Tema 1.072 do STF no Enam: reflexões da igualdade de gênero
27 de maio de 2025, 11h17
O recente Exame Nacional da Magistratura (Enam) evidenciou um tema cada vez mais urgente no campo do Direito Constitucional e da proteção social: a extensão da licença-maternidade à mãe não gestante em união homoafetiva. A questão apresentada espelhou o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 1.072 da repercussão geral, consolidando a tese de que a mãe não gestante somente fará jus à licença-maternidade se a companheira não a tiver utilizado; caso contrário, fará jus apenas à licença equivalente à paternidade.
Embora a resposta esteja tecnicamente correta sob o prisma jurisprudencial, esse enunciado revela a persistência de um problema de fundo: a dissociação entre a jurisprudência do STF e os princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da proteção integral à criança. Em outras palavras, a tese fixada no Tema 1.072 é, hoje, insuficiente — e, sob análise mais rigorosa, inconstitucional.
A Constituição, especialmente em seus artigos 5º, 6º, 7º, 226 e 227, reconhece a família como base da sociedade, assegura a igualdade entre cônjuges, protege o planejamento familiar e consagra a proteção prioritária da criança. Esses dispositivos exigem do legislador e do intérprete uma visão agênero e inclusiva das obrigações parentais. No entanto, a restrição imposta pela tese do Tema 1.072 revela uma concepção ainda patriarcal e com viés exclusivamente biológico da maternidade, centrada no corpo da mulher e no modelo tradicional de família, em detrimento de arranjos familiares plurais e da realidade social contemporânea.
Em minha obra, Extensão da Garantia Provisória do Emprego ao Cônjuge Não Gestante, defendo que o direito à garantia provisória do emprego, decorrente da gestação, não pode ser exclusivo da gestante. A garantia deve ser pensada a partir de funções de cuidado parental e não da biologia ou da gestação em si. A estabilidade, bem como a licença, são meios de assegurar o cuidado com o nascituro, a preservação do vínculo afetivo e o apoio à família como unidade existencial.
Justificativas
O livro identifica ao menos quatro dimensões jurídicas da proteção à maternidade, que sustentam sua extensão ao cônjuge não gestante:
1. Saúde da criança e da gestante: o afastamento do trabalho protege o vínculo afetivo e a adaptação à nova rotina familiar.
2. Estabilidade financeira da família: a manutenção do vínculo empregatício garante segurança econômica no período de maior vulnerabilidade.
3. Antidiscriminação no mercado de trabalho: a divisão equilibrada de encargos parentais evita a perpetuação da desigualdade de gênero.
4. Desenvolvimento integral da criança: a convivência com ambos os cuidadores no período inicial da vida é essencial ao pleno desenvolvimento.
Cada uma dessas dimensões transcende o corpo da mulher gestante e se conecta à entidade familiar na totalidade, permitindo ampliar o alcance da proteção jurídica para além do binarismo biológico.

A tese da corte constitucional atual reforça uma estrutura patriarcal em que o ônus do cuidado recai exclusivamente sobre um dos cônjuges, normalmente a mulher gestante pela necessidade recuperação física pós-parto, perpetuando desigualdades no mercado de trabalho, desestimulando a parentalidade ativa do cônjuge não gestante e limitando a mobilidade profissional feminina. Ao negar ao cônjuge não gestante o direito à proteção integral, o Estado colabora com a manutenção de um modelo social desigual e excludente.
Precedentes
O Supremo Tribunal Federal já firmou jurisprudências que permitem uma interpretação mais ampla, justa e inclusiva da proteção à parentalidade, entre as quais se destacam:
-Tema 497: a estabilidade da gestante independe do conhecimento da gravidez pela empregadora;
-Tema 782: o direito à licença para o adotante deve ser igual ao da gestante, reforçando o critério de função parental, e não biológico;
-Tema 1.182: reconhecimento do direito à licença-maternidade ao pai monoparental, reforçando a centralidade do cuidado.
Esses precedentes formam um alicerce jurisprudencial sólido para a superação da tese limitada do Tema 1.072 e para a construção de uma proteção à parentalidade mais ampla, igualitária e compatível com a Constituição.
Visão míope
Mais grave ainda é o fundamento subjacente que parece justificar a atual redação da tese: não onerar a Previdência Social com o pagamento de duas licenças integrais. Tal justificativa, embora não explicitada, é facilmente intuída e inaceitável do ponto de vista constitucional, pois submete um direito fundamental — o da parentalidade responsável e compartilhada — à lógica fiscal do Estado. Se a Constituição estabelece a proteção à maternidade e à infância como prioridade absoluta, então o orçamento público deve se adaptar a esse valor, e não o contrário.
Além disso, é importante considerar que o Brasil vem enfrentando um contínuo declínio na taxa de natalidade, com projeções populacionais indicando um cenário de envelhecimento demográfico e retração do crescimento populacional.
Nesse contexto, a concessão ampla da licença parental, inclusive ao cônjuge não gestante, não apenas se alinha aos preceitos constitucionais de igualdade de direitos e deveres entre os pais, como também pode funcionar como uma política pública indireta de incentivo à natalidade. Ao reduzir as desigualdades de gênero no cuidado com os filhos e ao garantir maior segurança jurídica e econômica para famílias plurais, o Estado contribui para criar um ambiente mais favorável à decisão de ter filhos, estimulando a parentalidade compartilhada e sustentável.
Portanto, negar esse direito em nome da contenção de gastos imediatos é uma miopia institucional que ignora os impactos sociais e econômicos de longo prazo de uma sociedade que desincentiva o exercício da parentalidade — especialmente em sua forma mais justa e igualitária.
A igualdade de gênero, tão celebrada em discursos políticos e institucionais, encontra um de seus maiores desafios justamente na distribuição equitativa de direitos e deveres parentais. Negar à mãe não gestante — ou a qualquer genitor não gestante — o direito integral à licença, reproduz a lógica de que o cuidado com os filhos é tarefa exclusiva da mulher gestante, perpetuando a desigualdade estrutural de gênero no mercado de trabalho e no seio familiar.
Portanto, o Tema 1.072, em sua redação atual, não resiste a uma leitura constitucionalmente integrada e igualitária. É urgente sua revisão, seja por meio de novo recurso extraordinário com repercussão geral, seja por provocação via ADPF ou mesmo pela ação legislativa que institua uma licença parental compartilhada, compatível com a pluralidade das formas de família e com os princípios da Constituição Cidadã.
O Enam, ao colocar esse tema em evidência, abre uma janela para o debate crítico. O momento é propício para que o Judiciário, a academia e a sociedade reconheçam que direitos parentais não devem priorizar a biologia, mas expressão da dignidade, do afeto e da responsabilidade familiar compartilhada.
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