Soberania do júri: quando a condenação ocorre mesmo com pedido de absolvição do MP
2 de abril de 2025, 6h03
O Tribunal do Júri é uma instituição fundamental da Justiça Criminal brasileira, garantida pela Constituição no artigo 5º, inciso XXXVIII. Sua função primordial é julgar os crimes dolosos contra a vida (homicídio, tentativa de homicídio, feminicídio, aborto, infanticídio, auxílio ou instigação ao suicídio), conferindo as juradas e aos jurados, cidadãos leigos, o poder de decidir sobre a culpabilidade dos réus.

Aury Lopes Jr nos recorda que a competência do tribunal do júri é muito bem definida no artigo 74, § 1ª, do Código de Processo Penal, de forma taxativa e sem itir analogias ou interpretação extensiva. Sendo assim, não serão julgados no Tribunal do Júri os crimes de latrocínio, extorsão mediante sequestro e estupro com resultado morte, e os outros crimes em que se produz o resultado morte, mas que não inclui nos “crimes contra a vida”. Porém, essa competência originária não impede que o tribunal popular julgue esses crimes ou qualquer outro delito, desde que seja conexo com o crime doloso contra a vida [1].
No entanto, algumas situações despertam questionamentos sobre a extensão da soberania do júri e a forma como suas decisões são formadas.
Um dos meus últimos plenários do Tribunal do Júri, atuei na defesa de um dos dois acusados em um julgamento que trouxe à tona essa discussão e uma reflexão. O Ministério Público, titular da ação penal, pediu a absolvição de ambos os réus, reconhecendo a ausência de provas suficientes para condenação.
O Ministério Público é o titular da ação penal pública, conforme estabelecido no artigo 129, inciso I, da Constituição, que dispõe sobre suas funções institucionais. Além disso, o artigo 24 do Código de Processo Penal reforça essa titularidade, estabelecendo que cabe ao Ministério Público promover a ação penal pública, salvo as exceções previstas em lei.
Aury Lopes Jr complementa que a pretensão acusatória é do Ministério Público, e, sem o seu pleno exercício, não se abre a possiblidade de o Estado exercer o poder de punir, pelo fato de tratar-se de um poder condicionado[2].

Contudo, na decisão das juradas e jurados, em uma reviravolta processual, apenas um dos acusados foi absolvido, enquanto o outro recebeu uma sentença condenatória, contrariando a manifestação ministerial e de seu defensor.
Diante desse cenário, surge a pergunta: o Tribunal do Júri é tão soberano a ponto de condenar um réu mesmo quando o próprio órgão acusador pede sua absolvição?
A soberania do júri e a decisão dos jurados
O artigo 5º, XXXVIII, ‘c’, da Constituição, assegura a soberania dos veredictos do júri, o que significa que a decisão dos jurados não pode ser revista ou modificada por juízes togados quanto ao mérito. Isso quer dizer que, mesmo que o Ministério Público e a defesa sustentem a inocência do réu, os jurados têm total liberdade para decidir de forma diferente, com base nas provas e argumentos apresentados durante o julgamento.
O sistema do Tribunal do Júri brasileiro adota o princípio da íntima convicção, permitindo que os jurados decidam sem a necessidade de fundamentar suas razões. Isso significa que, mesmo diante de um pedido de absolvição do Ministério Público, como ocorre em casos de manifestação de interesse na absolvição, baseada no artigo 385 do Código de Processo Penal, os jurados ainda podem votar pela condenação.
Essa soberania decorre do princípio democrático de que os crimes contra a vida devem ser julgados pela sociedade, representada pelas sete juradas e jurados sorteados para o conselho de sentença. Eles votam de forma secreta e respondem aos quesitos formulados pela juíza ou pelo juiz presidente, sem necessidade de fundamentar suas respostas.
No plenário do Tribunal do Júri isso levanta uma questão relevante: a possibilidade de condenações injustas em razão da ausência de fundamentação e da influência de fatores subjetivos, emocionais ou até midiáticos.
Nos tempos atuais, as redes sociais e a mídia possuem um alcance amplo. É inegável a influencia das mídias e das redes sociais na formação de opinião da população, como também é inegável que o crime é um “produto” que atrai o público, em especial, nos programas que abordam o sensacionalismo como entretenimento. Nessas situações, é possível dizer que a mídia é uma engrenagem do poder punitivo [3].
O júri é composto por pessoas leigas, que podem ser influenciados por discursos emocionais, pela opinião pública ou pela influência da mídia. A defesa deve atuar com estratégia para equilibrar esse cenário, utilizando recursos argumentativos sólidos, quesitações bem formuladas e impugnações tempestivas.
O papel do MP e a convicção dos jurados
Em um julgamento, o Ministério Público pode atuar tanto como acusador quanto como garantidor da justiça, podendo requerer absolvição se entender que não há provas suficientes para condenação. No entanto, esse pedido não vincula os jurados, que possuem total independência para decidir conforme sua íntima convicção.
No caso concreto, a condenação de um dos réus, apesar do pedido de absolvição ministerial, pode ter ocorrido por diversos fatores, tais como:
- A percepção dos jurados sobre os fatos e as provas apresentadas.
- A influência da sustentação oral das partes durante os debates.
- Elementos subjetivos e psicológicos que influenciam a tomada de decisão dos jurados.
Decisões contraditórias e a possibilidade de nulidade
A disparidade entre os veredictos dos dois réus, quando ambos estavam na mesma situação probatória e processual, pode gerar questionamentos sobre a coerência da decisão. Em alguns casos, essa contradição pode embasar um pedido de anulação do julgamento por violação à razoabilidade e ao princípio da individualização da pena.
O Código de Processo Penal prevê, no artigo 593, inciso III, a possibilidade de recurso quando a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos. Se houver elementos suficientes para demonstrar que a condenação foi arbitrária ou sem respaldo nas provas apresentadas, a defesa pode recorrer e pleitear um novo julgamento.
Conclusão
O julgamento ocorrido exemplifica a amplitude da soberania do Júri e como as juradas e os jurados podem decidir de maneira independente, ainda que contrariando o pedido do Ministério Público. Esse poder, contudo, não é absoluto a ponto de legitimar decisões arbitrárias ou contraditórias, cabendo à defesa questionar eventuais injustiças por meio dos recursos cabíveis.
O Tribunal do Júri continua sendo um campo de embates complexos, onde a subjetividade do conselho de sentença e a força dos argumentos das partes podem determinar o destino dos réus de maneira surpreendente. A defesa, portanto, deve estar sempre preparada para atuar estrategicamente, garantindo que a soberania do Júri não se transforme em injustiça.
A ampla defesa, consagrada no artigo 5º, LV, da Constituição, inclui tanto a defesa técnica quanto a defesa estratégica (com os meios e recursos a ela inerentes). A advogado e o advogado devem estar preparados para neutralizar excessos da acusação e garantir que o réu não seja condenado por argumentos frágeis ou provas insuficientes.
A soberania do júri não deve ser vista como uma barreira à justiça, mas sim como um mecanismo que exige constante vigilância da defesa. Devemos estarmos sempre preparados para atuar de forma estratégica, evitando que a emoção, a pressão popular ou equívocos processuais resultem em condenações injustas.
[1] LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. 21ª ed. Saraiva. São Paulo, p. 948, 2024.
[2] LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. 21ª ed. Saraiva. São Paulo, p. 1098, 2024.
[3] SOARES, Leandro da Cruz. Inconstitucionalidade da Prisão Obrigatória Perante Decisão do Plenário do Tribunal do Júri. ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, p. 78, 2023.
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