ADPF 976: como inserir a população em situação de rua no orçamento?
27 de maio de 2025, 9h52
Quase dois anos se aram desde a paradigmática medida cautelar concedida pelo ministro Alexandre de Moraes nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 976 (ADPF 976). Infelizmente muito pouco se avançou desde que o Supremo Tribunal Federal itiu, liminarmente, a ocorrência de um “estado de coisas inconstitucional concernente às condições desumanas de vida da população em situação de rua no Brasil”.
Segundo o voto do ministro relator, proferido em 25 de julho de 2023 e referendado pelo Plenário do STF em 22 de agosto daquele mesmo ano, a ADPF 976 pautou “a discussão acerca das condições precárias de vida” das pessoas em situação de rua. Dada a extrema vulnerabilidade de tais cidadãos, reconheceu-se ser essa uma “crise social crônica multifacetada, pois acompanha a história brasileira e tem como causa fatores e agentes diversos”.
Entre os motivos mais invocados para a circunstância de um indivíduo ar a viver nas ruas, conforme levantamento empreendido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, estão os problemas com familiares e companheiros (47,3%); o desemprego (40,5%); o uso abusivo de álcool e outras drogas (30,4%) e a perda de moradia (26,1%).
Fato é que a extrema desigualdade e a fragmentação do tecido social impõem distintas camadas de vulnerabilidade e, entre as muitas clivagens de exclusão, a mais frágil e discriminada é a população em situação de rua.
Historicamente, o marco inicial das ações e omissões estatais impugnadas judicialmente no âmbito da ADPF 976 remonta, no mínimo, à edição do Decreto Federal nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009, que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPSR). Todavia, no intervalo entre 2009 e 2023, a população em situação de rua multiplicou-se mais de dez vezes, em cenário agravado pela pandemia da Covid-19.
Afinal, não bastava a mera enunciação programática de uma política nacional para a população em situação de rua, tal como feita pelo Decreto nº 7.053/2009, se essa não viesse acompanhada de suficientes esforços estatais para evitar que cidadãos assem a viver em situação de rua; para garantir a dignidade dos que já estivessem nas ruas; ou para proporcionar sustentadamente a superação dessa condição.
Eis a razão pela qual, em meados de 2023, a Corte Constitucional determinou que o governo federal formulasse, no prazo de 120 dias e em diálogo com diversas entidades sociais e estatais, um “Plano de Ação e Monitoramento para a Efetiva Implementação da Política Nacional para a População em Situação de Rua”.
Logo de saída, o demandado planejamento setorial deveria ser lastreado em estratégias de conhecimento e rastreio contínuo das pessoas em situação de rua, mediante: (1) “diagnóstico atual da população em situação de rua, com identificação do perfil, da procedência e de suas principais necessidades, entre outros elementos a amparar a construção de políticas públicas voltadas ao segmento”; (2) “instrumentos de diagnóstico permanente da população em situação de rua”; e (3) “mecanismos para mapear a população em situação de rua no censo realizado pelo IBGE”.

Uma vez cumprida tal etapa de diagnóstico, o plano de ação federal deveria definir (4) “meios de fiscalização de processos de despejo e de reintegração de posse no país, e seu impacto no tamanho da população em situação de rua”. Tal medida preventiva dialoga com o dever de (5) elaborar “diretrizes para a intervenção do Poder Público, pautadas no tratamento humanizado e não violento da população em situação de rua, englobando, entre outros, a formação e o treinamento de agentes públicos, bem como as formas de abordagens específicas aos ‘hiperhipossuficientes’”.
Para tirar do papel aludidas diretrizes de relacionamento humanizado, deveriam ser elaborados e implementados (6) “programas de capacitação e de sensibilização de agentes públicos das áreas da saúde, assistência social, educação, segurança pública, justiça, entre outras, para atuarem junto à[quela] população”.
Emancipação e prevenção
Mas de nada adiantariam os diagnósticos governamentais, as diretrizes institucionais e as estratégias de capacitação de agentes públicos, se não houvesse a garantia de captação dinâmica e contínua dos interesses das pessoas em situação de rua, em relação à demanda estrutural de o a uma moradia digna. Seria uma política pública sobre a rua, sem ouvir, de fato, a população que ali vive provisoriamente, porque ela ainda não teria conseguido validamente integrar algum programa habitacional em prol da população de baixa renda. Daí se explica porque o STF determinou que o plano de ação federal deveria (7) incorporar “na Política Nacional de Habitação as demandas da população em situação de rua”.
Semelhante foco aplicado a outras políticas públicas já existentes consta do dever imposto ao governo federal de (8) analisar “programas de transferência de renda e sua capilaridade em relação à população em situação de rua”.
A cautelar na ADPF 976, referendada pelo Plenário do STF, também determinou que o plano federal dedicado a implementar efetivamente a política nacional para a população em situação de rua: (9) previsse “um canal direto de denúncias contra violência”; (10) elaborasse “medidas para garantir padrões mínimos de qualidade nos centros de acolhimento, resguardando a higiene e a segurança dos locais”; (11) desenvolvesse “programas de prevenção de suicídio junto à população em situação de rua”; bem como (12) elaborasse “programas educacionais e de conscientização pública sobre a aporofobia e sobre a população em situação de rua”.
Em busca de uma via emancipatória para aqueles se encontram em situação de rua, o Supremo Tribunal impôs ao Executivo federal que (13) formulasse “políticas para fomentar a saída da rua através de programas de emprego e de formação para o mercado de trabalho”. Em igual medida, houve a fixação dos deveres de (14) “elaboração de medidas para o fortalecimento de políticas públicas voltadas à moradia, trabalho, renda, educação e cultura de pessoas em situação de rua”; assim como de (15) “indicação de possíveis incentivos fiscais para a contratação de trabalhadores em situação de rua”.
Em face dos demais entes da federação, a decisão cautelar na ADPF 976 foi igualmente detida em determinar aos Poderes Executivos dos municípios e do Distrito Federal e, no que couber, dos estados, no âmbito das respectivas competências de zeladoria urbana e de oferta de abrigos, que:
1) “efetivem medidas que garantam a segurança pessoal e dos bens das pessoas em situação de rua dentro dos abrigos institucionais existentes”;
2) “disponibilizem o apoio das vigilâncias sanitárias para garantir abrigo aos animais de pessoas em situação de rua”;
3) “proíbam o recolhimento forçado de bens e pertences, assim como a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua”; bem como
4) “vedem o emprego de técnicas de arquitetura hostil contra as populações em situação de rua, bem como efetivem o levantamento das barreiras e equipamentos que dificultam o o a políticas e serviços públicos, assim como mecanismos para superá-las”.
Especificamente no âmbito das ações de conservação e limpeza de bens públicos, a cautelar proferida pelo ministro Alexandre de Moraes foi extremamente sensível e pragmática em determinar que os municípios e o DF:
1. divulgassem “previamente o dia, o horário e o local das ações de zeladoria urbana nos seus respectivos sites, nos abrigos, e outros meios em atendimento ao princípio da transparência dos atos da istração pública permitindo assim que a pessoa em situação de rua recolha seus pertences e que haja a limpeza do espaço sem conflitos”;
2. prestassem “informações claras sobre a destinação de bens porventura apreendidos, o local de armazenamento dos itens e o procedimento de recuperação do bem”;
3. promovessem “a capacitação dos agentes com vistas ao tratamento digno da população em situação de rua, informando-os sobre as instâncias de responsabilização penal e istrativa”;
4. garantissem “a existência de bagageiros para as pessoas em situação de rua guardarem seus pertences”;
5. determinassem “a participação de agentes de serviço social e saúde em ações de grande porte”;
6. disponibilizassem “bebedouros, banheiros públicos e lavanderias sociais de fácil o para população em situação de rua”; bem como
7. realizassem “inspeção periódica dos centros de acolhimento para garantir, entre outros, sua salubridade e sua segurança”.
A imposição de obrigações de fazer concretas prossegue, de modo que o STF determinou, ainda, aos governos municipais, distrital e estaduais que realizassem periodicamente “mutirões da cidadania para a regularização de documentação, inscrição em cadastros governamentais e inclusão em políticas públicas existentes”.
Os entes políticos, na medida das suas atribuições, também devem criar “programa de enfrentamento e prevenção à violência que atinge a população em situação de rua” e formular “protocolo intersetorial de atendimento na rede pública de saúde para a população em situação de rua”.
Dada a fragilidade climatológica a que estão expostas as pessoas em situação de rua, devem os Poderes Executivos conferir “ampla disponibilização e divulgação de alertas meteorológicos, por parte das Defesas Civis de todos os entes federativos, para que se possam prever as ondas de frio com a máxima antecedência e prevenir os seus impactos na população em situação de rua”.
Nessa mesma linha de ação preventiva, devem ser disponibilizados imediatamente pela Defesa Civil, “barracas para pessoas em situação de rua com estrutura mínima compatível com a dignidade da pessoa humana, nos locais nos quais não há número de vagas em número compatível com a necessidade”. Também foi fixada a obrigação imperativa de “disponibilização de itens de higiene básica à população em situação de rua”.
Por fim, mas não menos importante, o STF determinou que os governos municipais e distrital, no prazo de 120 dias, fizessem “diagnóstico pormenorizado da situação nos respectivos territórios, com a indicação do quantitativo de pessoas em situação de rua por área geográfica, quantidade e local das vagas de abrigo e de capacidade de fornecimento de alimentação”.
Resposta
Em atendimento à cautelar na ADPF 976, o governo federal editou o Plano Ruas Visíveis (disponível aqui):
“O Plano de Ação e Monitoramento prevê um orçamento inicial de mais de R$ 982.086.246,22 para a efetivação da PNPSR. Não há política pública sem investimento para garantir programas estruturais com inclusão da população em situação de rua. Não superaremos o grave cenário atual com ações pontuais, superficiais ou esparsas, mas com ações estruturantes, coordenadas, transversais, intersetoriais e implementadas em parceria entre o Governo Federal, estados e municípios. Garantiremos que o orçamento previsto para o Plano chegue às pessoas em situação de rua por meio da transparência e do controle social sobre a aplicação dos recursos, do fortalecimento das institucionalidades da PNPSR e do monitoramento dos órgãos de controle.
Entre as ações apresentadas a seguir, retomamos iniciativas da PNPSR voltadas ao o à moradia, assistência social, saúde, emprego e renda. Incluímos medidas legislativas importantes, que contarão com o apoio da Frente Parlamentar em Defesa da População de Rua, recentemente relançada na Câmara dos Deputados, como a apresentação de Protocolo para enfrentamento à violência institucional contra a população em situação de rua, além da atualização do Decreto da PNPSR para incorporar as novas soluções que o Plano traz, e a regulamentação da Lei Padre Júlio Lancellotti, que veda o uso da arquitetura hostil que dificulta a presença das pessoas em situação de rua. Destaque do Plano é o Programa Moradia Cidadã, proposta inovadora de política de atenção à população em situação crônica de rua, com promoção do o à moradia, com acompanhamento de equipes profissionais para pessoas ou famílias em situação crônica de rua, a fim de que possam construir uma vida autônoma e de consolidação dos seus direitos humanos, com vistas à superação da situação de rua.”
A rigor, cerca de R$ 1 bilhão em recursos federais para o horizonte temporal de 2023 a 2026 traz consigo um relativamente baixo nível de previsão orçamentária de cerca de R$ 250 milhões/ano, ou seja, cerca de R$ 20 milhões/mês, o que é francamente insuficiente para fazer face à demanda de atendimento de mais de 200 mil brasileiros em situação de rua. É como se o governo federal previsse menos de R$ 1 mil mensais para cada pessoa em situação de rua, que, a bem da verdade, precisa de intervenções estruturais de larga envergadura, a exemplo de moradia, emprego, transferência de renda enquanto não conseguir sair da extrema pobreza, segurança alimentar, proteção à integridade física, atendimento de saúde psicossocial etc.
Obviamente, a responsabilidade pela implementação da PNPSR não é exclusiva da União e obriga, igualmente, os estados, o DF e os municípios. Interessante lembrar que – dada a baixa adesão espontânea dos entes políticos – a decisão liminar proferida pelo STF na ADPF) 976 determinou a observância imediata, pelos estados, DF e municípios, das diretrizes contidas na PNPSR, independentemente de aceite formal. As determinações impostas pelo STF, como, por exemplo, garantia de bebedouros, banheiros públicos, lavanderias sociais e bagageiros, têm natureza de obrigação de fazer e devem ser inseridas no ciclo orçamentário dos entes políticos como despesas obrigatórias não suscetíveis de contingenciamento, na forma do artigo 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Todavia, para inserir efetivamente a população em situação de rua no orçamento público de todos os níveis da federação, talvez a medida de maior impacto e relevo seja uma leitura sistemática da 15ª determinação proferida pelo STF em face do governo federal, mas que deveria se estender aos demais entes. Tal determinação diz respeito aos incentivos fiscais para a contratação de trabalhadores em situação de rua.
Para incluir no orçamento público brasileiro os brasileiros em situação de rua, é preciso coobrigar quem se beneficia com centenas de bilhões de reais em gastos tributários, a maioria deles concedida por prazo indeterminado e sem monitoramento das contrapartidas prometidas no ato da sua concessão, impondo-lhes, tanto quanto possível, o dever de também participarem em prol da implementação do PNPSR.
Assim, de fato, os mais pobres e vulneráveis seriam inseridos – de algum modo – no orçamento público, enquanto alguns dos mais privilegiados fariam por onde para justificar os incentivos fiscais de que gozam.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!