Artigo 711, III do Regulamento Aduaneiro: a real função do controle aduaneiro
12 de maio de 2025, 11h24
A imposição de sanções tributárias e istrativas exige, no ordenamento jurídico brasileiro, não apenas respaldo legal, mas também respeito aos princípios constitucionais que regem o poder sancionador do Estado — notadamente, a razoabilidade, a proporcionalidade e a legalidade estrita. No campo aduaneiro, essa exigência adquire contornos ainda mais rigorosos diante da natureza eminentemente formal das obrigações órias, cuja violação nem sempre compromete o escopo fiscalizatório do Fisco.

Nesse contexto, tem sido objeto de críticas a aplicação automática da multa de 1% prevista no inciso III do artigo 711 do Regulamento Aduaneiro (Decreto nº 6.759/2009), sobre o valor aduaneiro da mercadoria, em razão de inexatidões no preenchimento da declaração de importação (DI) — ainda que as informações omitidas ou incorretas estejam amplamente comprovadas por documentos constantes do processo de importação e já disponíveis à própria Receita Federal.
O presente artigo propõe uma análise crítica dessa penalidade, especialmente nos casos em que se constata a ciência inequívoca da istração pública sobre os dados supostamente não informados ou informados em campo errado da DI, tais como, identificação errada ou endereço incompleto das partes envolvidas na operação, erro na informação sobre países de origem, procedência e aquisição, informação errada acerca do vínculo entre comprador e vendedor, erro na informação de locais de embarque e de desembarque, entre outros exemplos que não seriam, a princípio, capazes de gerar prejuízo ao controle aduaneiro.
Controle aduaneiro além do formalismo
A multa prevista no artigo 711, III do RA tem por escopo punir omissões ou inexatidões em informações consideradas essenciais ao controle aduaneiro. De fato, o dispositivo estabelece que incide a sanção quando o importador “omitir ou prestar de forma inexata ou incompleta informação de natureza istrativo-tributária, cambial ou comercial necessária à determinação do procedimento de controle aduaneiro apropriado”.
A interpretação sistemática do caput e de seu §1º, no entanto, revela que o foco da norma é a efetiva prestação de informações relevantes para o controle aduaneiro. Ou seja, não é qualquer equívoco ou qualquer informação incompleta que dará margem a aplicação da penalidade, mas tão somente aquele equívoco ível de causar prejuízo ao controle aduaneiro.
Ocorre que, na prática, tem se observado a imposição da multa com base exclusivamente no fato de o contribuinte ter cometido erros formais, sem deixar de apresentar documentos ou informações à fiscalização aduaneira e tampouco de causar prejuízo ao controle aduaneiro. Em outras palavras, o contribuinte vem sendo penalizado pelo cometimento de mero erro formal, tais como erros de digitação ou de clique em campo errado da DI. Esse equívoco nas declarações, sem o condão de causar prejuízo, vem sendo elevado à categoria de infração autônoma, ainda que o objetivo da norma — controle aduaneiro — tenha sido alcançado pela análise de outros documentos e informações prestadas pelo contribuinte.
Essa interpretação literalista fere não apenas o princípio da proporcionalidade, mas também esvazia o verdadeiro sentido do controle aduaneiro. Conforme estabelecido no artigo 237 da Constituição, o controle sobre o comércio exterior deve resguardar os “interesses fazendários nacionais”, não consistindo em mera verificação de procedimentos formais, mas em fiscalização substancial das operações de importação e exportação.

O controle aduaneiro moderno, conforme atestado pela estrutura normativa da própria Receita, é um processo complexo, sistêmico e documentalmente robusto, que vai muito além da simples leitura de campos eletrônicos da DI. O controle aduaneiro é essencial à defesa dos interesses fazendários nacionais, assim como essencial à economia nacional, de acordo com a política econômica determinada pelo governo federal [1].
Exigir que toda a informação necessária à fiscalização esteja restrita ao preenchimento exato da DI — ignorando documentos e informações já constantes nos autos e previamente analisadas pela autoridade fazendária — implica reduzir o controle aduaneiro a um excesso de burocracia, divorciado de sua finalidade constitucional.
Ademais, a aplicação da penalidade nesses moldes ignora que o próprio RA, em seu artigo 711, §1º, não exige que a informação prestada seja veiculada por meio exclusivo da DI. A norma fala em “informação de natureza istrativo-tributária”, sem qualquer vedação quanto ao meio pelo qual ela seja apresentada. Se os dados estavam disponíveis, analisados e íveis à Receita não há razão jurídica para considerar a infração como configurada.
Essa dissociação entre o erro formal e o efetivo prejuízo ao controle aduaneiro revela o caráter desproporcional e irrazoável da sanção, que em muitos casos alcança montantes milionários. Não se pode itir que o poder sancionador da istração pública sirva à penalização por mera inobservância de forma, quando o conteúdo da obrigação já foi integralmente satisfeito.
Razoabilidade e proporcionalidade na aplicação de sanções aduaneiras
O princípio da proporcionalidade, amplamente reconhecido no direito istrativo [2], impõe à istração pública o dever de aplicar sanções em conformidade com a gravidade da infração, os danos causados e a conduta do sujeito ivo.
O Supremo Tribunal Federal, em diversos julgados, já afirmou que sanções tributárias devem guardar coerência com o grau de reprovabilidade da conduta e com a existência de efetivo prejuízo ao erário ou à função fiscalizatória. A mera violação formal, desprovida de materialidade ou dolo, não autoriza a imposição de penalidades de grande monta, sob pena de ofensa direta aos princípios da razoabilidade e da vedação ao confisco, conforme prevê o artigo 150, IV, da Constituição.
No caso da multa de 1% por informação incompleta ou inexata, a aplicação objetiva e desvinculada da análise concreta da infração resulta, não raro, em penalizações absolutamente desproporcionais — como nos casos em que o equívoco se limita a um erro de preenchimento, sem qualquer ocultação dolosa, simulação ou impacto sobre a apuração dos tributos ou ao controle da operação aduaneira.
Não se trata, evidentemente, de relativizar a importância do correto preenchimento da declaração de importação. Esse não é o objetivo deste artigo. Trata-se de reconhecer que o controle aduaneiro não se exaure na DI e que sua finalidade não pode ser obscurecida por erros formais inócuos, sobretudo quando não comprometem a transparência, a rastreabilidade da operação e não configura falta de recolhimento de tributo.
Ademais, o próprio artigo 711, III do RA esclarece que nem todo equívoco deve ser punido, mas sim aquele capaz de sonegar “informações necessárias à determinação do procedimento de controle aduaneiro apropriado”. Se a informação correta estava disponível em outros documentos hábeis e idôneos prestados ao Fisco, não parece razoável sustentar que houve prejuízo à definição do procedimento apropriado.
É por isso que a jurisprudência judicial tem evoluído no sentido de relativizar a aplicação automática de sanções formais em contextos de boa-fé objetiva, ausência de prejuízo e colaboração documental do contribuinte, conforme entendimento exarado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) quando do julgamento do REsp nº 1.125.348/SP [3].
Controle aduaneiro como função complexa
O controle aduaneiro brasileiro, conforme previsto no artigo 237 da Constituição, é atividade essencial à defesa dos interesses fazendários nacionais. Contudo, sua interpretação e aplicação não podem ser reduzidas a um exercício meramente formal ou cartorial, descolado da sua verdadeira função de fiscalização integrada e eficaz das operações de comércio exterior.
A Receita, em sua estrutura organizacional e normativa interna, reconhece a complexidade e a multidimensionalidade do controle aduaneiro, que envolve a análise de dados contratuais, comerciais, cambiais e fiscais, com cruzamento de informações em diversas bases, cooperação com órgãos internacionais e fiscalização documental e física.
O erro formal cometido em algumas importações — se é que se pode assim classificar os erros de endereço, origem etc. — revela-se mero lapso material, absolutamente incapaz de gerar qualquer ocultação de informação, simulação de operação ou prejuízo à arrecadação.
A jurisprudência tem reconhecido que infrações formais desprovidas de dolo, má-fé ou prejuízo ao controle aduaneiro não configuram ilícitos sancionáveis, em respeito à função punitiva limitada da istração tributária. Há decisões do próprio Conselho istrativo de Recursos Fiscais (Carf) no sentido de que a omissão de informações formais não pode ser punida de forma objetiva quando há demonstração clara de que o controle fiscal foi plenamente exercido com base nos elementos disponíveis[4].
Embora estejamos tratando de uma multa istrativa, esse entendimento é coerente com a lógica que informa o artigo 136 do CTN, que dispõe que “a responsabilidade independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato”. A norma, contudo, não dispensa o Estado de demonstrar a ocorrência de uma infração real (prejuízo ao controle aduaneiro), ainda que sem dolo. A responsabilidade é objetiva, mas a existência da infração deve ser concretamente demonstrada, o que não se verifica nos casos em que a informação supostamente errada ou omitida consta dos demais documentos que instruem o processo de importação.
Ademais, o erro material ou a inexatidão não dolosa deve ser compreendido dentro de um contexto de boa-fé objetiva, princípio basilar das relações entre o contribuinte e a istração pública. O contribuinte que fornece documentos autênticos, colabora com o procedimento fiscal e não busca ocultar informações, não pode ser tratado como infrator formal apenas porque não preencheu corretamente um campo eletrônico.
Na busca das melhores práticas internacionais, objetivando modernização e atualização da aduana brasileira, os erros ínfimos, desde que não causem prejuízo ao controle aduaneiro, deveriam ser relevados. Ao observar os princípios constitucionais mencionados no presente artigo, na verdade, a Receita estaria seguindo a orientação da Convenção de Quioto Revisada [5], promulgada em 2020, a qual entende que seria razoável que as aduanas não aplicassem penalidade quando se tratar de erros acidentais e sem a intenção fraudulenta e negligência grosseira [6].
Conclusão
A multa de 1% prevista no artigo 711, III do RA foi concebida como instrumento de coerção e disciplinamento da conduta do importador, com o objetivo de garantir a integridade do controle aduaneiro. No entanto, sua aplicação automática e descontextualizada [7], especialmente em casos de erro formal irrelevante e ausência de prejuízo, resulta na distorção de sua finalidade.
O controle aduaneiro não se resume ao preenchimento correto de um campo eletrônico. Trata-se de uma função estatal complexa, que exige a análise integrada de documentos e informações diversas, muitas das quais já estão em poder da própria Receita. Penalizar o contribuinte que colabora, apresenta documentação completa e não omite dados das autoridades, apenas por erro de digitação ou por prestar informação em campo diferente daquele considerado correto, revela-se medida desproporcional, antieconômica e ineficaz.
itir que erros menores e escusáveis justifiquem a imposição de multas é transformar a formalidade em finalidade, invertendo a lógica do sistema e corroendo a segurança jurídica. Além disso, promove a judicialização desnecessária e incentiva o litígio, minando a confiança entre contribuinte e Fisco e sobrecarregando o já complexo contencioso istrativo e judicial.
Por essa razão, impõe-se uma interpretação finalística e sistemática do artigo 711, III do RA, que reconheça o erro material, a boa-fé objetiva e a ausência de prejuízo ao controle aduaneiro como fatores impeditivos da aplicação da penalidade. Trata-se de prestigiar não apenas os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, mas também a lógica do Estado democrático de direito, que exige da istração pública atuação ponderada, motivada e ajustada à realidade concreta.
[1] Agravo Regimental em Suspensão de Segurança nº 621-6 e o Recurso Extraordinário nº 203954-3.
[2] De acordo com a Solução de Consulta Cosit nº 38, de 30 de janeiro de 2019, a multa de 1% do valor aduaneiro da mercadoria por declaração inexata detém natureza de multa istrativa.
[3] Além do precedente no STJ, há inúmeras decisões do TRF4ª no mesmo sentindo, tais como: Apelação Cível 5072636-12.2019.4.04.7000; Apelação Cível 5007021-46.2017.4.04.7000; APELREEX 5010589-80.2011.4.04.7000.
[4] Acórdão nº 3402-005.460, proferido pela 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção de julgamento do CARF.
[5] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/d10276.htm: Consultado em 05/05/2025
[6] 3.39. Norma: As istrações Aduaneiras não aplicarão penalidades excessivas em caso de erros, se ficar comprovado que tais erros foram cometidos de boa-fé, sem intenção fraudulenta nem negligência grosseira. Quando as istrações Aduaneiras considerarem necessário desencorajar a repetição desses erros, poderão impor uma penalidade que não deverá, contudo, ser excessiva relativamente ao efeito pretendido.
[7] A penalidade foi inserida no ordenamento jurídico em 2003, quando a RFB ainda não tinha o eletrônico às informações prestadas pelos importadores e o cruzamento de dados por sistemas ainda estava em estágio inicial.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!