Opinião

Reforma da responsabilidade civil: agenda incompleta e lições regionais

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8 de junho de 2025, 17h27

A reforma do Código Civil (PL 4/2025) tem gerado intensos debates acadêmicos e práticos. Dentre os diversos temas propostos pela comissão de juristas, a responsabilidade civil certamente figura como um dos mais sensíveis, dada a sua relevância ao direito privado, tais como as negociações e análises de risco empresariais.

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Projeto propõe alterar mais de 1.100 artigos do Código Civil

O esforço de atualização, mesmo louvável em vários aspectos, ainda padece de um problema estrutural: a ausência de uma densidade conceitual dos elementos fundamentais que compõem o regime jurídico da responsabilidade civil, especialmente nos elementos volitivos desta categoria e a própria classificação dos danos indenizáveis.

Na doutrina brasileira, com razoável uniformidade, se distinguem os elementos volitivos como o dolo, a culpa grave, culpa leve ao tratar da responsabilidade civil objetiva. No entanto, essa distinção, que tem uma importância prática irrefutável (afinal é preciso entender o “grau” de violação à direito alheio para aferir uma correta indenização) carece de um correspondente tratamento normativo, e a proposta reformista não endereça tal carência.

A ausência deste aclaramento normativo dificulta o dia a dia dos operadores do direito para análises de risco, seja na seara contenciosa, negocial e até mesmo de governança corporativa, visto que há uma excessiva margem a valoração casuística e incerteza probatória em cada caso que se analise um dever de indenizar.

Digno de nota que a responsabilidade civil não se esgota na constatação genérica de uma violação de direito (conduta danosa). Sua estrutura exige um exame concatenado de fatores (subjetivos, como a pluralidade de agentes, e objetivos, como o próprio dano em si) que se unem por um contexto (nexo causal). É justamente na definição dos fatores volitivos (ligados ao agente) que o sistema brasileiro persiste numa zona de penumbra normativa. Afinal, distinguir os graus de conduta interfere diretamente na extensão da indenização, ou até mesmo na aferição do próprio dever de indenizar, além dos impactos na previsibilidade daqueles que fazem a gestão dos riscos de suas atividades.

Manutenção da insegurança jurídica

O Código Civil em vigor, a repetição do que era o antigo código de 1916, não traz explicitamente qualquer gradação normativa. A proposta de reforma ensaia alguma diferenciação, já que menciona dolo e culpa grave em hipóteses específicas — sendo certo que em determinados casos até incongruentes (a exemplo do novel texto para o artigo 762 que equipara dolo e culpa grave, não repetindo o mesmo racional para os artigos 786, 932-A e 944-A §3º). O resultado prático é a manutenção da insegurança jurídica, transferindo a análise casuística de cada caso e a fixação de conceitos de interpretação extensiva que podem levar anos e anos para serem decididas de forma definitiva.

As consequências dessa indefinição são particularmente agudas no ambiente empresarial contemporâneo. As cláusulas de limitação e exoneração de responsabilidade, amplamente utilizadas e necessárias para uma correta gestão de atividades empresariais, dependem diretamente da fixação de parâmetros normativos estáveis, especialmente sobre elementos volitivos. Sem tais parâmetros, subsiste o risco da invalidação judicial dessas cláusulas com base em percepções oscilantes sobre o que efetivamente configura dolo ou culpa grave.

A mencionada alocação de riscos entre partes contratantes estará exposta a incertezas indenizatórias, o que se agrava com o cenário de que contratos empresariais (de acordo com a reforma) serão considerados paritários. Como serão se os riscos indenizatórios podem não ser de opinião uníssona entre as partes?

O déficit conceitual também compromete a governança corporativa das empresas (de qualquer porte ou tamanho, ainda que não possua uma governança robusta). A responsabilização de es, gestores, órgãos de controle, além da própria atividade empresarial em si precisa avaliar os graus de culpa em eventuais desvios de conduta.

A métrica do “homem médio” (onde há uma pequena correção para “pessoa média” ao nosso sentir), como o termo utilizado pela doutrina e decisões, somente reforça o nível de incertezas em que a atividade empresarial está imersa, com pouca objetividade — afinal, o que seria esperado de uma “pessoa média” na atualidade?

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Ainda que se sustente que a proposta do artigo 944, §1º fale em desproporção entre conduta e extensão do dano (o que de certa forma deixa mais abrangente que o elemento volitivo por si), fato é que emprega documentos vagos como “ditames da boa-fé” e “razoabilidade” como fundamentos para um juiz reduzir o quantum indenizatório da responsabilidade civil. Vejamos que isto reforça, como dito alhures, o cenário de insegurança, partindo-se da premissa que haverá verdadeira loteria casuística se um dano tiver de ser discutido.

Visão na América Latina

Ao analisar este tema na experiência latino-americana, há um posicionamento diverso, ou seja, os ordenamentos de países vizinhos aprofundam esta questão no plano normativo. Ordenamentos como o chileno (artigo 44 do seu código civil) e colombiano (artigo 63 do seu código civil) há muito tempo distinguem os graus de culpa em seus textos, conferindo muito mais previsibilidade segurança.

A reforma brasileira poderia, assim, aproveitar o momento legislativo para sistematizar minimamente essas categorias, conferindo maior estabilidade ao regime de responsabilidade civil. Não se trata de engessar o sistema com definições rígidas, mas de fortalecer balizas normativas que permitam à doutrina, à jurisprudência e aos agentes econômicos, operar com maior racionalidade e conferir a oportunidade de uma efetiva alocação de riscos (sem a “loteria indenizatória” que fizemos referência).

Enquanto o legislador hesita, o sistema permanece refém da insegurança interpretativa, com efeitos concretos não apenas na atividade jurisdicional, mas também sobre a liberdade negocial, a governança empresarial e a efetividade dos mecanismos de gestão de riscos. Uma responsabilidade civil amadurecida exige, antes de tudo, categorias conceituais bem definidas. É neste ponto que reside uma das principais omissões da proposta de reforma, porém ainda há tempo de corrigir o rumo.

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