Interrupção da prescrição no processo sancionador só pode ser uma única vez
5 de junho de 2025, 7h02
Problemática da interrupção prescricional premeditada pelos órgãos ambientais

A questão da prescrição istrativa e seus marcos interruptivos representa um dos temas mais controvertidos do direito istrativo sancionador brasileiro. No contexto específico do Direito Ambiental, em que a Lei 9.873/99 disciplina o exercício do poder de polícia istrativa federal, surge o debate fundamental: quantas vezes pode a istração pública interromper o prazo prescricional intercorrente (trienal) e propriamente dito (quinquenal), a teor dos artigos 1º, §1º e 2º da Lei 9.873/99
O Supremo Tribunal Federal, em decisão paradigmática proferida pela 1ª Turma no MS 40.007 [1] — também unânime na 2ª Turma — estabeleceu importante precedente ao afirmar que “a jurisprudência atual de ambas as Turmas desta Suprema Corte rejeita a possibilidade de irrestrita interrupção da prescrição”. Esta orientação jurisprudencial tem profundas implicações para o direito istrativo sancionador ambiental, onde historicamente se itiam múltiplas interrupções prescricionais.
A relevância do tema se amplifica quando observamos a prática cotidiana dos órgãos ambientais federais, notadamente o Ibama e o ICMBio, que desenvolveram verdadeira “engenharia prescricional” para evitar a consumação dos prazos legais. É comum observar processos istrativos em que, aproximando-se o termo final do prazo de prescrição quinquenal ou intercorrente de três anos, surgem providências processuais que nada acrescentam à instrução, mas servem unicamente para tentativa de interromper a prescrição.
Lei 9.873/99 se aplica a todos os processos sancionadores
O texto legal não define se essas interrupções ocorrem uma única vez ou múltiplas vezes durante o processo istrativo. Esta lacuna gerava interpretações divergentes e insegurança jurídica, até agora.
A prática do Ibama e ICMBio revela interpretação elástica do conceito de “ato inequívoco que importe apuração do fato”. Após longos períodos de inércia, quando faltam poucos dias para completar os três anos que caracterizam a prescrição intercorrente, surgem despachos determinando diligências desnecessárias ou repetitivas.
Caso emblemático envolveu empresa autuada por desmatamento amazônico em 2015. Notificação em 2016 interrompeu a prescrição. Processo paralisado até dezembro de 2019, quando — faltando dois dias para a prescrição intercorrente — realizou-se manifestação instrutória. Nova inércia até novembro de 2022, quando às vésperas da prescrição determinou-se “estudo de imagens de satélite”. Em março de 2025 juntaram-se as imagens, evidenciando comportamento orquestrado para interromper a prescrição a cada três anos.
Outro caso determinou a produção de provas consistente em análise multitemporal de imagens em março de 2020. Em fevereiro de 2023, foi emitido despacho para verificar se a prova havia sido produzida. Em janeiro de 2025, a prova requerida cinco anos antes foi juntada aos autos. Tivemos cinco anos entre a determinação e a efetiva juntada da diligência. Estes comportamentos são recorrentes, e a autarquia considera que todos interrompem a prescrição.
A Lei 9.873/99 abrange toda atividade sancionadora da istração pública federal. O artigo 1º estabelece aplicação “para o exercício de ação punitiva pela istração pública federal, direta e indireta”. O Tribunal de Contas da União reconhece a incidência da Lei 9.873/99 aos seus procedimentos punitivos, demonstrando que o regime prescricional não se restringe aos órgãos de poder de polícia istrativa.
O STF consolidou que a Lei 9.873/99 constitui diploma geral aplicável a toda atividade punitiva federal, independentemente do setor específico ou da natureza do bem jurídico tutelado.
Jurisprudência no STF: o fim das interrupções sucessivas
A 2ª Turma do STF adota firmemente o princípio da unicidade da interrupção prescricional. No julgamento do MS 37.941 AgR, com acórdão relatado para o ministro Gilmar Mendes, estabeleceu-se que “itir interrupções ilimitadas seria o mesmo que chancelar a tese da imprescritibilidade“ [2].
Esta orientação foi reafirmada no MS 37.316 AgR, onde a 2ª Turma consolidou o entendimento de que permitir múltiplas interrupções desvirtua o próprio instituto da prescrição, transformando o prazo quinquenal em mera ficção jurídica [3]. O voto condutor destacou que a prática de sucessivas interrupções artificiais viola a própria ratio da lei prescricional, que é impedir a eternização de conflitos na vida social.
A 1ª Turma também entende pela unicidade da interrupção prescricional. Em abril de 2024, o MS 34.705 AgR, relatado pelo ministro Cristiano Zanin, foi decidido por unanimidade nesse sentido, com fundamentação de que “não se pode itir que o prazo prescricional seja interrompido por número indeterminado de vezes“ [4].
Reafirmando o posicionamento, no julgamento do MS 40.007 em maio de 2025 torna sólido o entendimento da 1ª Turma à tese da unicidade [5]. Neste julgamento, o ministro Zanin foi preciso ao identificar o problema central: “A jurisprudência atual de ambas as Turmas desta Suprema Corte rejeita a possibilidade de irrestrita interrupção da prescrição”.
De acordo com ambas as turmas, o ordenamento prevê a unicidade da interrupção prescricional tanto no Código Civil, quanto no Decreto-Lei 20.910/32, ambos de aplicação nacional. O artigo 202 do Código Civil estabelece que a interrupção da prescrição somente poderá ocorrer uma vez, princípio que se estende aos processos istrativos por aplicação subsidiária. O Decreto-Lei 20.910/32 igualmente não ite interrupções sucessivas, consolidando o regime da unicidade aplicável a toda atividade estatal e impedindo a criação de regimes excepcionais, mesmo em matéria ambiental.
Aplicação ao Direito Ambiental Sancionador
O exercício do poder de polícia ambiental pelos órgãos federais como Ibama e o ICMBio submete-se integralmente ao regime da Lei 9.873/99. Não há justificação para tratamento prescricional diferenciado que permita a perpetuação indefinida dos processos istrativos, como ocorre na seara ambiental.
É importante destacar que a proteção ambiental, valor constitucional fundamental, não se beneficia de processos eternos. Ao contrário, a efetividade da tutela ambiental exige atuação istrativa célere e eficiente. Processos que se arrastam por décadas, mantidos artificialmente vivos através de manobras processuais, não servem ao interesse público ambiental, mas apenas alimentam a burocracia e a insegurança jurídica.
A adoção do princípio da unicidade no Direito Ambiental significa que, uma vez interrompida a prescrição por qualquer das causas legais, novo prazo quinquenal ou trienal começará a fluir integralmente, não se itindo nova interrupção, em qualquer das hipóteses. Assim, não poderá a autoridade ambiental valer-se de sucessivos atos processuais para manter indefinidamente viva sua pretensão punitiva, manipulando o curso prescricional.
Um caso ilustrativo da manipulação prescricional envolveu indústria química autuada por emissões atmosféricas em 2017. O processo istrativo revelou padrão claro de procrastinação calculada: entre 2016 e 2024, o Ibama promoveu três “interrupções” prescricionais, sempre próximo ao último dia útil antes de completar o triênio da prescrição intercorrente. As providências determinadas incluíam solicitar a mesma análise laboratorial já realizada, pedir esclarecimentos sobre equipamentos já vistoriados, e requisitar documentos societários sem qualquer pertinência com a infração ambiental.
Este modus operandi revela que o objetivo primário não é a apuração efetiva da infração ou a proteção ambiental, mas sim a manutenção artificial da pretensão punitiva. Quando a istração aguarda sistematicamente “dois anos e 364 dias” para praticar atos processuais, evidencia-se o desvio de finalidade e a violação ao princípio da eficiência istrativa.
Entendimento se aplica tanto à prescrição intercorrente trienal quanto à propriamente dita quinquenal
Seja na prescrição intercorrente trienal, seja na prescrição propriamente dita quinquenal, a interrupção só pode se operar uma vez, quando então começará a correr integralmente, sem mais possibilidades de interrompê-la, sob pena de tornar imprescritível o feito em razão de diligências e despachos meramente protelatórios.
O Superior Tribunal de Justiça já estabeleceu importantes parâmetros sobre o tema, decidindo que “nem todo ato processual interrompe a prescrição. Despachos meramente burocráticos, remessas para digitalização ou trâmites internos não possuem eficácia interruptiva“ [6]. Esta jurisprudência deveria orientar a atuação do Ibama, mas a prática revela resistência do órgão em aceitar limitações ao seu poder sancionador.
Um outro exemplo elucidativo envolveu posto de combustíveis autuado por vazamento em 2012. O processo istrativo, que deveria ter sido concluído em prazo razoável, arrasta-se até hoje através de artifícios processuais. A cada período aproximado de dois anos e 11 meses, o Ibama determina nova análise de solo (sempre com resultados idênticos aos anteriores), atualização de plantas já atualizadas, ou relatórios de monitoramento sobre área já comprovadamente remediada [20]. Este processo encontra-se judicializado, tendo o juiz reconhecido a prescrição e determinado a suspensão da exigibilidade, mas até hoje o trâmite istrativo não findou.
Conclusão
A interrupção da prescrição por apuração dos fatos no processo istrativo ambiental só pode ocorrer uma única vez, seja na prescrição quinquenal ou na intercorrente trienal. Esta conclusão decorre da interpretação sistemática da Lei 9.873/99 com o ordenamento jurídico brasileiro e da necessidade de preservar o equilíbrio entre a efetividade do poder sancionador estatal e as garantias fundamentais dos istrados.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, com ambas as turmas convergindo para o princípio da unicidade, estabelece limite temporal ao exercício do poder de polícia ambiental. Permitir interrupções ilimitadas equivaleria a negar vigência ao próprio instituto da prescrição, transformando a limitação temporal em mera formalidade destituída de eficácia prática.
Tratando-se de direito punitivo, por mais grave que seja uma infração não há justificativa para a criação de regime de imprescritibilidade prática através de artifícios processuais. A segurança jurídica e o devido processo legal são valores fundamentais que devem ser preservados no Estado Democrático de Direito. A interrupção única da prescrição, em qualquer hipótese, constitui garantia essencial contra a eternização abusiva dos processos istrativos sancionadores.
Notas de rodapé
[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS 40.007 AgR-Segundo. Relator: Min. Cristiano Zanin. Primeira Turma. Julgado em 26/05/2025. DJe 30/05/2025.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS 37.941 AgR. Relator para acórdão: Min. Gilmar Mendes. Segunda Turma. Julgado em 2023.
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS 37.316 AgR. Relator: Min. Gilmar Mendes. Segunda Turma. DJe 25/09/2024.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS 34.705 AgR. Relator: Min. Cristiano Zanin. Primeira Turma. DJe 02/05/2024.
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS 40.007 AgR-Segundo, op. cit., voto do Relator, p. 8.
[6] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no REsp 1.938.680/RJ. Relator: Min. Herman Benjamin. Segunda Turma. DJe 15/03/2023.
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