Opinião

No Brasil, Trump poderia suspender o Habeas Corpus?

No início de maio, Stephen Miller, vice-chefe de gabinete da Casa Branca para políticas, cuja principal agenda é a “cruzada anti-imigração”, afirmou expressamente que o governo dos Estados Unidos estaria considerando a suspensão do Habeas Corpus: “o privilégio do Habeas Corpus pode ser suspenso em caso de invasão. Portanto, é uma opção que estamos considerando ativamente”.

Daniel Torok/White House
Donald Trump, presidente dos EUA

Essa exceção está prevista na Constituição dos EUA que dispõe em seu artigo 1º, seção 9, que “não poderá ser suspenso o remédio do Habeas Corpus, exceto quando, em caso de rebelião ou de invasão, a segurança pública o exigir”. A retórica de que os EUA estariam sendo invadidos tem sido utilizada pelo governo Trump para justificar deportações, inclusive com base na chamada “Lei do Inimigo Estrangeiro” de 1798.

Uma primeira observação a ser feita é de que o Habeas Corpus não é um “privilégio”, mas verdadeira garantia fundamental. Não é uma benevolência do Estado, mas fruto de lutas históricas para limitação do arbítrio estatal.

No mundo, o Habeas Corpus remonta aos primeiros documentos considerados como origem dos “direitos humanos”. A Magna Carta do Rei João Sem-Terra da Inglaterra, de 1215, que catalogou os direitos dos indivíduos contra o Estado, é o primeiro deles. A Magna Carta assegurou o devido processo legal. Desta forma, nenhum homem (considerado) livre seria detido ou aprisionado senão mediante o controle jurisdicional de acordo com a lei [1]. Assim, para assegurar o direito à liberdade individual, aram a ser expedidos os chamados “writ” de Habeas Corpus, com o objetivo de que o juiz verificasse a legalidade da prisão e decidisse sobre sua manutenção.

Direito Penal do Inimigo nos EUA e o HC no Direito brasileiro

Além disso, é visível o uso de um discurso que trata os imigrantes como verdadeiros “inimigos”. O professor Juarez Cirino dos Santos [2] nos ensina que o Direito Penal do Inimigo proposto por Günther Jakobs divide os destinatários do sistema penal em duas categorias de seres humanos, com direitos diferentes: o cidadão regido pelo Direito Penal do fato e da culpabilidade, e o inimigo regido pelo Direito Penal do autor e da periculosidade.

Assim, a pessoa a a ser punida ou perseguida pelo o que ela é, pensa ou representa, e não pelo que faz ou deixa de fazer. No caso estadunidense, pelo simples fato de ser imigrante. No entanto, tal modelo é inissível em um Estado Democrático de Direito, cujo epicentro é a dignidade da pessoa humana.

Spacca

E, em nosso país, o Habeas Corpus poderia ser suspenso?

O habeas corpus brasileiro é uma ação de natureza mandamental com status constitucional, cuja função é proteger a liberdade de locomoção dos cidadãos frente à ilegalidade ou abuso de poder [3]. Trata-se de um direito fundamental inerente a todo ser humano. Assim, quando a Constituição fixa direitos fundamentais que não podem ser suprimidos sequer pela vontade da maioria (por constituírem-se em cláusulas pétreas), ela também fixa alguns instrumentos que servem como garantia a esses direitos fundamentais. Uma dessas garantias é justamente o HC.

A primeira manifestação do instituto em nosso país se deu em 1821, através de um alvará emitido por Dom Pedro I, pelo qual se assegurava a liberdade de locomoção, apesar de não ter sido usada a expressão “Habeas Corpus” [4]. Essa nomenclatura só apareceria na década de 1830, conforme Aury Lopes Jr., que nos ensina que o Habeas Corpus foi introduzido no sistema jurídico brasileiro a partir do modelo inglês, no artigo 340 do Código de Processo Criminal, prevendo apenas a modalidade liberatória. Em 1871, foi introduzida a modalidade preventiva para os casos em que o cidadão estivesse ameaçado (na iminência) de sofrer uma restrição ilegal em sua liberdade.

Na Constituição de 1891, ou seja, a partir da segunda constituição brasileira, o habeas corpus foi consagrado como um instrumento processual de fundamental importância para a proteção da liberdade de locomoção ambulatória. Desde então, vem sendo mantido em todas as Constituições [5].

No entanto, durante o regime ditatorial foi instituído o Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 1968, que suspendeu direitos e garantias constitucionais. O AI-5, deu origem a Emenda Constitucional de 1969 [6], que restringiu o cabimento do HC. Nesse período, o Habeas Corpus foi suspenso em casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social, e contra a economia popular [7]. Foi essa suspensão que levou ao indeferimento dos HCs impetrados pelos familiares de desaparecidos durante a ditadura, inclusive o de Rubens Paiva, torturado e assassinado pelo Estado brasileiro. Portanto, observa-se que o único período de suspensão do Habeas Corpus ocorreu durante o período mais sombrio do regime militar no Brasil.

Hoje, a previsão normativa se encontra no artigo 5º, LXVIII, da Constituição (CF) e artigos 647 e 647-A do Código de Processo Penal (P), este último inserido recentemente na Lei nº 14.836 de 2024, que consolidou em lei a possibilidade de habeas corpus coletivo, o que já vinha sendo itido pela doutrina e pela jurisprudência.

Tamanha é sua importância que, nem mesmo no chamado “sistema constitucional de crises” — composto pelo Estado de Defesa e pelo Estado de Sítio —, o HC poderá ser suspenso.No estado de defesa (artigo 136, § 1º, I, da CF), apenas os direitos de (a) reunião, ainda que exercida no seio das associações; (b) sigilo de correspondência e (c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica podem ser restringidos (e não suprimidos). Neste rol não está incluído o HC. E, como se sabe, regras limitadoras de direitos devem ser interpretadas restritivamente. Por sua vez, no estado de sítio – medida ainda mais gravosa – também não há qualquer menção à restrição do habeas corpus (artigo 139 da CF).

Além disso, a previsão de Habeas Corpus também pode ser extraída dos artigos 7º.6 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH). E a Corte Interamericana de Direitos Humanos na Opinião Consultiva nº 8 de 1987 decidiu que tal garantia não pode ser suspensa.

No âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, o direito ao Habeas Corpus pode ser extraído dos artigos 7.6 e 25.1 da CADH. Sobre o tema, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Opinião Consultiva de nº 8/1987, decidiu que o Habeas Corpus, por se tratar de uma garantia judicial indispensável à proteção de direitos e liberdades, bem como por preservar a legalidade em uma sociedade democrática, não pode ser suspenso em hipótese alguma, inclusive nos estados de emergência, previstos no artigo 27 da convenção. A corte assinala, ainda, que o Habeas Corpus é o meio idôneo, tanto para garantir a liberdade, controlar o respeito à vida e à integridade pessoal e impedir o desaparecimento ou a indeterminação do lugar de detenção, bem como para proteger o indivíduo contra a tortura, maus tratos, penas cruéis, desumanas ou degradantes. A experiência sofrida por diversos povos de nosso hemisfério em décadas recentes, no contexto de desaparecimentos, torturas e assassinatos cometidos ou tolerados por alguns governos, fundamenta essas conclusões da corte [8].

Além disso, a respeito do Habeas Corpus, a corte ainda já decidiu que [9]: 1) deve ser garantido a qualquer momento da prisão, inclusive em hipóteses legais de incomunicabilidade do preso; 2) deve ser julgado apenas por autoridade judicial; 3) é um recurso eficaz para localizar o paradeiro de uma pessoa ou esclarecer se há uma situação lesiva à liberdade pessoal; 4) a análise do pedido deve ocorrer em um prazo razoável; 5) não basta que exista formalmente, mas deve ser efetivo, proporcionando à pessoa a possibilidade real de utilizar um recurso simples e rápido para buscar sua proteção judicial [10].

Portanto, a existência do Habeas Corpus está profundamente ligada à própria noção de democracia — prova disso é que, no Brasil, sua única suspensão ocorreu durante o regime ditatorial. Hoje, não há qualquer margem para a suspensão dessa garantia porque seria uma afronta à cláusula pétrea da Constituição, assim como da Convenção Americana, que veda tal suspensão. Sustentar o contrário seria abrir caminho para a abolição do próprio Estado Democrático de Direito. E isso não podemos mais itir.

 


[1] Artigo 39 da Magna Carta: Nenhum homem livre será detido ou aprisionado, ou privado de seus direitos ou bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou despojado, de algum modo, de sua condição; nem procederemos com força contra ele, ou mandaremos outros fazê-lo, a não ser mediante o legítimo julgamento de seus iguais e de acordo com a lei da terra.

[2] Santos, Juares Cirino dos. Criminologia: contribuição para a crítica da economia da punição, 1ª ed – Tirant Lo Blanch, 2021.

[3] Lopes Junior, Aury. Direito processual penal – 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

[4] Lenza, Pedro.  Direito Constitucional – 24. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

[5] Ou seja, com exceção da primeira Constituição de 1824.

[6] A emenda constitucional de 1969 alterou a Constituição de 1967.

[7] Artigo 10 do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968.

[8] Na Opinião Consultiva de nº 9/1987, por sua vez, a Corte IDH reafirmou a vedação de sua suspensão, incluindo o habeas corpus em um quadro mais abrangente de garantias, enfatizando a sua precisa localização no rol de garantias previstas pelo devido processo legal (art. 8º da CADH).

[9] Conforme os seguintes casos: Caso Suárez Rosero Vs Equador, 1997; Caso Chaparro Álvarez e Lapo Íñiguez Vs Equador, 2007; Caso de las Hermanas Serrano Cruz Vs. El Salvador, 2005; Caso “Instituto de Reeducación del Menor” Vs. Paraguai, 2004; Caso Tibi Vs Equador, 2004

[10] A respeito do direito ao recurso na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, vide: XAVIER. Gonçalo Rezende de Melo Sant’Anna. A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o direito ao recurso e ao duplo grau de jurisdição: o descumprimento pelo Brasil da Convenção Americana de Direitos Humanos. Polifonia – Revista Internacional da Academia Paulista de Direito, São Paulo, Número 1, p. 180-212, 2018 outono/inverno. Disponível aqui

Autores

  • é pós-doutoranda em Direito Penal e doutora em Direito Internacional pela Uerj, com vasta experiência profissional na Comissão e na Corte Interamericana de Direitos Humanos, com possui mestrado em Relações Internacionais pela Universidad Torcuato di Tella (Argentina).

  • é mestrando em Direito Penal pela Uerj, defensor público do estado do Rio de Janeiro, ex-defensor público do estado de São Paulo e graduado em Direito pela Uerj.

  • é mestrando em Direito Penal pela Uerj, assistente jurídico no TJ-S, graduado em Direito pela PUC-SP, coordenador-adjunto do Núcleo de Pesquisa Criminologia Brasil da Academia Paulista de Direito, vinculado à Cadeira San Tiago Dantas.

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