Inversão do ônus da prova nas ações de dano ambiental
16 de agosto de 2024, 6h31
É sabido que a edição da Súmula 618 do Superior Tribunal de Justiça (“A inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental”) despertou muita discussão na doutrina e na jurisprudência.

Na doutrina, Margareth Michels Bilhalva, a partir do estudo dos 12 precedentes do STJ que deram origem à citada súmula, afirma que nove deles são anteriores ao novo C e que “a generalização e a edição da súmula a partir desses precedentes vem sendo mal aplicada e interpretada de forma errônea pela comunidade jurídica, pois não se deve atribuir a extensão que lhe vem sendo dada” [1].
Como adverte Édis Milaré, não foi dada uma carta branca ao juiz para inverter o ônus probatório quando se tratar de matéria ambiental, como entendeu o STJ. Para o autor “a bem ver, a indigitada súmula ou ao largo da mudança legislativa operada pelo § 1° do art. 373 do atual C – que, em boa hora, introduziu a distribuição dinâmica do ônus da prova nos processos em geral –, a denotar postura nitidamente ativista do Judiciário” [2].
Na reparação de danos ambientais o principal tipo de ação utilizada é a ação civil pública, a qual na maioria das vezes é proposta pelo Ministério Público. Ocorre que a Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985) não tratou especificamente da inversão do ônus da prova, de forma a se aplicar, por força do seu artigo 19, o C “naquilo em que não contrariar suas disposições”. Logo, a base normativa da inversão do ônus da prova encontra-se disciplinada pelo C:
“Art. 373. O ônus da prova incumbe:
I – ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
§1º. Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
§2º. A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.”
Como visto, a regra do C é que o ônus da prova incumbe ao autor quanto ao fato constitutivo de seu direito. A inversão só cabe, de acordo com os §§ 1º e § 2º do artigo 373 do C: (1) (a) nos casos previstos em lei, (b) diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo ou, ainda, (c) à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário pelo réu; e (2) mediante decisão fundamentada.
O STJ, levando em consideração as “peculiaridades da causa”, posicionou-se mais recentemente da seguinte forma:
“O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento no sentido de que a análise acerca da existência ou não de circunstâncias que ensejam a inversão do ônus da prova é feita no caso concreto, de acordo com os elementos probatórios existentes nos autos” (AgInt no AREsp 2297698/ ES – STJ/3ª Turma – rel. ministro Ricardo Villas Bôas Cueva – j. em 04/12/2023 – DJe 07/12/2023).
Necessidade de fundamentação e o princípio da precaução

Como afirma Paulo Affonso Leme Machado, a inversão do ônus da prova “não se opera de forma automática ou massificada, dependendo, em cada caso, de ‘decisão fundamentada’ do juiz” [3]. Cabe, então, ao juízo do caso fundamentar no sentido de que diante das peculiaridades do caso concreto estariam presentes os pressupostos dos §§ 1º e 2º do artigo 373 do C: (1) excessiva dificuldade ou impossibilidade de cumprir o encargo pelo autor ou (2) maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário pelo réu.
Além disso, não parece caber a invocação automática do princípio da precaução a toda e qualquer situação submetida ao Poder Judiciário [4]. O referido princípio, previsto na Convenção de Diversidade Biológica, na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima e no Princípio 15 de Declaração de princípios da Rio-92, orienta para a adoção de medidas precaucionais quando existe incerteza científica. Portanto, a existência de incerteza científica sobre a atividade ou sobre as suas consequências sobre o meio ambiente e/ou à saúde humana é requisito fundamental para aplicação do princípio segundo a doutrina [5].
Acontece que em parte significativa dos danos ambientais não existe incerteza científica, uma vez que as atividades e os seus impactos ambientais já são conhecidos ou conhecíveis – e, destarte, demandam a aplicação do princípio da prevenção.
Por exemplo, na análise de um dos precedentes que deu origem à edição da Súmula 618, Margareth Bilhalva registrou que “não parece razoável dizer que existe incerteza científica em relação aos efeitos na pesca em decorrência da construção de uma usina hidrelétrica, porque tais efeitos são vastamente conhecidos” [6].
Outros requisitos
Registre-se, ainda, a necessidade da presença dos demais requisitos previstos pelo C para a inversão do ônus da prova. Em primeiro lugar, não há previsão legal para a inversão afora o disposto no C, que traz a regra geral sobre o assunto [7].
Em segundo lugar, considerando que normalmente o MP é o autor das ações civis públicas, é bom pontuar que, ao menos na maioria dos casos, não existe excessiva dificuldade ou impossibilidade de se cumprir tal encargo por parte do órgão ministerial. O artigo 127 da Constituição de 1988 alça o Parquet à condição de função essencial à justiça e de detentor de autonomia funcional e istrativa, sendo uma instituição com recursos próprios e muito bem aparelhada e com imensa credibilidade. O órgão conta, inclusive, com corpo técnico qualificado para analisar as questões ambientais, além de poder requisitar informações aos organismos públicos ou particulares e atuar em parceria com instituições de pesquisa. Portanto, não soa razoável falar que, como regra geral, o MP teria excessiva dificuldade ou impossibilidade de cumprir o encargo referente à prova de fato constitutivo do direito alegado.
Como alerta Margareth Michels Bilhalva, o MP não deve ser considerado hipossuficiente para a subversão da regra do C “pela aplicação pura e simples apenas do princípio da precaução”. [8] A autora alerta ainda que o MP é o único legitimado a instaurar e conduzir o inquérito civil público e que dentro desse procedimento tem o poder de requisitar documentos e informações (artigo 10 da Lei 7.347/1985) [9]:
“Ora, a condição de vulnerabilidade, seja ela econômica, técnica ou informativa (diga-se: hipossuficiência) não pode ser imputada ao Ministério Público, já que tal órgão não está em situação de desigualdade material com quem quer que seja (e nem poderia), gozando de plenas independências istrativa e funcional, nos moldes do art. 127 e seguintes da CF, e possuindo, ainda, prerrogativas processuais que lhe são únicas” [10].
Como afirmam Luiz Gustavo Bezerra e Victor Penitente Trevizan, deve ser “exceção, portanto, a dinamização do ônus da prova, condicionada à aferição de condições desiguais ou desproporcionais entre as partes”[11]. Logo, na maioria dos casos, não há que se falar em excessiva dificuldade ou impossibilidade de cumprimento do encargo pelo MP.
Em terceiro lugar, geralmente não existe uma maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário pelos réus. Realmente, a prova da ausência de dano ambiental é por vezes muito difícil de ser obtida. Nesse sentido, alertam os autores anteriormente citados, “não é aceitável que a flexibilização do ônus da prova imponha ‘prova diabólica’ para a parte em relação a qual se acreditava que teria mais possibilidade de provar o fato” [12].
Mais uma vez recorremos à doutrina de Margareth Michel Bilhalva, que fala da dificuldade de o réu comparar a área atingida antes e depois do evento lesivo por conta da inexistência de dados pretéritos sobre a biodiversidade para fins de afastar a existência de dano ambiental [13]:
“Portanto, a inversão do ônus da prova para fazer com que o réu produza prova negativa de dano em local, cuja identificação natural sequer foi realizada pelos órgãos competentes, responsáveis pelo fornecimento de tais informações, caracteriza violação ao direito de defesa da ré, que se vê obrigada a produzir prova contra si mesma, ‘prova diabólica’, com nítida afronta ao disposto no já mencionado §2º do art. 373 do C. Assim, a produção de prova relativamente ao dano alegado é, em regra, do autor, ainda que seja imputada ao réu a comprovação de que não há nexo entre o referido dano e eventual conduta de sua autoria” [14].
Com efeito, muitas vezes não há nos litígios ambientais um desequilíbrio entre os litigantes a ser restabelecido, também existindo situações em que a prova é de difícil produção para ambas as partes. Para Édis Milaré, impor ao réu em todas as situações o ônus da prova, “sem que haja previsão expressa de lei, e sem que a relação de direito material assim o requeira, é atentatório do princípio da isonomia (afinal, se não há desigualdade a reequilibrar, a inversão do ônus da prova é que causará um desequilíbrio e, por conseguinte, uma desigualdade)” [15].
Conclusão
Portanto, é preciso equidade na aplicação da Súmula do 618, seja para levar em consideração as regras dos §§ 1º e 2º do art. 373 do C, seja para ter em conta a recente decisão do STJ antes citada no sentido de que “a análise acerca da existência ou não de circunstâncias que ensejam a inversão do ônus da prova é feita no caso concreto, de acordo com os elementos probatórios existentes nos autos”. Não parece adequado que a referida inversão continue sendo feita de forma automática e irrestrita pelo Poder Judiciário, sem observar as regras do C e as peculiaridades de cada caso concreto.
[1] BILHALVA, Margareth Michels. “Súmula 618 STJ: inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental e questões práticas forenses de demandas ambientais”. In: JACCOUD, Cristiane; GIL, Luciana; MORAIS, Roberta Jardim (org). Súmulas do STJ em matéria ambiental comentadas: um olhar contemporâneo do direito ambiental ao judiciário. Londrina: Thoth, 2019, pp. 123-148.
[2] MILARÉ, ÉDIS. O ônus da prova nas lides ambientais e a súmula 618 do STJ. Disponível em: https://www.migalhconjur-br.diariodoriogrande.com.br/depeso/290505/o-onus-da-prova-nas-lides-ambientais-e-a-sumula-618-do-stj, o em 24/07/2024.
[3] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 29. ed. São Paulo: Editora JusPodivm, 2023, p. 384. Sem grifos no original.
[4] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Da ecologia à eco-ideologia. Da prevenção à precaução. In: DAUDT D’OLIVEIRA, Rafael Lima (org). Direito Ambiental Estadual. Revista de Direito da Associação dos Novos Procuradores do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009. p. 9-10.
[5] Cf. ARAGÃO, Maria Alexandra de Sousa. O Princípio do Poluidor Pagador Pedra Angular da Política Comunitária do Ambiente. Coimbra: Coimbra Editora, 1997. p. 68.
[6] BILHALVA, Margareth Michels. “Súmula 618 STJ: inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental e questões práticas forenses de demandas ambientais”. In: JACCOUD, Cristiane; GIL, Luciana; MORAIS, Roberta Jardim (orgs). Súmulas do STJ em matéria ambiental comentadas: um olhar contemporâneo do direito ambiental ao judiciário. Londrina: Thoth, 2019, pp. 123-148.
[7] O art. 21 da Lei da Ação Civil Pública prevê que lhes serão aplicados “os dispositivos do Título III da lei que instituiu o CDC. Acontece que no Título III do CDC – que deve ser aplicado às As – encontram-se os arts. 81 a 104-C, os quais nada dispõem sobre a inversão do ônus da prova. Logo, a previsão do CDC quanto à inversão do ônus da prova prevista no art. 6º, VIII, do CDC, não parece ser aplicável à Lei da A. Nesse sentido, cf: BEZERRA, Luiz Gustavo Escorcio; TREVIZAN, Victor Penitente. A Súmula 618 do STJ e a dinamização do ônus da prova em matéria ambiental. Disponível em: /2020-dez-05/opiniao-sumula-618-stj-dinamizacao-onus-prova/, o em 24/07/24.
[8] BILHALVA, Margareth Michels. “Súmula 618 STJ: inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental e questões práticas forenses de demandas ambientais”. In: JACCOUD, Cristiane; GIL, Luciana; MORAIS, Roberta Jardim (orgs). Súmulas do STJ em matéria ambiental comentadas: um olhar contemporâneo do direito ambiental ao judiciário. Londrina: Thoth, 2019, pp. 123-148.
[9] Ibidem.
[10] Ibidem.
[11] Nesse sentido, cf: BEZERRA, Luiz Gustavo Escorcio; TREVIZAN, Victor Penitente. A Súmula 618 do STJ e a dinamização do ônus da prova em matéria ambiental. Disponível em: /2020-dez-05/opiniao-sumula-618-stj-dinamizacao-onus-prova/, o em 24/07/24.
[12] Nesse sentido, cf: BEZERRA, Luiz Gustavo Escorcio; TREVIZAN, Victor Penitente. A Súmula 618 do STJ e a dinamização do ônus da prova em matéria ambiental. Disponível em: /2020-dez-05/opiniao-sumula-618-stj-dinamizacao-onus-prova/, o em 24/07/24.
[13] BILHALVA, Margareth Michels. “Súmula 618 STJ: inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental e questões práticas forenses de demandas ambientais”. In: JACCOUD, Cristiane; GIL, Luciana; MORAIS, Roberta Jardim (orgs). Súmulas do STJ em matéria ambiental comentadas: um olhar contemporâneo do direito ambiental ao judiciário. Londrina: Thoth, 2019, pp. 123-148.
[14] Ibidem.
[15] MILARÉ, ÉDIS. O ônus da prova nas lides ambientais e a súmula 618 do STJ. Disponível em: https://www.migalhconjur-br.diariodoriogrande.com.br/depeso/290505/o-onus-da-prova-nas-lides-ambientais-e-a-sumula-618-do-stj, o em 24/07/2024.
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