Afinal, há um excesso de impetrações de Habeas Corpus?
19 de abril de 2024, 6h38
Não são raras as vezes que alguns ministros, notadamente do Superior Tribunal de Justiça, vêm criticando o uso excessivo e, para uns, até abusivo das impetrações de Habeas Corpus nos tribunais.
Sem tecer maiores considerações sobre a importância, as origens, hipóteses de cabimento, procedimento etc. do Habeas Corpus — para tanto recomendamos a excelente obra de Alberto Zacharias Toron [1] —, necessário fazer algumas considerações sobre este que pode ser considerado um imprescindível e verdadeiro instrumento na defesa de direitos e garantias fundamentais previsto na Constituição da República de 1988:
“conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder” (artigo 5º, inciso LXVIII).
Voltando ao tema proposto, não resta dúvida que os tribunais superiores vêm julgando um número extremamente elevado de processos e de habeas corpus. O STJ, segundo seus próprios dados, recebeu, até o dia 17 de novembro de 2023, 419.544 processos, sendo que, desse total, mais de 70 mil foram de HCs.
Sendo assim, é necessário indagar quais as razões que levam a tantas impetrações de habeas corpus perante os tribunais superiores.
Dentre as diversas razões, se mostra evidente o desrespeito aos precedentes qualificados, a jurisprudência pacificada e, até mesmo, de súmulas do STF e do STJ por parte de juízes e Tribunais de Justiça de todo país.
Matéria pacificada e arbitrariedades
Destaca-se que a maioria dos habeas corpus em que são concedidas a ordem pelos tribunais superiores dizem respeito a matéria já pacificada. Além do número considerável de violações a direitos dos investigados e acusados perpetrados, ora por magistrados de primeiro grau, ora pelos Tribunais de Justiça.
Não é sem razão que os ministros e as ministras do STJ concederam a ordem em 15.896 habeas corpus e recursos em HC no ano de 2023. A média é de 43,5 concessões por dia, segundo levantamento feito pelo advogado David Metzker [2].
Em entrevista concedida à Revista Justiça & Cidadania em (edição 284 de 9 de abril de 2024) a ministra Daniela Teixeira diz da sua preocupação com “a insistência de alguns tribunais em não seguir os precedentes do STJ …”, em relação ao aumento do número de processos no STJ, a ministra assevera que “o que causa o aumento do número de Habeas Corpus é a reiteração do descumprimento pelos tribunais de justiça”. E conclui: “O problema é causado muito mais pelo próprio Judiciário do que pela advocacia” [3].

Alberto Toron [4], na mesma linha, destaca que:
“as hipóteses de arbitrariedades, quer as representadas por prisões ilegais ou o indeferimento de vista dos autos do inquérito para o advogado do investigado (às vezes preso) ou, ainda, de toda sorte procedimentos viciados, são tantas que, como não poderia deixar de ser, potencializam o uso do writ. E se tanto, não bastasse, há o fenômeno da ‘desobediência’ de certos tribunais estaduais em relação à jurisprudência do STJ…”
Questão numérica e a “Lei do Habeas Corpus”
Embora não seja uma solução para o complexo problema, outro aspecto que deve ser considerado e, no mínimo, motivo de reflexão é a necessidade de se aumentar o número de ministros no STJ e assim criar, pelo menos, mais uma Turma Criminal. Sobretudo, se levarmos em consideração o elevado número de juízes e juízas no Brasil (mais de 16 mil) e 27 Tribunais de Justiça, além dos seis Tribunais Regionais Federais. No estado de Minas Gerais, por exemplo, há nove Câmaras Criminais, com cinco desembargadores cada, o que dá um total de 45 desembargadores em matéria criminal.
O ministro do STJ Rogério Schietti, defende a necessidade de se “editar uma Lei do Habeas Corpus”, na qual, segundo ele, “se possam fixar parâmetros mais seguros para o manejo dessa ação constitucional, minimizando as oscilações que derivam de uma jurisprudência instável, propícia a subjetivismo e voluntarismo judiciais, algo típico de um país ainda pouco afeito ao sistema de precedentes” [5]. A referida proposta pode ser interessante, desde que não implique em restrições ao habeas corpus.
Conclusão
Além de ser uma garantia constitucional, o habeas corpus tem um viés nitidamente processual penal em que assume, de acordo com José Barcelos de Souza, “o papel de um grande recurso”. Algumas vezes o habeas corpus, prossegue o processualista,
“supre a falta de um recurso próprio, como no caso de despacho de recebimento da denúncia ou queixa inepta; outras vezes, mesmo comportando a decisão recurso propriamente dito, ser como outra opção, visto que, em princípio, e em que pese a uma ou outra manifestação jurisprudencial em contrário, a existência de um recurso não exclui a possibilidade da impetração e da concessão do habeas corpus, se for caso dele” [6].
A grandeza do Habeas Corpus para fazer cessar o constrangimento ilegal ou evitar que ele se dê (preventivo) se revela na possibilidade do mesmo ser impetrado por qualquer pessoa, inclusive pelo próprio paciente, ser concedido de ofício, como, também, não se exigir qualquer formalidade ou rebusque na petição de impetração
Por tudo, qualquer ideia ou movimento para restringir o habeas corpus não é compatível com a Constituição da República e com o próprio Estado democrático de Direito. Assim, sempre que houver cerceamento de direitos e garantias, arbitrariedade, constrangimento ilegal e assalto aos princípios fundamentais insculpidos na Constituição, o habeas corpus se fará necessário e presente.
[1] Toron, Alberto Zacharias. Habeas Corpus: controle do devido processo legal: questões controvertidas e de processamento do writ. 6. ed. revista, atualizada e ampliada – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.
[3] https://www.editorajc.com.br/atencao-e-cuidado-com-as-vidas-postas-em-nossas-maos/
[4] Ob. cit. p. 42.
[5] https://www.editorajc.com.br/por-uma-lei-do-habeas-corpus/
[6] SOUZA, José Barcelos de. Doutrina e prática do habeas corpus. Belo Horizonte: Sigla, 2008.
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