Paradigma em acórdão de Habeas Corpus nos embargos de divergência no STJ
14 de novembro de 2023, 9h16
Os embargos de divergência têm como finalidade principal a uniformização da jurisprudência do próprio tribunal garantindo a coerência e a consistência das decisões proferidas. O STJ (Superior Tribunal de Justiça) fraciona-se em seis turmas e três seções, o que, eventualmente, pode gerar decisões divergentes de um mesmo tema. O Código de Processo Civil dispõe que é embargável a decisão da turma que, em recurso especial, divergir do julgamento de qualquer outro órgão do tribunal que tenha apreciado a controvérsia.
O STJ, entretanto, vem proibindo a utilização de decisões colegiadas de Habeas Corpus como acórdão paradigma nos embargos de divergência.

A uniformização da jurisprudência é fundamental para a segurança jurídica, mas esbarra-se na interpretação jurisprudencial que cria um obstáculo para impedir o embate das turmas e seções frente a um mesmo assunto.
A revisão da interpretação atual pode contribuir para uniformizar o direito brasileiro, função precípua do tribunal, e evitar insegurança nas decisões judiciais.
Histórico
A orientação de se restringir o uso dos acórdãos de ações constitucionais como paradigmas nos embargos de divergência é influencia ainda do antigo Código de Processo Civil de 1973 que pontuava em seu artigo 546 o cabimento de embargos de divergência exclusivamente para uniformizar entendimentos em sede de recurso especial (no Superior Tribunal de Justiça) ou extraordinário (no Supremo Tribunal Federal). Em 1990, entrou em vigência a Lei 8.038/90 que revogou esse dispositivo — em seu artigo 44 — e ou a reger a matéria indicando, por disposição do artigo 29, que só seriam possíveis os embargos de divergência em sede de recurso especial, excluindo o extraordinário.
Em 1994, a Lei 8.950 deu nova disciplina aos recursos especial e extraordinário no mesmo artigo 546 do C, voltando a itir os embargos tanto no especial quanto no extraordinário, mas só quando se tratasse de matéria cível, porquanto não houve atualização em sede penal permanecendo a disposição da lei 8.038/90. Tais dispositivos, entretanto, foram revogados expressamente pela Lei nº 13.105, de 2015, o novo C, onde os embargos de divergência são tratados nos artigos 1.043 e 1.044. Foram ampliados para alcançar a matéria criminal.
Desta feita, os embargos de divergência são regidos hoje exclusivamente pelo C, o que foi reforçado pela Lei Anticrime (Lei 13.964/19) que dispôs, em nova redação do artigo 638 do P, que “o recurso extraordinário e o recurso especial serão processados e julgados no STF e no STJ na forma estabelecida por leis especiais, pela lei processual civil e pelos respectivos regimentos internos”. Assim, está indicado o C como regente da matéria.
Inissibilidade
Apesar dessa instável evolução nos limites do recurso, hoje a lei permite interpretar ampliativamente sua busca pela uniformidade jurisprudencial. A lei diz que pode-se embargar do julgamento de “qualquer outro órgão do mesmo tribunal, sendo os acórdãos, embargado e paradigma, de mérito” (artigo 1.043, I, C) que tenha “apreciado a controvérsia” (artigo 1.043, II, C). ite que “poderão ser confrontadas teses jurídicas contidas em julgamentos de recursos e de ações de competência originária” (artigo 1.043, § 1º, C) de “direito material ou do direito processual” (artigo 1.043, § 2º, C).
Todavia, contrariando a literalidade ampliativa da letra da lei, o STJ tem sistematicamente initido os recursos sob os auspícios de vício na origem do paradigma[1]. Trilha entendimento no qual inite, em sede de embargos de divergência, como paradigma, acórdão proferido em ações de garantia constitucional como Habeas Corpus, recurso ordinário em HC, mandado de segurança, recurso ordinário em mandado de segurança, habeas data e mandado de injunção.
Via de regra, o entendimento pauta-se nesse artigo 1043, § 1º, do C, aplicável analogicamente ao processo penal (artigo 3° do Código de Processo Penal), e no artigo 266, § 1º, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça ao aviso de delimitarem o confronto de teses jurídicas objeto dos embargos de divergência daquelas decorrentes do julgamento de recursos e ações de competência originaria, excluindo-se aqui os acórdãos de Habeas Corpus como paradigmas.
Fundamentação insuficiente
A jurisprudência do STJ tem se firmado no sentido de que acórdãos proferidos em habeas corpus não podem ser utilizados como paradigma para embargos de divergência sob o argumento de que essas ações possuem natureza de garantia constitucional, indo além do que dispõe o artigo 1.043 do C.
Ademais, também o C e o RISTJ falam em ações de competência originária, o que excluiria o remédio heroico. Nada obstante, dentre o clássico e maior exemplo de ação de competência originária no sodalício está precisamente o habeas corpus que aprecia ato coator praticado por tribunal sujeito à sua jurisdição por expresso mandamento constitucional[2]. Gustavo Badaró[3] expõe assim:
“O § 1° do art. 1.043 do C ite que sejam confrontadas teses jurídicas contidas em julgamentos de recursos “[…] e de ações de competência originária”. Evidente, portanto, que o acórdão paradigma pode ser decorrente do julgamento de ação penal de competência originária do próprio STJ. Também se poderia cogitar de acórdãos proferidos em Habeas Corpus e Mandados de Segurança que fossem originariamente impetrados no STJ, nos casos em que as autoridades coatoras fossem os tribunais locais. Todavia, tais hipóteses não têm sido itidas pelo STJ, sob o fundamento de que se tata de “ações que têm natureza jurídica de garantia constitucional”. O posicionamento reducionista não é correto, na medida em que não há nada na regra legal que restrinja a interpretação nesse ponto.”
Nem o C nem o Regimento Interno do STJ determinam que o acórdão paradigma seja necessariamente de um recurso especial, senão julgado de outro órgão fracionário do mesmo tribunal em decisão de mérito estando aí comodamente enquadrável as decisões do mandamus. A fundamentação, pois, carece de embasamento legal, além de violar a própria razão de existência do tribunal.
Função do STJ
A uniformização da jurisprudência das leis federais é o fundamento maior do Superior Tribunal de Justiça. O Código de Processo Civil de 2015, em seu artigo 927, parágrafo 3º, prevê que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. Isso para se evitar a imprevisibilidade das decisões que atinge de morte a segurança jurídica. Teresa Arruda Alvim Wambier expõe assim:
“Entendemos que, nesse contexto que vimos nos referindo, ao longo deste item, um dos valores que não pode ser desprezado é a segurança, tomada esta expressão no sentido de previsibilidade. Trata-se de um fenômeno que produz tranquilidade e serenidade no espírito das pessoas, independentemente daquilo que se garanta como provável de ocorrer como valor significativo. Não se trata, pois, de segurança da expectativa de que tudo deva ficar como está.” [4]
A par de tudo isso, insta concluir que discussão mais aprofundada de teses advindas do mesmo tribunal — independentemente se proveniente ou não de ação constitucional — oxigena a interlocução entre as turmas e as seções, mas seria perniciosa sua manutenção sem o embate interno. Proibir que uma tese decisória em acórdão de habeas corpus seja comparada a uma tese advinda de um recurso especial é, assim, contraproducente no sentido dessa função maior de previsibilidade e segurança jurídica.
A construção de jurisprudência de um Habeas Corpus no STF ou no STJ revela que a natureza de ação constitucional não impede, mas, antes, recomenda que as teses ali elaboradas sejam compreendidas, quando possível, como paradigmas jurisprudenciais. O objetivo é uniformizar o entendimento. O confronto deve ser entre as teses, independentemente de sua origem precisamente porque essa distinção não consta do C — quod lex non distinguit, non distinguere possumus.
Quando se aborda de maneira restritiva a issibilidade recursal, na verdade, está se limitando a discussão de um melhor raciocínio jurídico. Tanto em recurso especial quanto em habeas corpus há análise de direito e é possível que entre decisões proferidas em tais processos haja diferença estrutural de entendimento que atraia a necessidade de utilização dos embargos de divergência. Pela construção restritiva, possibilita-se que o STJ mantenha dois entendimentos diametralmente opostos ao mesmo tempo ao aviso de uma decisão ser por Habeas Corpus e outra por recurso especial apesar de tratarem do mesmo thema decidendum.
Se o objetivo de existência do STJ é a composição dessas divergências, não cabe ao intérprete criar obstáculos extra legem para tanto. O que nos leva a concluir que a única razão de a corte não itir acórdão paradigma em ação constitucional é a de reduzir o número de recursos, mesmo que o preço seja atingir a precípua função do tribunal de uniformizar as decisões e trazer segurança jurídica. A crítica de José Francisco Fischinger e Mariana Zopelar [5] parte do mesmo pressuposto:
“Essa orientação jurisprudencial, a qual limita aquilo que nem mesmo a lei pretendeu limitar, enseja profunda injustiça e obstaculiza a realização do objetivo essencial do recurso de embargos de divergência, que consiste exatamente na busca da homogeneização dos pronunciamentos e da segurança jurídica.”
A forma da demanda judicial é, evidentemente, irrelevante. O que é necessário verificar é se, de fato, há divergência de teses jurídicas interna corporis.
Conclusão
Os embargos de divergência opostos em face do acórdão recorrido, suscitando uma suposta divergência com outro acórdão, correlacionado a um habeas corpus ou não, deve ser aceito porque o objetivo dos embargos de divergência é a uniformização da jurisprudência. Uma análise mais aprofundada da natureza dos embargos de divergência permite concluir que sua existência destina-se a pacificar entendimentos de um mesmo assunto dentro de um mesmo tribunal independentemente da origem dessa discussão porque o que interessa é a segurança e pacificação jurídica de teses.
Não há regra restritiva no sentido de que a tese paradigma provenha de recurso especial ou ação constitucional, ficando a sua origem submetida ao maior interesse que é a uniformização. A criação do vício de origem suscita insegurança jurídica ao possibilitar dois tipos de jurisprudência no STJ: uma destinada aos casos submetidos por habeas corpus e outra destinada exclusivamente aos recursos especiais.
Nem o Código de Processo Civil, nem o regimento interno do STJ determinam que o acórdão paradigma seja necessariamente de um recurso especial, apenas que seja julgado por um outro órgão fracionário. Assim, é manifestamente extra legem decisões que visam a limitar o trâmite recursal impondo pré-requisito de serem dois acórdãos em recursos especiais.
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Bibliografia
BADARÓ, Gustavo. Embargos de Divergência In: § 19 BADARÓ, Gustavo. Manual dos Recursos Penais. São Paulo (SP): Editora Revista dos Tribunais. 2020. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/manual-dos-Tamberecursos-penais/1153084567. o em: 6 de Novembro de 2023.
FISCHINGER, José Francisco e ZOPELAR, Mariana. Acórdãos de HC julgados e os paradigmas de embargos de divergência, de 6 de fevereiro de 2023 em /2023-fev-06/fischinger-zopelar-acordaos-hc-julgados-stj, o em 04 de novembro de 2023.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no C Brasileiro. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
[1] Neste sentido: Agravo regimental na petição. Embargos de divergência opostos contra acordão prolatado em recurso ordinário em habeas corpus. Indeferimento liminar pela presidência do Superior Tribunal de Justiça – STJ. Paradigmas prolatados em ações que tem natureza jurídica de garantia constitucional não se prestam a demostrar suposto dissidio. Precedentes. Manifesta inissibilidade dos embargos de divergência. Agravo regimental ao qual se nega provimento. 1. A Corte Especial do Superior Tribunal de justiça firmou a compreensão de que “mesmo na égide do novo C, o § 1º do art. 1.043 restringe os julgados que podem ser objetos de comparação, em sede de embargos de divergência, a recursos e ações de competência originaria, não podendo, portanto, funcionar como paradigma acórdãos proferidos em ações que tem natureza jurídica de garantia constitucional, como os habeas corpus, mandado de segurança, habeas data e mandado de injunção” (AgInt nos EAREsp 474.423/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, DJe 10/5/2018).
[2] Artigo 105, inciso I, alínea c da Constituição.
[3] BADARÓ, Gustavo. Embargos de Divergência In: § 19 BADARÓ, Gustavo. Manual dos Recursos Penais. São Paulo (SP): Editora Revista dos Tribunais. 2020. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/manual-dos-Tamberecursos-penais/1153084567. o em: 6 de Novembro de 2023.
[4] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no C Brasileiro. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 57-58.
[5] FISCHINGER, José Francisco e ZOPELAR, Mariana. Acórdãos de HC julgados e os paradigmas de embargos de divergência, de 6 de fevereiro de 2023 em /2023-fev-06/fischinger-zopelar-acordaos-hc-julgados-stj, o em 04 de novembro de 2023.
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