Opinião

Pode ou deve o juiz conduzir coercitivamente a vítima de violência doméstica?

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  • é defensor Público do Estado de Rondônia. Ex-defensor público do Amapá mestrando em Direito pela Univali (Universidade do Vale do Itajaí) professor universitário. especialista em Direito Público pela PUC-MG (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) e em Direito Constitucional pela Ucam (Universidade Cândido Mendes).

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25 de maio de 2025, 11h24

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Violência contra mulher / violência doméstica

Um dos maiores desafios no processo penal hoje parece ser balancear, adequadamente, a partir de pressupostos axiológicos constitucionais e convencionais garantias e regras processuais que, prima facie, se repelem. Essa tensão entre liberdade e punitivista estatal, come feito, é o que dá a tônica das regras do jogo processual.

Nessa perspectiva, se questiona se pode (ou se deve) o juiz, condutor do processo penal deferir eventual pedido de condução coercitiva da vítima de violência doméstica.

O primeiro questionamento — o juiz pode? — parece mais simples de revolver. Com efeito, o artigo 260 do Código de Processo Penal responde afirmativamente o questionamento ao estabelecer que “Art. 260.  Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”.

Concorde-se ou não com o seu teor, o dispositivo permanece hígido, não tendo sido objeto de controle concentrado de constitucionalidade, devendo se presumir a sua compatibilidade com a Carta Maior.

Dessa forma, a resposta parece ser positiva, isto é, o juiz não está impedido pelas regras atualmente vigentes de determinar a condução coercitiva da vítima.

O juiz deve?

Por outro lado, o segundo questionamento (o juiz deve determinar a condução coercitiva da vítima de violência doméstica) exige uma análise mais robusta.

Isso porque o que deve ou não ser feito pelo juiz pera, necessariamente, uma análise de ability e responsividade social, ultraando um estudo de possibilidade (que encontra sua resposta nos limites estritos da legalidade) e exigindo uma resposta que seja juridicamente adequada (aquilo que parece recomendável).

Resgatando uma premissa inaugural do texto, a análise da possibilidade de condução coercitiva da vítima de violência doméstica tem como pilar valorativo a tensão existente entre o direito do Ministério Público em produzir a prova e a preocupação com a dignidade da vítima.

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Partindo  do pressuposto de que, no processo penal, não mais se fala em princípio da verdade real na medida em que se reconhece que o Estado-juiz não busca o restabelecimento da verdade, mas se limita a determinar (em uma sentença) se a hipótese fática encerrada na denúncia pelo órgão de acusação restou devidamente comprovada, quando do pedido de condução coercitiva da vítima, como regra, existirão dois interesses colidentes: o do Ministério Público, na produção da prova, e o da vítima, em não se submeter a um procedimento de revitimização.

Essa é  ratio decidendi de decisões que concluem pela impossibilidade de condução coercitiva da vítima: “O direito à produção de prova no processo penal não é absoluto, sendo mitigado quando concorre com outros direitos constitucionais: a dignidade da vítima mulher e a liberdade de locomoção. Não é razoável conduzir a vítima coercitivamente para depor sobre a sua desdita, que não raro a envergonha” (TJ-DF — 0093951120188070003).

Coação da vítima

A matéria, contudo, deve ser discutida com cautela. Caso haja indícios de que a vítima esteja sendo, de qualquer forma, coagida a não comparecer em Juízo, a condução coercitiva se mostra a medida adequada.

Essa ilação, é importante pontuar, deve estar amparada em indícios, ainda que mínimos, não bastando a ausência da pessoa devidamente intimada.

Dessa forma, ausente mínima prova fática ou suspeita de que a vítima estaria sendo coagida a não comparecer em Juízo, não se justifica a adoção de medida excepcional como a condução coercitiva, pois não é razoável obrigar a vítima a rememorar os fatos, sujeitando-a a um processo de revitimização (TJ-DF — 0093951120188070003).

Caso o magistrado entenda que existe dúvida acerca dos motivos do não comparecimento da vítima à solenidade — ou seja, se existe qualquer espécie de coação —, mas não haja indícios concretos nesse sentido, recomendável que haja prévia averiguação por parte do juízo, a exemplo da realização de estudo social com a vítima, a fim de depreender os motivos pelo não comparecimento.

Feito o estudo, são dois os possíveis desdobramentos:

  1. Reconhecido que a vítima não compareceu espontaneamente: deve prevalecer a sua vontade de não depor sobre os fatos apurados, não sendo recomendável (não deve o juiz..) a determinação da condução coercitiva.
  2. Reconhecida que a ausência da vítima se deu em razão de constrangimento: havendo o desejo da vítima em comparecer e depor sobre os fatos, deve o juiz garantir o seu regular comparecimento e, sendo o caso, determinar a condução coercitiva com a dispensa do pagamento de multa da diligência.

Vontade da vítima respeitada

O objetivo dessa cautela é garantir que a vontade da vítima seja, de fato, respeitada, não sendo mitigada pelo direito do acusador de produzir a prova. Isso porque, não é dever apenas do magistrado, mas de todos os atores do processo, conduzir a lide com responsividade social, velando para resguardar o direito das partes, especialmente da vítima.

Nessa toada, a dignidade da vítima (artigo 1º, III, da Constituição de 1988) é um dos pilares que sustentam o processo penal, recebendo desnecessária lesão quando, contra sua vontade, se submete a situação vexatória, como a condução coercitiva, sendo levada a responder a perguntas sobre sua vontade.

Outro argumento que releva que não deve — ainda que possa! — o juiz determinar a condução coercitiva da vítima de violência doméstica é uma decorrência lógica do utilitarismo.

Isso porque a vítima, ainda que conduzida coercitivamente, tem o direito de não responder aos fatos, permanecendo em silêncio. Esse direito foi reconhecido no Enunciado nº 50 no 11º Fonavid (Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher), que possui a seguinte redação: “Deve ser respeitada a vontade da vítima de não se expressar durante seu depoimento em juízo, após devidamente informada dos seus direitos”.

E aqui deve-se fazer um paralelo com a situação do réu envolvendo esses dois elementos: o direito ao silêncio e a possibilidade de condução coercitiva.

Condução coercitiva do réu é ilegal

No julgamento das ADPF 395 e 444, o Supremo Tribunal Federal fixou a tese vinculante no sentido de ser ilegal qualquer medida tendente à condução coercitiva do réu para realização de interrogatório judicial. Na ratio decidendi, o plenário do STF reconheceu que a condução coercitiva representa uma clara interferência na liberdade de locomoção, ainda que por período breve e, no ponto que interessa, uma Potencial violação ao direito à não autoincriminação, na modalidade direito ao silêncio, incorporado, no plano legal, desde a Lei 10.92/03.

É dizer: se o réu tem o direito de comparecer à audiência de instrução e julgamento para, no momento de seu interrogatório, permanecer em silêncio, não respondendo a nenhuma pergunta, mostra-se inócua determinar a sua condução coercitiva.

Isso porque a medida, ainda que cumprida, não terá qualquer efeito acerca da prova produzida, na medida em que, conquanto fosse possível obrigar o comparecimento do réu, não era possível obriga-lo a falar (por evidente, o princípio do nemo tenetur se detegere agasalha a pretensão de não responder a qualquer pergunta).

Compreendida a lógica pela qual se vedou, peremptoriamente, a condução coercitiva do réu para fins de interrogatório, torna-se evidente que a mesma razão se aplica à situação da vítima, fazendo-se valer aqui o brocardo “ubi eadem ratio“, “ibi eadem legis dispositivo”, ou, em outras palavras, diante da mesma razão fundamental, deve prevalecer a mesma regra de direito.

Vítima e direito do silêncio

Em síntese, tem-se o seguinte: ainda que fosse cumprida a ordem de condução coercitiva, a vítima de violência doméstica está agasalhada pelo direito de não responder a nenhum questionamento, permanecendo em silêncio. Dessa forma, a medida, além de violar a sua dignidade, perpetuando um processo de revitimização, não assegura a produção da prova.

É dizer: tem-se o ônus da medida (constrangimento da vítima e revitimização) sem que haja bônus (a prova não é produzida).

Dito isso, ainda que se reconheça que, de fato, o juiz pode (porque a legislação permite) determinar a condução coercitiva da vítima de violência doméstica, deve-se concluir que não deve fazê-lo, sendo a medida temerária e desaconselhada por perpetuar o processo de revitimização em troca de uma prova, que quiçá nem será produzida.

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