser impossível o saneamento de vício no instrumento de transferência de poderes após o transcurso do prazo decadencial, conforme asseverou o ministro Luís Roberto Barroso [5]:
“A decadência é instituto que fulmina o próprio direito, de maneira que o seu exercício regular deve ser efetuado dentro do prazo decadencial. […].
Na linha da jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal, consumada a decadência, não é mais possível sanar o vício da procuração. […] declaro a extinção da punibilidade […]” [6].
Destaca-se que os precedentes supracitados versam sobre ações penais privadas, mas contemplam argumentos aplicáveis a ações penais públicas condicionadas à representação, especialmente quando cotejados as elucidações expostas no presente artigo.
Diante dessa conjuntura, a importância de se saber distinguir poder especial de poder meramente expresso reside no fato de que, se verificada a impossibilidade de correção da irregularidade na instrumentalização da pretensão punitiva antes do término do prazo decadencial, será cabível a decretação da extinção da punibilidade pela decadência, com fulcro no artigo 107, inciso IV, do .
[1] Recurso Especial n. 1.814.643/SP, de relatoria da Min. Nancy Andrighi, julgado em 22/10/2019, public. No DJe de 28/10/2019, pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça.
[2] Cury, Nefêz Imamy; Rolim, Flávio; Zago, Marcelo. Processo Penal Decifrado – 1. ed. – Rio de Janeiro: Método, 2023, p. 181. Coordenação: Cláudia Barros Portocarrero, Filipe Ávila, Rogério Greco.
[3] PET de n. 9345, de relatoria do Min. Luís Roberto Barroso, public. no DJe 22/11/2021, pela Primeira Turma do STF.
[4] PET de n. 9725 AgR, de relatoria da Min. Rosa Weber, julgado em 13-06-2022, processo eletrônico DJe-117, Divulg. 15/06/2022, public. 17/06/2022, pelo Tribunal Pleno do STF.
[5] PET de n. 9.345, de relatoria do Min. Roberto Barroso, public. no DJe 22/11/2021, pela Primeira Turma do STF.
[6] De mesmo teor é a PET de n. 9.998, de relatoria do Min. Nunes Marques, julgada em 23/10/2023 e public. em 31/10/2023, do STF.
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