‘Conciliação e mediação sempre serão vantajosas, mesmo no fim do processo’, diz ministra
15 de abril de 2025, 8h51
A conciliação e a mediação, enquanto formas de resolução de conflitos, sempre serão vantajosas, mesmo que ocorram ao final do processo, ou até quando ele já estiver nos tribunais superiores. Elas sempre produzirão efeitos, se não materiais, ao menos emocionais e de pacificação.

Essa ideia é defendida pela ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça. Com 49 anos de carreira e formação específica na matéria — fez mestrado em Mediação pelo Institut Universitaire Kurt Bösch, da Suíça, em sua sede argentina, em 2011 —, a magistrada é a coordenadora do recém-criado Centro Judiciário de Solução de Conflitos (Cesjusc).
O local, que será inaugurado no próximo dia 22 pelo STJ, sediará procedimentos para derrubar ou ao menos amenizar a barreira construída entre as partes de uma ação judicial, que dificilmente se reconciliarão frente a uma condenação. Um dos objetivos do Cejusc é economizar tempo e recursos, até porque o processo raramente termina em uma decisão do STJ — há ainda a fase de execução ou de cumprimento da sentença.
Foi nesse espaço que a ministra recebeu a revista eletrônica Consultor Jurídico para uma entrevista. Ela gostou de ver a disposição dos móveis e o efeito criado pelas cores das paredes, pelas plantas e por um pote com doces colocado logo na entrada. É um ambiente que contrasta com o formalismo próprio e necessário do Poder Judiciário, e que é importante para desarmar os espíritos.
A diferença entre a conciliação e a mediação, esclarece a magistrada, é o grau de interferência do terceiro imparcial. No primeiro caso, ele interfere mais e sugere soluções. No segundo, estimula o diálogo e a autocomposição. Em ambos, o objetivo é unir as partes e reatar os laços, quaisquer que sejam, que tenham sido rompidos por causa do processo.
“Penso que a conciliação e a mediação sempre serão vantajosas, ainda que elas ocorram lá na execução da sentença. Elas sempre produzirão efeitos — se não materiais, efeitos emocionais e em matéria de paz”, defendeu Nancy Andrighi.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Por que fazer acordo quando o caso já está no STJ? Às vezes as partes estão há anos esperando uma solução…
Nancy Andrighi — Porque tanto a conciliação quanto a mediação visam manter os laços. Se eu vou até o final com um processo, eu vou criar, infelizmente, uma barreira entre o autor e o réu. E dificilmente eles vão reatar. Então o objetivo é unir as pessoas novamente e reatar esses laços que foram rompidos por causa do processo, por causa do conflito. Esse é o principal. Qual a consequência disso? Um mundo mais leve, um mundo que caminha muito mais para a paz, porque as pessoas eliminam aquele sentimento de ódio, de raiva, de tristeza por ter perdido a ação. Esse sentimento é que a gente procura diluir aqui. Essa é a primeira razão.
A segunda é porque nem sempre o processo termina aqui. Ainda existe uma fase de execução daquilo que foi determinado aqui. E, muitas vezes, a fase de execução é muito mais lenta, complexa e duradoura do que o próprio processo que deu o direito. Então nós cortamos caminho. A mediação e a conciliação são sementes individuais que nós lançamos para a própria paz mundial.
Eu vou dar um exemplo. Imagine que você leva sua camisa à lavanderia e lá eles queimam a manga. Quando você vai buscar, a funcionária diz que a culpa é do tecido da camisa. Aí você sai de lá irritadíssimo. Você chega em casa e se depara com um vazamento na cozinha. O bombeiro vem, arruma e diz que está tudo pronto, mas no dia seguinte o vazamento volta. O bombeiro volta e diz que a culpa é sua, porque sua torneira é muito antiga. E novamente você fica com o prejuízo.
ConJur — Isso é meio corriqueiro na vida das pessoas…
Nancy Andrighi — Eu estou dando exemplos do dia a dia. Aí no outro dia você está saindo com o seu carro, vem o vizinho e bate nele. Você sai do seu carro, puxa o revólver e dá um tiro nele. Essa foi a gota d’água. Aí no Tribunal do Júri vão dizer que você é uma pessoa muito nervosa, muito agressiva, você tem o potencial de continuar agredindo. Não é isso. É que, de tanto você ser massacrado, não atendido, vilipendiado nos seus direitos, você reage dessa forma tão inusitada e tão dramática. Esse é o caminho em que se vai para a agressão e para a própria guerra. O que nós queremos? Nós queremos o caminho de volta disso.
Se você tiver uma Justiça ágil ou um instituto dentro da própria Justiça, um lugar onde você possa conversar com essa pessoa sem entrar com a ação, esse pode ser o caminho. Às vezes você quer apenas que a pessoa reconheça o seu direito, mesmo que ela não tenha o dinheiro para pagar o seu carro. Que pelo menos peça desculpas e reconheça que causou um problema.
ConJur — Essa primeira etapa é, inclusive, incentivada pelo C de 2015…
Nancy Andrighi — Os juízes hoje acham que aquela audiência preliminar que nós temos no Código de Processo Civil é uma perda de tempo. Não é e nunca será. Se você faz essa audiência com muito amor e vontade de que as pessoas se conciliem, com muitas ideias para dar para essas pessoas, elas chegam a um acordo. Às vezes, o juiz que não é formado em mediação e conciliação não tem sequer ideias do que ele pode propor. Então precisa ser um técnico com muita habilidade para poder conduzir. Penso que a conciliação e a mediação sempre serão vantajosas, ainda que elas ocorram lá na execução da sentença. Elas sempre produzirão efeitos — se não materiais, efeitos emocionais e em matéria de paz.
ConJur — Qual é a característica que torna um acordo mais provável?
Nancy Andrighi — É a habilidade do conciliador ou do mediador. Eu digo que ser conciliador ou mediador não é só habilidade, não. Tem de ter dom. Tem de amar o que faz e, acima de tudo, amar o próximo, porque você está pensando em melhorar a vida daquelas duas pessoas em conflito que estão na sua frente. Então a sua realização pessoal, como mediador e como conciliador, é obter esse resultado. E, se não houver acordo, que os maus sentimentos fiquem bem amenizados. Eu acho isso fundamental.
Agora, entrando no Direito, família é um dos bons assuntos. Casos empresariais também. E de vizinhança. E posso dizer os que são mais difíceis para conciliação e mediação: quando são grandes empresas, por exemplo, de telecomunicações, bancos. Quando o caso envolve empresas familiares, a solução é muito mais fácil. Mas, insisto, não adianta dizer que é fácil fazer conciliação se o conciliador ou o mediador não tiver uma formação própria para isso. Não adianta que ele não tenha se preparado, que ele não tenha lido o processo com profundidade antes de chegar a essa mesa.
ConJur — Potencialmente, o Cejusc serve para qualquer processo ou qualquer classe processual?
Nancy Andrighi — Não dá para dizer. A vida é muito pródiga. Ela apresenta situações em que você nem imagina o que pode ser feito. E também porque pode-se fazer, dentro de um processo, uma mediação parcial de um determinado assunto e o outro não.
ConJur — Qual é a importância de o Cejusc ter um espaço físico próprio dentro do tribunal, como é o caso deste? Por que a mediação não será feita nos gabinetes?
Nancy Andrighi — Tanto a conciliação quanto a mediação exigem o desarmamento dos espíritos. Se eu estou numa sala extremamente severa, como são as salas do Poder Judiciário tradicional, com aquele desenho de mesa, aquele formalismo natural, que é necessário, isso não ocorre. Para se fazer mediação e conciliação, nós precisamos nos afastar desse modelo. É preciso uma mudança interna. É preciso ter as emoções controladas, abertas, cheias de compaixão para ouvir o outro. E, quando eu estava estudando isso, percebi que algumas coisas precisavam ser mudadas.
Por exemplo, é preciso ter plantas na sala. As plantas aliviam o nosso ambiente. É preciso ter o ambiente separado para que se possa separar os sentimentos, normalmente, de receio com os quais as pessoas chegam a uma sala de audiência. É preciso que esse receio se afaste e elas fiquem abertas a essa nova postura, que é mudar os sentimentos.
ConJur — A escolha de móveis e cores também tem a ver com isso?
Nancy Andrighi — Muitos anos atrás, eu fui estudar cromoterapia, porque a cor também faz muito bem para o espírito. Então tomei conhecimento de que a cor lilás, diferente do violeta, mas um lilás claro, ajudava muito o ser humano a abrir o seu coração, mudar o sentimento, fazer uma transmutação daquele comportamento que sempre teve para um outro que fosse ornado principalmente de compaixão, de um olhar de irmandade, de fraternidade, de se colocar no lugar do outro e, acima de tudo, dialogar. É para fazer as pessoas falarem o que elas estão sentindo, o que não pode nunca ser feito em uma audiência formal do Poder Judiciário. Lá seguimos regras muito rígidas. É por isso que aqui, nesta sala, nós pudemos pintar uma das paredes com essa cor de desarmamento do espírito. Temos cadeiras diferenciadas, não temos aquele formalismo, usamos cores.
ConJur — Vamos ar um pouco pelo rito que vai ser estabelecido aqui. Como vai ocorrer? O relator vai participar da mediação ou conciliação?
Nancy Andrighi — As partes podem ambas requerer ao relator que o processo venha para cá para ser feita a mediação. O relator também pode sugerir para as partes, mas aí terá de haver a concordância delas, senão não tem jeito. O relator pode tentar fazer a conciliação e mediação, mas não se aconselha quando ele não tiver os cursos especializados e as técnicas que são usadas aqui.
Quando o processo vem para cá, ele é distribuído. Nós temos várias áreas de aperfeiçoamento entre os próprios conciliadores e mediadores. Por exemplo, se é uma questão de família, vamos direcionar essa distribuição para o mediador que seja formado em família. Paralelamente a isso, estamos pensando em fazer um quadro de técnicos voluntários que possam nos ajudar.
Distribuído o caso para o conciliador, são feitas as intimações e marcadas as audiências. Nós sempre pedimos que o comparecimento seja pessoal, porque o olho no olho facilita muito o diálogo. Às vezes, as pessoas moram longe, não têm condição de vir. Então, nós temos os instrumentos adequados para fazer a participação via online.
ConJur — As partes vêm com advogado?
Nancy Andrighi — Sempre com o advogado. Aí, alcançado um acordo, é devolvido o processo para o ministro relator, ele homologa e está encerrado. É muito simples. O intuito do Cejusc é ser o mais simples possível.
ConJur — Quais são as experiências da senhora com os métodos alternativos de resolução de conflitos?
Nancy Andrighi — Eu estudo e trabalho com conciliação e mediação desde 1977, quando ninguém acreditava ainda. Eu era juíza no Rio Grande do Sul. Nós estávamos vários juízes morando numa mesma comarca, porque as comarcas das quais nós éramos titulares não tinham lugar para morar, então ficamos todos em Rio Grande. E à noite não tínhamos o que fazer nesse local. Começamos a nos reunir e pensar uma forma de receber as pessoas e conversar com elas sobre os conflitos da sociedade, porque o juiz de primeiro grau tem muito mais ligação com a população de onde está prestando a jurisdição. E essas pessoas, então, começaram a ser atendidas à noite.
Depois de fazer concurso de novo, para Brasília, eu pensei em trazer para cá essa experiência, então comecei a fazer esse trabalho na circunscrição de Taguatinga e Ceilândia, que na época era uma só. Estou completando neste ano 49 anos de magistratura. Imagine há 40 e tantos anos o que era você falar em conciliação quando só se pensava em processo, em seguir o rito direitinho. A minha comarca não tinha nem luz. Havia todo um envolvimento maior de nós, juízes, com a população. E aqui eu encontrei um campo muito fértil. Aqui as pessoas têm uma compaixão mais acentuada do que era no início lá no Rio Grande do Sul.
ConJur — Por quê?
Nancy Andrighi — O povo gaúcho é mais radical, talvez, em sua postura. Para abrir mão da sua posição, ele leva algum tempo. Então, era mais difícil. Aqui eu encontrei muito mais facilidade. Depois vieram os juizados, onde a gente dava prioridade para as conciliações. Durante muito tempo, as conciliações foram feitas à noite aqui no TJ-DF. A gente ocupava as salas de audiência depois que os juízes terminavam. E nesse ínterim eu sempre procurei estudar. Encontrei um curso de mediação, mas em nível de mestrado, que fiz na Argentina, onde a Universidade Kurt Bösch, da Suíça, que é uma das que sempre pregaram a necessária divulgação e o incentivo à conciliação, tem uma sede. Durante três anos eu fiz o mestrado, que me foi muito produtivo. Inclusive, nós aprendemos e treinamos mediação em sequestro de pessoas. Foi um curso extremamente produtivo, com um lado pragmático muito interessante.
E por que a sede é na Argentina? Porque é um dos países que prezam muito a conciliação prévia. Eles não têm o obstáculo constitucional que nós temos no o à Justiça. No Brasil, pela Constituição, ninguém pode criar nenhum obstáculo ao cidadão para que ele entre com uma ação. Lá é o oposto: nenhum cidadão pode se dirigir ao Judiciário sem antes ar por um dos escritórios que são específicos de mediação, fiscalizados pelo Ministério da Justiça, e os conciliadores e mediadores são treinados em curso oficial. Se você não levar uma certidão de um escritório desses, de que ou por lá e não houve possibilidade de conciliação, a sua petição inicial é recusada na distribuição ao Judiciário.
ConJur — A conciliação em situações de sequestro eu jamais imaginaria…
Nancy Andrighi — Não posso dizer que foi agradável. Nós ficamos juntos na fronteira — eles fizeram uma verdadeira fronteira na frente da casa onde estava acontecendo o sequestro — para que pudéssemos participar, ouvindo e vendo qual era o trabalho do mediador. É tão intenso o trabalho do mediador lá que eles participam na delegacia. E o mediador, naquela manhã onde aconteceu o sequestro, era um vereador, que também tinha dado algumas aulas para nós. O ânimo que eles têm e a confiança que eles têm nesses dois institutos (mediação e conciliação) é muito grande.
ConJur — Essa recepção à mediação e à conciliação, que foi maior no Distrito Federal do que no Rio Grande do Sul, foi alterada ao longo dos anos? Há uma evolução disso no Brasil?
Nancy Andrighi — Até um determinado tempo, vamos dizer, até 1990, não se falava em mediação. Só se falava em conciliação. A mediação entrou no Brasil por interferência do Direito norte-americano. Mesmo tendo a Argentina tão próxima, a mediação não entrava aqui. E daí veio aquela Justiça multiporta, todos aqueles outros modelos.
Uma outra questão é por que chamamos de “formas alternativas de solução de conflitos” e “formas adequadas de solução de conflitos”. Na verdade, no início, foi para ser alternativo, que é uma tradução do Direito americano. Acontece que aqui no Brasil nós tivemos, durante um tempo, uma vertente do Direito que trabalhava o chamado Direito alternativo, o Direito achado na rua. Era uma visão bem diferenciada do Direito. Para o Poder Judiciário, esse termo “Direito alternativo” ficou bem desgastado. Então, para que não unissem essa expressão alternativa, nós encontramos uma solução que foi chamar de adequada. Então, hoje, nós chamamos de “métodos adequados de solução de conflitos”.
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