Crítica Penal

Publicidade opressiva, abuso de autoridade e banalização do Habeas Corpus

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27 de maio de 2025, 8h00

Viralizou recentemente nas redes sociais o vídeo em que um delegado de polícia e sua equipe de policiais executam uma ordem de prisão dentro de um consultório médico na cidade de Ribeiro Preto (SP) [1]. O alvo da medida era um médico suspeito de ter cometido feminicídio cuja vítima era a sua própria esposa. Para além da gravidade do fato sob investigação, também chamou a atenção o fato de a execução da prisão ter sido gravada pela equipe que acompanhava o delegado e depois ter sido exposta publicamente, inclusive com imagens do suspeito sendo algemado pelos policiais.

O próprio uso de algemas já seria digno de críticas, sobretudo diante da vigência da Súmula Vinculante 11 do STF [2], pois, aparentemente, como o próprio vídeo divulgado revela, o suspeito não ofereceu resistência, nem apresentou risco de empreender fuga ou de colocar em perigo a integridade física das pessoas presentes. No entanto, o que motivou a elaboração desta coluna foi a exposição midiática que o vídeo do episódio proporcionou.

De fato, não são raros os casos em que a imprensa divulga operações policiais ainda em fase de investigação e expõe publicamente o nome e a imagem daqueles que estão sendo investigados. Esse é um problema sério que há muito já foi diagnosticado: o julgamento da opinião pública é instantâneo, não respeita o devido processo legal nem a ampla defesa, e, depois, se ao final da ação penal restarem comprovadas a injustiça e a inocência daquele que foi publicamente exposto, dificilmente será possível reparar o abalo à honra sofrido em decorrência da matéria jornalística.

Nós reconhecemos que um dos valores mais fundamentais de uma democracia é a existência de uma imprensa livre e independente, conforme inclusive é positivado no artigo 220 da nossa Constituição Federal. O nosso foco não é no livre exercício do jornalismo, mas, sim, em relação à atuação daqueles que estão vinculados a deveres de conduta por exercerem uma função pública.

A Lei nº 13.869 foi promulgada em 5 de setembro de 2019 e modificou o regramento relacionado aos crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído. Note-se que, no artigo 13, inciso I, a lei ou a criminalizar a conduta do agente público que constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública.

Em publicação nesta revista eletrônica Consultor Jurídico, os delegados Adriano Sousa Costa, Eduardo Fontes e Henrique Hoffmann trataram precisamente do tipo penal do artigo 13, inciso I, logo após a entrada em vigor da nova lei sobre os crimes de abuso de autoridade. O texto concluiu o que deveria ser óbvio para todo e qualquer agente de persecução penal:

Não é aceitável apresentar o preso como troféu, para satisfação da sanha populista e da autopromoção do agente público, pois ainda que não haja futura absolvição, a pena a ser imposta é no máximo de prisão, e não de execração pública[3].

O vídeo que viralizou, no qual o agente público chega a se apresentar como delegado ao médico alvo do mandado de prisão, o que não deixa dúvidas sobre estar efetivamente executando a prisão no exercício de sua função, não poderia, portanto, ter sido divulgado publicamente. Se houve, ou não, o crime previsto no artigo 13, inciso I, da Lei nº 13.869/2019, apenas uma investigação séria e efetiva, que apure todas as circunstâncias que envolveram aquele fato publicamente divulgado, é que poderá e deverá responder.

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Mais violações

O caso de Ribeirão Preto, infelizmente, não é isolado. Diversos outros casos também chamam a atenção por excessos na atuação funcional de servidores públicos lotados em órgãos de persecução penal. Os casos envolvendo as bets também têm ganhado amplo espaço na mídia. Por exemplo, a imprensa divulgou o indiciamento de um jogador do Flamengo e de mais dez pessoas em investigação destinada a apurar fraudes em competição esportiva relacionada ao futebol brasileiro [4].

Na reportagem que foi ao ar no programa Fantástico, foram expostas conversas extraídas de aparelho celular que evidenciariam um esquema ligado a aplicativos de apostas e que indicariam uma suposta ação deliberada do jogador do Flamengo em tomar um cartão amarelo em partida contra o Santos, válida pelo Campeonato Brasileiro, para favorecer uma aposta feita pelo seu irmão [5].

Outro episódio, também envolvendo a divulgação de diálogos sigilosos que somente agentes públicos que atuam nas respectivas operações poderiam ter o, ocorreu em uma investigação que tinha como alvos um suposto traficante, um tenente e um major da Polícia Militar do Rio de Janeiro. A imprensa divulgou diálogos e prints de trocas de mensagens entre os investigados que integravam um inquérito policial conduzido em sigilo pela Polícia Federal. A notícia referiu, inclusive, que as conversas expostas publicamente pela matéria foram obtidas em razão de interceptações executadas com autorização judicial[6].

Esses e outros inúmeros casos que tramitam em território nacional têm em comum o fato de que diálogos sigilosos, que compõem investigações penais também sigilosas, são usualmente expostos publicamente à míngua do respeito ao dever de restrição de publicidade que neles incide. Nunca é demais lembrar que a violação de sigilo funcional é crime previsto no artigo 325 do Código Penal. O tipo penal é funcional; não incide sobre os jornalistas que produzem as matérias, mas tem incidência sobre os agentes públicos que vazam as informações sigilosas contidas na apuração criminal e que depois acabam sendo objeto das matérias jornalísticas. Lembramos, aqui, do caso do ex-delegado Protógenes Queiroz que foi condenado criminalmente pelo STF por violação de sigilo funcional qualificada e foi expulso da Polícia Federal por ter vazado informações sigilosas da operação “satiagraha” [7], o que mostra que a sanção penal a agentes públicos que contribuem para a execução de publicidade opressiva não é inédita na jurisprudência brasileira.

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O peso da exposição

Para além da previsão contida no artigo 325 do Código Penal, se a conversa divulgada publicamente é fruto de uma interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ainda é possível se cogitar da incidência do crime previsto no artigo 10 da Lei 9.296/96. Isso porque o tipo penal da lei que define o regramento das interceptações no Brasil criminaliza a conduta daquele que quebrar o segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei. O ordenamento jurídico brasileiro possui previsão, portanto, para colocar freios e sancionar aqueles que extrapolam as funções públicas e contribuem para o vazamento de informações e de comunicações sigilosas que invariavelmente ocasionam um pré-julgamento no senso comum coletivo e influenciam diretamente nos julgamentos dos casos penais.

Há quase 20 anos, Simone Schreiber publicou a obra A Publicidade Opressiva em Julgamentos Criminais e denunciou a influência negativa que uma exposição midiática excessiva detém no que se refere ao direito de ser julgado de forma justa e imparcial [8]. As mensagens subliminares, que usualmente são recepcionadas pela sociedade especialmente nas matérias que contém dados sigilosos vazados como interceptações e trocas de mensagens, é que o crime divulgado ocorreu e os envolvidos noticiados precisam ser imediatamente punidos. A colisão entre a liberdade de expressão e informação e o direito a um julgamento criminal justo precisa realmente ser resolvida. Nos parece, nesse particular, que a revelação de imagens de um investigado sendo algemado ou de conversas que deveriam ser mantidas em sigilo dentro do respectivo inquérito policial sigiloso não está alinhada com o tratamento que toda e qualquer pessoa deve ter sob a égide da nossa Constituição. E isso, não só antes de uma sentença penal condenatória transitada em julgado, porque todos temos a presunção de inocência como garantia, mas, inclusive, também após a condenação, porque não há previsão de pena de esculacho público. Nada como a incidência do princípio da legalidade para se resolver a questão.

Recentemente, o ministro Ribeiro Dantas denunciou a “utilização desmedida” de Habeas Corpus pelas defesas com a constatação de que “atingimos o número antinatural de 1 milhão de habeas corpus distribuídos” no STJ. Isso nos fez lembrar também da fala do ministro Sebastião Reis Jr. que, em sessão da 6ª Turma do STJ ainda em 2021, já havia salientado que “é humanamente impossível julgar essa quantidade de processos[9]. De fato, não há dúvidas de que precisamos ter equilíbrio e racionalidade no uso do Habeas Corpus. A banalização do Habeas Corpus congestiona e inviabiliza os trabalhos das cortes superiores. No entanto, a quantidade excessiva de ações constitucionais que tutelam a liberdade de ir e vir pode também ser sintoma de que as coisas, de fato, não vão bem nas ações dos órgãos de persecução penal da planície.

Os episódios acima narrados evidenciam isso. Não à toa que, a despeito da crítica estendida a “todos os operadores do Direito, os quais demoraram a perceber o desvirtuamento da garantia constitucional”, o Habeas Corpus de número 1 milhão acabou sendo concedido ex officio pelo ministro Ribeiro Dantas.

 


[1] Veja-se, por todos: aqui

[2] Súmula Vinculante 11 do STF: “Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.

[3] aqui

[4] aqui

[5] aqui

[6] aqui

[7] AP 563/STF.

[8] SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais – Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

[9] Disponível aqui

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