Opinião

Convenção 169 da OIT e desafios da consulta prévia em licenciamentos ambientais (parte 1)

Autor

20 de maio de 2025, 19h38

Este artigo é fruto de anos de vivência profissional e acadêmica com temas relacionados a povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Ao longo desse percurso, percebi o quanto essas questões exigem uma abordagem sensível, multidisciplinar e, sobretudo, comprometida com a justiça socioambiental. Ainda que o texto tenha ado por diversas versões, ele permanece em construção — como deve ser todo debate que envolve direitos fundamentais e diversidade cultural.

Reprodução

O objetivo aqui é contribuir para a reflexão sobre a aplicação da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no contexto dos licenciamentos ambientais no Brasil. Mais especificamente, propõe-se discutir o conceito de “povos interessados” e os critérios que devem orientar sua identificação para fins de consulta livre, prévia e informada (CLPI), conforme previsto na referida norma. Os demais aspectos da CLPI — como o alcance da expressão “afetá-los diretamente” e o significado de “chegar a um acordo” — serão abordados em artigos futuros.

Já tive a oportunidade de me debruçar em pesquisa acadêmica de mestrado [1] sobre as possibilidades ou os limites da democracia participativa para a defesa do meio ambiente, estudo esse que considero aplicável também para o meio social. E com essa experiência, concluí academicamente que, de um lado, por vivermos em um país de dimensões continentais, com altos índices de pobreza e pouco o à educação, a participação popular encontra diversos desafios e dificuldades. De outro lado, as dificuldades que são encontradas para a efetiva participação popular não devem ser óbice para que sejam abertos espaços para tanto. É preciso, com efeito, que haja um esforço para incluir o cidadão nas decisões estatais, participando em audiências públicas, consultas públicas, referendos, plebiscitos e outros espaços que permitam amplo debate e informação apropriada.

É nesse contexto que chama a atenção a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989, internalizada no Brasil em 2004, sobretudo quando introduz a regra do que ou a ser chamada de Consulta Livre Prévia e Informada (LI), a qual deve incidir sempre que os considerados “povos interessados” sejam afetados diretamente por medidas istrativas ou legislativas do país signatário (artigo 6º). E, em medidas istrativas, enquadram-se os atos emitidos nos procedimentos de licenciamento ambiental.

Limites de incidência da Convenção OIT 169

Uma das principais questões que merecem reflexão, portanto, é saber os limites de incidência da Convenção OIT 169, principalmente considerando licenciamentos ambientais, em que são avaliados os impactos que podem ser causados por empreendimentos e atividades econômicas, como também as medidas mitigatórias e compensatórias a os equacionar.

Para fins de delimitação deste estudo e tendo em vista a extensão imposta para esse artigo, apreciaremos, como já referido, tão somente o aspecto do que deve ser entendido como “povos interessados” para fins de incidência da Convenção 169 da OIT em licenciamentos ambientais. E, nesse sentido, vide o que indica seu artigo 1º a respeito da sua aplicabilidade, in verbis:

“Artigo 1°
1. A presente convenção aplica-se:
a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial;
b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.
2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.”

Como se nota, em relação aos povos indígenas, a aplicação da Convenção OIT 169 é indiscutível e dispensa maiores discussões. No entanto, o conceito aberto — típico de normas internacionais — de povos tribais, que tenham seus “próprios costumes ou tradições” ou que tenham “consciência de sua identidade indígena ou tribal”, tem gerado inúmeras celeumas e interpretações com uma elasticidade desarrazoada, o que vem ensejando, no Brasil, a aplicação da Convenção OIT 169 de forma indiscriminada às comunidades consideradas tradicionais em geral [2].

Spacca

O Ministério Público vem capitaneando essa interpretação, tendo seu braço federal proposto diretriz para atuação da sua 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (6ª CCR), em manual publicado a respeito[3]. Em trecho desse trabalho, consta: “Daí a importância da aplicação dos princípios estabelecidos na Convenção nº 169 da OIT no que se refere ao direito de serem consultados de maneira livre, prévia e informada, mediante procedimentos apropriados, todos os povos tradicionais acerca de medidas istrativas e legislativas que lhes possam afetar diretamente”.

O Enunciado nº 49 da 6ª CCR dispõem que “a realização de audiências públicas no âmbito do licenciamento ambiental não se confunde, não supre e não substitui a necessidade de consulta, prévia, livre e informada, nos termos previstos na Convenção nº 169 da OIT, sempre que povos indígenas e comunidades tradicionais possam ser afetados em seus interesses e direitos, ainda que seus territórios não tenham sido identificados, delimitados ou demarcados”. São inúmeras as recomendações já emitidas pelo MPF Brasil afora propondo a órgãos ambientais e ao Estado brasileiro a aplicação da Convenção 169 OIT a comunidades tradicionais em geral. Há também várias  ações civis públicas propostas, muitas com decisões impondo a incidência da Convenção nº 169 da OIT às comunidades tradicionais em geral [4].

Aplicação às comunidades tradicionais

Vemos, contudo, como equivocada a conclusão de que a aplicação da Convenção nº 169 da OIT deve se estender às comunidades tradicionais de forma indiscriminada, sobretudo em processos de licenciamento ambiental [5]. Afinal, tal extensão, que amplia o conceito de comunidades indígenas e tribais, incluindo nestas toda e qualquer comunidade que se considere ou autodeclare tradicional, acaba por exigir que tais comunidades sejam consultadas, em processo específico e prévio a qualquer ato istrativo no decorrer do licenciamento ambiental, o que inviabilizará certamente inúmeras atividades econômicas e projetos de infraestrutura no Brasil.

Além disso, é motivo de preocupação o fato de que as comunidades tidas como tradicionais estejam sendo equiparadas aos indígenas e quilombolas, como se fossem de etnias distintas da população brasileira em geral. Isso significa, afinal, a criação de várias microssociedades dentro do mesmo país, distintas não só nos seus modos de vida, mas também em sua organização social, econômica e política; o que, em última instância, conduziria a uma inconstitucional segregação da soberania nacional.

Ademais, vale a reflexão: qual o custo-benefício em consultar inúmeras comunidades tradicionais (ribeirinhos, pescadores etc.) em processos de licenciamento ambiental, na forma de LI, ou seja, antes de todos os atos istrativos serem emitidos? Isso significará, além do incontornável sobrestamento do processo em si e da emissão das licenças ambientais, a geração de expectativas infundadas, por parte das comunidades, de que grandes projetos e atividades econômicas podem atender demandas (como saúde, educação etc.) que em nada se relacionam com os impactos causados pelos empreendimentos e atividades que pretendem ser implantadas.

De fato, o processo de consulta pode virar um balcão em que demandas de assistência à saúde, educação, segurança — ou seja, próprias do poder público — são levadas a empreendedores privados, gerando um custo desarrazoado e desproporcional, dissociado dos impactos do empreendimento (o que é vedado pela Lei 13.874/2019) e, possivelmente, o afastamento de investimentos.

O intérprete deve adotar cautela adicional para que se evitem distorções e abusos hermenêuticos. Uma exegese aberta e sem critérios, baseada simplesmente na autodefinição, permitiria entender como povos tribais todas as comunidades que se autoidentificam como tradicionais, atingindo inúmeros setores da sociedade brasileira, os quais, contudo, não apresentam uma estrutura econômica, social, cultural e religiosa distintas da coletividade nacional.

Bem por isso é que a própria Convenção nº 169 da OIT estabeleceu que a mera autodefinição não é suficiente para que uma determinada comunidade seja considerada tribal. Basta ver que o já transcrito artigo 1º impõe como critério objetivo, que a norma deve incidir naqueles povos cuja estrutura social, econômica e cultural (aqui incluída a religiosa) se distinga de outros setores da coletividade nacional e, ainda, que esta estrutura esteja regida por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial.

Definição universal de povos indígenas e tribais

Para que não haja dúvidas, a própria OIT, em publicação de 2013, denominada “Understanding the Indigenous and Tribal People Convention, 1989 (nº 169)” [6], indicou que, conquanto não exista uma definição universal de povos indígenas e tribais, devem estar presentes os critérios subjetivos e objetivos que permitem identificá-los. Esse trabalho indica claramente que “a Convenção no. 169 da OIT fornece um conjunto de critérios subjetivos e objetivos, que são aplicados em conjunto para identificar quem estão esses povos em um determinado país”. É necessário atentar, inclusive, que a OIT aponta ali que “na América Latina, por exemplo, o termo ‘tribal’ foi aplicado a certas comunidades afrodescendentes”.

Em suma, a OIT explica que o critério subjetivo para definição de povo tribal é “a autoidentificação” e, ainda, que o critério objetivo é que “suas condições sociais, culturais e econômicas os distinguem de outros seguimentos da comunidade nacional” e “o seu estado é regulado total ou parcialmente por seus próprios costumes, tradições, leis ou regulamentos especiais”. É preciso que ambos os critérios estejam presentes para que uma comunidade possa ser considerada tribal para fins de incidência da Convenção OIT 169.

A bem ver, para que se enquadre como tribal, é preciso que tais comunidades não legitimem o Estado [7] em que se encontram, detendo instituições e normas próprias que regem suas relações sociais. E daí, inclusive, a necessidade de serem consultados individualmente. Nesse sentido, aliás, segue o texto constante no Preâmbulo da Convenção OIT 169: “Reconhecendo as aspirações desses povos a assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram.” (tradução livre)

Dessa forma, é possível dizer que a Convenção nº 169 da OIT incide para todos os povos indígenas e para aqueles grupos que comportem os critérios objetivos e subjetivos ali definidos. A norma, repita-se, não deve incidir de forma indiscriminada a qualquer comunidade que se autoidentifique como tribal ou tradicional. A ampliação excessiva do conceito de povos tribais pode gerar insegurança jurídica, sobrecarga nos processos de licenciamento e distorções quanto às responsabilidades do Estado e dos empreendedores.

Portanto, a aplicação da CLPI deve ser feita caso a caso, com base em critérios técnicos e jurídicos claros, de modo a garantir a efetiva proteção dos direitos dos povos indígenas e tribais, procurando o equilíbrio entre proteção socioambiental e segurança jurídica.

 


[1] ARTIGAS, Priscila Santos. Os limites da democracia participativa na defesa do meio ambiente. Dissertação de Mestrado, Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Maio/2008

[2] Diz-se “geral”, pois as comunidades indígenas (e as quilombolas, como se verá) também são tradicionais, porém em sentido estrito, tendo em vista que tem tratamento próprio na legislação brasileira. Ou seja, considera-se neste artigo como comunidades tradicionais o conceito mais abrangente, no qual estão incluídas as comunidades indígenas e quilombolas.

[3][3] Ministério Público Federal, Territórios de Povos e Comunidades Tradicionais e as Unidades de Conservação Integral: Alternativas para o asseguramento de direitos socioambientais. Disponível aqui.

[4] Nesse sentido, vide TRF1 – Agravo de Instrumento nº 0031507- 23.2014.4.01.0000, Desembargador Relator Ney Bello, Terceira Turma, D.J.e 12.06.2015 e TRF1 – Agravo de Instrumento nº 0027843-13.2016.4.01.0000, Desembargador Relator Souza Prudente, Quinta Turma, D.J.e 24.05.2017.

[5] Essa também é a conclusão de Eduardo Fortunato Bim, in A participação dos povos indígenas e tribais Oitivas na Convenção 169 da OIT, Constituição Federal e Instrução Normativa n. 1 da Funai (IN FUNAI 01/2012). Revista de informação legislativa, v. 51, n. 204, p. 203-229, out./dez. 2014. Disponível aqui. Uma reflexão importante e aprofundada a esse respeito foi feita igualemente em COBUCCI, Vinícius; KOKKE, Marcelo. Povos tribais no direito brasileiro: uma proposição de critérios científicos para identificação e classificação. In International Journal of Development Research. Vol. 12, Issue, 02, pp. 53869-53875, February, 2022.

[6] Disponível aqui

[7] Vale observar que o Brasil permite que os povos indígenas tenham tribunais próprios, que inclusive podem penalizar criminalmente aqueles membros que afrontarem regras da comunidade.

Autores

  • é advogada, parecerista, doutora em Direito Econômico e Financeiro (concentração em Direito Ambiental) pela Faculdade de Direito da USP (2012), mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da USP (2008), especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Saúde Pública da USP, conselheira do Instituto dos Advogados de São Paulo – (Iasp), presidente da Comissão Permanente de Estudos de Direito Ambiental do Iasp, vice-diretora da Escola Paulista de Advocacia (EPA), membro da União dos Advogados Ambientalistas (UBAA), professora de Direito Ambiental no curso de pós-graduação da UFPR, autora do livro Medidas Compensatórias no Direito Ambiental: Uma Análise a Partir da Compensação Ambiental da Lei do SNUC (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017) e sócia fundadora do Artigas Advocacia Ambiental (AAA).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!