Opinião

Fragilidade da separação de fato como marco para o fim do regime de bens

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  • é advogada especialista em Direito de Família e Sucessão e Direito Internacional e pesquisadora nos temas Direito De Família Empresas e Planejamento Patrimonial pela Escola Superior de Advocacia OAB/RS.

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28 de maio de 2025, 16h20

Quando um cônjuge ou ambos decidem que já não faz sentido continuar juntos, que em algum momento se perderam e soltaram as mãos, tem-se o fim da vida em comum, denominado o momento da “separação de fato”.

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divórcio

Como é de conhecimento geral no direito, a separação de fato é o marco legal responsável pela cessação do regime de bens do casal. Porém, dessa constatação nasce o primeiro problema: O que é separação de fato? Apesar do entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência de que esse é o marco responsável pelo fim do regime patrimonial do casal, não se tem na legislação uma definição clara sobre o que caracteriza efetivamente a separação de fato.

Aparecendo na legislação brasileira no fim da década de 1970, na Lei do Divórcio [1] e na EC nº 5, de 28.06.77, o instituto da separação de fato começou a ser conhecido, caminhando lentamente para o importante marco que é hoje, representando o fim da vida afetiva conjugal.

Mesmo após tantos anos e alterações legislativas, permanece a carência de definição clara e explícita sobre o que é a separação de fato e quais aspectos são relevantes para determinar se houve o fim da vida em comum do casal.

Elementos essenciais para separação de fato

Uma boa parte da doutrina se filia à tese de que dois elementos são essenciais para a separação de fato: em primeiro lugar, o elemento objetivo de não estar junto, a cessação efetiva da convivência; em segundo lugar, o elemento subjetivo de não ter mais a intenção de viver junto, a certeza da ruptura.

O elemento objetivo parece tratar principalmente sobre a convivência. Seria dizer que, fisicamente, o casal não vive mais junto como companheiros, não compartilha mais a rotina e responsabilidades do lar, não vive mais na mesma casa, deixando de ter uma vida em comum. Na prática, costuma ser o momento em que um dos dois faz a mala e deixa o lar.

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Já o elemento subjetivo diz respeito à intenção de não voltar: não há mais a vontade de restabelecer a vida em comum, é a vontade clara de terminar, a ausência de affectio maritalis.

Elementos não são tão esclarecedores

O problema é que, apesar dos elementos apontados pela doutrina parecerem esclarecedores, ao se falar de relacionamentos e da singularidade de cada família, beira a inocência acreditar que seria tão simples definir as relações familiares e conjugais em singelos dois elementos.

Pelo elemento objetivo, dois ex-cônjuges que moram juntos não poderiam estar separados de fato, situação que já foi superada pela jurisprudência e doutrina, visto que o ex-casal pode morar na mesma casa por questões financeiras, pelos filhos ou até por conveniência.

Já o elemento subjetivo traz suas próprias peculiaridades: é muito tênue a linha entre uma reaproximação esporádica e uma possível reconciliação efetiva. Encontros sexuais entre dois ex-cônjuges têm o condão de derrubar a intenção de não voltar? Um almoço semanal em local público entre dois ex-cônjuges seria uma tentativa de reconciliação ou apenas uma refeição entre duas pessoas que já compartilharam anos e anos de vida?

Vida dos ex-cônjuges após separação

Existem casais separados que ainda mantêm relações sexuais, esporádicas ou frequentes; casais separados que moram na mesma casa, que ainda dividem a vida financeira, que vão a eventos sociais juntos, que ainda se amam, que viajam juntos. Diante de tamanha diversidade, o estabelecimento de um critério único para a caracterização da separação de fato revela-se um desafio imenso.

A separação envolve diversos aspectos para o casal: social, emocional, financeiro, sexual, familiar, etc. E se cada família possui suas peculiaridades, organização e planejamento, por óbvio que a separação vai se manifestar de maneiras diferentes para a realidade de cada família.

É perigosíssimo que um marco que impacta diretamente no fim do regime de bens seja tão informal e aberto a interpretação. A separação de fato pode influenciar diretamente em questões de direito sucessório, envolvendo herança, constituição de nova união estável e divisão de bens.

Formalização por escritura pública

Buscando uma solução, a Resolução nº 571/2024, que alterou a Resolução nº 35/2007 do CNJ, traz a novidade de ser possível formalizar a separação de fato por escritura pública, documento que tem fé pública, trazendo segurança jurídica e que enfrentará muito mais resistência caso venha a ser discutido em eventual processo.

Ocorre que, apesar da falsa sensação de avanço, pouco se inovou. A resolução traz a exigência de que a escritura seja consensual e acompanhada de advogado. Por óbvio que o casal que esteja em consenso sobre o fim da vida conjugal muito provavelmente optará pelo divórcio consensual, não tendo motivo algum para precisar da escritura apenas para declarar a data da separação de fato.

Evolução seria se a resolução permitisse a formalização da separação de fato unilateral por escritura pública, assim como há a previsão de divórcio unilateral extrajudicial no anteprojeto do novo Código Civil.

Direito potestativo

O que levanta outra questão interessante: é a separação de fato um direito potestativo? Se o divórcio, com razão, vem sendo considerado um direito incontroverso, por lógica e analogia, poderia-se deduzir que a separação de fato também é um direito potestativo, até porque todo casal divorciado ou primeiramente pela separação de fato.

Direito potestativo é entendido como aquele em que não há a necessidade de contraditório: a vontade de uma das partes se estende para a outra independentemente da vontade dessa. É o imperativo da vontade, uma decisão unilateral.

Considerando essa essência da capacidade unilateral de iniciar uma mudança (ainda que sutil) em uma relação jurídica, a ação de romper o relacionamento possui uma forte semelhança com a dinâmica de um direito potestativo, fato que permitiria a realização da escritura unilateral declarando a data da separação de fato.

Em contrapartida, no plano jurídico prático, os direitos potestativos trazem efeitos jurídicos imediatos, como o divórcio e a manifestação do sócio em retirar-se da sociedade; ambos os exemplos têm a capacidade de modificar ou extinguir uma situação jurídica.

Não há separação com efeito jurídico imediato

A separação de fato, por outro lado, é uma realidade social, uma situação fática, com capacidade de gerar efeitos jurídicos. Porém, sua comprovação e efeitos jurídicos dependem de um reconhecimento posterior; ainda não há um meio formal que permita a separação de fato com efeitos jurídicos imediatos e plenos.

Nessa esteira, o desafio para o direito de família está em conciliar a rigidez das leis com a fluidez das relações humanas, de uma maneira que garanta segurança jurídica sem desconsiderar a diversidade de famílias e suas complexidades singulares.

Talvez seja tão difícil trazer uma definição exata para a separação de fato, pois ela diz respeito ao íntimo de cada família, exigindo uma análise que vai muito além da letra fria da lei. Tentar definir a separação de fato é como tentar mapear um território em constante mutação, onde as fronteiras são construídas e desfeitas pelas próprias experiências de vida.

Não cabe ao julgador, e nem é justo, esperar que todas as famílias se encaixem no ideal de que a separação de fato se manifestará da mesma forma. Além disso, é imperioso que o julgador se dispa dos próprios preconceitos ao entrar na intimidade de outra família para averiguar o momento da separação, garantindo uma justiça que verdadeiramente compreenda e respeite as complexidades da vida real.

 


[1]  Lei 6.515/77

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