Opinião

Posse de maconha para uso pessoal: extinção da punibilidade na fase pré-processual

Autores

  • é cientista social e advogada criminalista no escritório Gabriela Gonçalves Sociedade Individual de Advocacia.

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  • é advogado criminalista professor do Departamento de Direito Penal Criminologia e Medicina Forense da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) e coordenador do Centro de Pesquisa e Extensão em Ciências Criminais (ECC) da USP.

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19 de maio de 2025, 6h37

O afastamento da criminalização da conduta de possuir maconha para uso pessoal foi amplamente difundido com o advento da declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei nº 11.343/06, sem redução de texto, pelo Supremo Tribunal Federal durante a apreciação do Tema 506, no Recurso Extraordinário com repercussão geral de nº 635.659, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, julgado em 26 de junho de 2024 [1].

Reprodução

Entretanto, há pontos que carecem de discussão, dentre os quais a forma de encerramento, na fase pré-processual, dos autos de inquéritos policiais, dos termos de ajustamento de condutas (TACs) e das transações penais em curso.

No âmbito criminal, quando não existir base para a denúncia, a autoridade judiciária deverá ordenar o arquivamento do inquérito policial com esteio no artigo 18 do P, o qual prevê que a autoridade policial poderá proceder novas pesquisas se tiver notícia de prova superveniente.

O alcance do dispositivo processual supracitado deve estar aos casos em que haja possibilidade de existirem provas a serem descobertas pela autoridade policial.

Uma conduta penalmente atípica, como é o caso da posse de maconha para uso pessoal, não possui probabilidade probatória criminal, o que indica que o encerramento, na fase pré-processual, dos autos de inquéritos policiais, dos termos de ajustamento de condutas (TACs) e das transações penais em curso não deve ocorrer com esteio no artigo 18 do P, sob pena de caracterização de proteção de bem jurídico não mais tutelado pela esfera penal.

Diante dessa conjuntura, aremos a ingressar num campo pouquíssimo debatido no âmbito processual penal, mas que, certamente, ganhará o merecido destaque em razão do advento do Tema 506 do STF. Trata-se da necessidade de decretação da extinção da punibilidade em fase pré-processual.

É importante frisar que o arquivamento operado com base no artigo 18 do P faz coisa julgada istrativa (podendo ser revisado); enquanto o arquivamento operado diante do reconhecimento da extinção da punibilidade faz coisa julgada material (encerrando definitivamente a celeuma), sendo mais benéfico a pessoa acusada, motivo por que a matéria requer especial atenção.

Previsão legislativa

Nos termos do artigo 107, inciso III, do , “extingue-se a punibilidade (…) pela retroatividade de lei que não mais considera o fato como criminoso”.

Spacca

Com o advento do Tema 506 do STF, reconheceu-se a inconstitucionalidade da criminalização da conduta de possuir de maconha para uso pessoal.

A resposta jurisdicional supracitada foi apresentada sem modulação de efeitos a fim de produzir eficácia retroativa, o que enseja a sua aplicação, inclusive, nas persecuções penais iniciadas antes do seu advento, impondo a necessidade de reconhecimento da extinção da punibilidade penal em decorrência da retroatividade do ordenamento jurídico que não mais considera a conduta como típica sob o ponto de vista criminal.

O artigo 61 do P explicita que, em qualquer fase do processo, o juiz deverá declarar de ofício a extinção da punibilidade se a reconhecer.

O termo “em qualquer fase do processo” suscita divergências hermenêuticas, havendo quem entenda que somente após a formação técnica do processo (recebimento da denúncia), ou durante a fase de issibilidade da exordial acusatória (rejeição da denúncia ou absolvição sumária), seria possível a decretação da extinção da punibilidade.

Todavia, essa interpretação reduz o alcance do dispositivo e não parece se filiar à vontade do agente legiferante, haja vista que, no parágrafo único do artigo 61 do P, há expressa menção de que, quando requisitada pelas partes, a extinção da punibilidade pode ser proferida antes da sentença final (dispensando-se a designação de audiência de instrução e julgamento), o que evidencia a flexibilização do legislador acerca do rigor processual atinente à matéria.

Se existe a possibilidade de dispensa de audiência de instrução e julgamento, há de se convir que, de igual modo, poder-se-á dispensar a existência de pretérita denúncia para fins de reconhecimento de causa extintiva da punibilidade, sendo suficiente que os autos estejam à disposição do juízo, seja para fins de apreciação de ordenação de arquivamento do inquérito policial, acompanhamento de TAC ou de transação penal.

A interpretação excessivamente formalista do artigo 61 do P se afasta do princípio constitucional da razoável duração do processo (istrativo ou judicial), previsto no artigo 5º, inciso LXXVIII, da CRFB/88.

O reconhecimento da extinção da punibilidade não se confunde com o ato de perquirir a inexistência material do fato, preocupa-se com a declaração de que não cabe ao Estado apreciar a referida conduta sob o ponto de vista criminal.

Se não cabe ao Estado tutelar determinada conduta, não é prudente exigir a consolidação formal de um processo criminal para que se possa reconhecer, na fase pré-processual, a inaptidão punitiva.

Noutros termos, a leitura do artigo 61 do P deve suscitar a interpretação de que, em qualquer fase da persecução penal, seja ela pré-processual ou processual, dever-se-á decretar extinta a punibilidade quando reconhecida.

Ao contrário, estar-se-ia excluindo da apreciação do judiciário a lesão ou a ameaça ao direito constitucional de não se sentir vigiado por um Estado desprovido do poder de punir penalmente a conduta atípica de possuir maconha para uso pessoal (artigo 5º, incisos XXXV e XXXIX, da CRFB/88).

Previsão doutrinária

Acerca da necessidade de decretação da extinção da punibilidade, na fase pré-processual, é válido citar as lições proferidas pela promotora de Justiça do estado do Rio de Janeiro Márcia Colonese Lopes Guimarães, em artigo publicado na Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro [2]:

“[…] operada qualquer causa extintiva da punibilidade, quer seja no curso do processo, como no decorrer do inquérito policial, o interesse estatal se esvai e desvanece, encerrando-se a persecução com a consequente perda de seu objeto, devendo ser elidida qualquer anotação havida em qualquer de suas fases. In casu, surge o dever do Poder Público de respeitar o direito individual do indiciado, declarando a extinção da punibilidade no

procedimento policial.

[…] Desta forma, entendemos que o Inquérito Policial pode e deve ser encerrado, diante da presença de uma causa extintiva de punibilidade, não só tendo em vista a perda de seu objeto, sob ponto de vista processual, mas, muito mais que isto, principalmente por constituir um direito subjetivo a ser declarado, eis que restou finda qualquer pretensão punitiva estatal em benefício daquele que não foi sequer julgado pelo fato praticado.

[…] Destarte, requerida a declaração de extinção da punibilidade no caso concreto, torna-se obrigação de ofício do Magistrado apreciar o pleito, e sua omissão irá configurar ausência de manifestação jurisdicional sobre fato juridicamente relevante, cuja declaração constitui imposição legal imperativa, pouco importando em que fase se encontre a persecução penal.

[…] Coerente com o exposto, conclui-se ser a declaração de extinção de punibilidade verdadeiro ato de jurisdição, necessariamente prolatado pelo Magistrado, quer no curso do processo, quer durante o procedimento istrativo policial, não podendo omitir-se a autoridade judiciária por dever de ofício.”

Previsão jurisprudencial: cortes superiores

O Superior Tribunal de Justiça consagrou que, quando existir causa extintiva de punibilidade, ível de gerar coisa julgada material, não é crível determinar-se o arquivamento do inquérito policial com esteio no artigo 18 do P.

Do inteiro teor do Informativo de nº 829, de 15 de outubro de 2024 do STJ [3], colhe-se a seguinte lição:

“O arquivamento do inquérito ou procedimento investigativo criminal será obrigatório, caso o membro do Ministério Público Federal que atua perante o Superior Tribunal de Justiça formalize o respectivo pedido por inexistirem suficientes elementos de materialidade, bem como autoria (ausência de base empírica) para a continuidade das investigações ou o oferecimento da peça acusatória. Por outro lado, se o requerimento ministerial de arquivamento do inquérito é fundamentado na extinção da punibilidade ou atipicidade da conduta, compete ao Judiciário uma análise meritória do caso com aptidão para formação da coisa julgada material, com seu inerente efeito preclusivo, não se aplicando as disposições do art. 18 do P, pois a decisão vinculará o titular da ação penal. O Supremo Tribunal Federal possui jurisprudência sobre o tema: ‘se o Poder Judiciário, ao reconhecer consumada a prescrição penal, houver declarado extinta a punibilidade do indiciado/denunciado, pois, em tal caso, esse ato decisório revestir-se-á da autoridade da coisa julgada em sentido material, inviabilizando, em consequência, o ulterior ajuizamento (ou prosseguimento) de ação penal contra aquele já beneficiado por tal decisão, ainda que o Ministério Público, agindo por intermédio de novo representante e mediante reinterpretação e nova qualificação dos mesmos fatos, chegue à conclusão diversa daquela que motivou o seu anterior pleito de extinção da punibilidade’.” (HC 84253, Relator Celso de Mello, 2ª Turma, julgado em 26/10/2004).

Sem destoar, o Supremo Tribunal Federal compreende que a apreciação judicial de causa extintiva de punibilidade ou do exame acerca da atipicidade da conduta deve prevalecer sobre a análise do arquivamento vinculado ao artigo 18 do P, conforme se infere das ementas a seguir colacionadas.

“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. ARQUIVAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL MILITAR. ATIPICIDADE DA CONDUTA. COISA JULGADA MATERIAL. CORREIÇÃO PARCIAL. REABERTURA DO FEITO. INVIABILIDADE. 1. O instituto da correição parcial está vinculado historicamente à correção de erros de procedimento que provocam tumulto processual e não ao erro na apreciação judicial dos fatos ou do direito. 2. A decisão de arquivamento de inquérito policial lastreada na atipicidade do fato toma força de coisa julgada material, qualidade conferida à decisão judicial contra a qual não cabem mais recursos, tornando-a imutável. 3. Se o Juiz-Auditor e o Ministério Público acordaram em arquivar o inquérito policial militar por entender atípica a conduta, mesmo diante de provas novas, inviável a reabertura do feito por meio de correição parcial. 4. Agravo regimental conhecido e não provido. (HC 173594 AgR, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 03-05-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-087 DIVULG 06-05-2021 PUBLIC 07-05-2021).

EMENTA: I. Arquivamento de inquérito policial requerido com base na atipicidade do fato: exigência de decisão jurisdicional a respeito, dada a eficácia de coisa julgada material que, nessa hipótese, cobre a decisão de arquivamento: precedentes. II. Desobediência (C. Eleitoral, art. 347): exigência de ordem judicial eleitoral direta e individualizada ao agente. (Inq 2004 QO, Relator(a): SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 29-09-2004, DJ 28-10-2004 PP-00043 EMENT VOL-02170-01 PP-00104 RTJ VOL-00193-02 PP-00507).

EMENTA: INQUÉRITO POLICIAL. Arquivamento. Requerimento do Procurador-Geral da República. Pedido fundado na alegação de atipicidade dos fatos. Formação de coisa julgada material. Não atendimento compulsório. Necessidade de apreciação e decisão pelo órgão jurisdicional competente. Inquérito arquivado. Precedentes. O pedido de arquivamento de inquérito policial, quando não se baseie em falta de elementos suficientes para oferecimento de denúncia, mas na alegação de atipicidade do fato, ou de extinção da punibilidade, não é de atendimento compulsório, senão que deve ser objeto de decisão do órgão judicial competente, dada a possibilidade de formação de coisa julgada material. (Pet 3.943, Relator(a): Cezar Peluso, Tribunal Pleno, julgado em 14-04-2008, DJe-092 DIVULG 21-05-2008 PUBLIC 23-05-2008 EMENT VOL-02320-02 PP-00223).”

Reconhecimento da atipicidade na fase pré-processual

Conforme se depreende do exposto alhures, nos casos envolvendo posse de maconha para uso pessoal, o encerramento dos autos de inquéritos policiais, dos termos de ajustamento de condutas (TACs) e das transações penais em curso, na fase pré-processual, não deve ser operado com fundamento no artigo 18 do P.

A pretensão de encerramento em comento deve ocorrer mediante declaração da extinção da punibilidade com esteio no artigo 107, inciso III, do em razão da aplicação retroativa do Tema 506 do STF, ou através do reconhecimento da vigente atipicidade da conduta supostamente praticada após o advento do referido tema.

A importância da celeuma reside no fato de ser inconcebível produzir coisa julgada istrativa (artigo 18 do P) diante da presença de um ordenamento jurídico garantista, o qual exige a formação de coisa julgada material por intermédio do reconhecimento, na fase pré-processual, da atipicidade da conduta de possuir maconha para uso pessoal.

A análise judicial meritória acerca do reconhecimento da atipicidade da conduta durante a fase pré-processual não se refere a perquirir a inexistência material da conduta ou as máculas de obtenção probatória, mas à análise da impossibilidade de o Estado se debruçar sobre conduta que não tem permissão de tutelar penalmente.

Nesse sentido, o artigo 67 do P prevê que:

“Art. 67. Não impedirão igualmente a propositura da ação civil:

I – o despacho de arquivamento do inquérito ou das peças de

informação;

II – a decisão que julgar extinta a punibilidade;

III – a sentença absolutória que decidir que o fato imputado não

constitui crime.”

A conduta de possuir maconha para uso pessoal permanece descrita no artigo 28 da Lei nº 11.343/06, mantendo sua ilicitude fora do âmbito criminal, com possibilidade de imposição de penalização de advertência ou de medida educativa de comparecimento a programa ou a curso educativo (incisos I e III da referida norma), ível de aplicação por juiz em procedimento não penal, conforme salientado no Tema 506 do STF.

Diante desse cenário, faz-se necessária a instituição de mecanismos próprios no âmbito do procedimento de natureza não penal, a fim de tornar possível a avaliação de teses preliminares de ilicitude probatória e de teses absolutórias vinculadas à inexistência material do fato.

 


[1] Tema 506 no Recurso Extraordinário de n. 635.659, de Repercussão Geral, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, julgado em 26 de junho de 2024 e com acórdão de mérito publicado em 21 de fevereiro de 2025. Disponível aqui

[2] GUIMARÃES, Márcia Colonese Lopes. Extinção da punibilidade no inquérito policial. In: Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 15, p. 182 a 188, jan./jun. 2002. Disponível aqui

[3] Informativo n. 829 de 15 de outubro de 2024, derivado do julgamento do Inq. 1.721-DF, de Relatoria do Ministro Antonio Carlos Ferreira, Corte Especial, julgado, por unanimidade, em 2/10/2024.721-DF: “Inquérito. Pedido de Arquivamento. Extinção da Punibilidade. Prescrição. Juízo de Mérito. Coisa Julgada Material. Inaplicabilidade do art. 18 do P. Decisão que vincula órgão ministerial.”.

Autores

  • é cientista social, advogada criminalista na Gabriela Gonçalves Sociedade Individual de Advocacia e especialista em istração Pública e Gerência de Cidades.

  • é advogado criminalista, professor do Departamento de Direito Penal, Criminologia e Medicina Forense da Faculdade de Direito da USP e coordenador do Centro de Pesquisa e Extensão em Ciências Criminais (ECC) da USP.

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