Tema 1.281/STJ e o recurso cabível contra decisão na 1ª fase da ação de exigir contas
4 de outubro de 2024, 18h23
Pretende-se aqui contribuir para o debate que está acontecendo na 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça sobre o Tema 1.281.
O órgão colegiado afetou importante discussão acerca da natureza jurídica do pronunciamento judicial que aprecia a primeira fase da ação de exigir contas e qual o recurso cabível (e se há fungibilidade recursal).
Como restou divulgado no Informativo 825, de 17/9/2024, a 2ª Seção da Corte acabou de afetar os REsps 2.109.502-SP, 2.110.632-SP, 2.116.714-SP e 2.116.715-SP ao rito dos recursos repetitivos, com o objetivo de uniformizar o entendimento da seguinte questão controvertida:
“Possibilidade da aplicação do princípio da fungibilidade em apelação interposta contra ato judicial que julga a primeira fase da ação de exigir/prestar contas, ou sua impossibilidade, por se tratar de erro grosseiro, pelo entendimento de ser uma decisão parcial de mérito, quando procedente, desafiando o recurso de agravo de instrumento, ou terminativa de mérito, quando improcedente, a autorizar o manejo da apelação” [1].
A Comissão Gestora de Precedentes do STJ observou a existência de múltiplas ações, com impacto jurídico, ligadas ao tema aqui discutido, com a necessidade de enfrentamento específico de dois aspectos: a) issibilidade recursal; b) possibilidade de incidência do princípio da fungibilidade. Houve determinação de suspensão dos processos pendentes que versem acerca das questões afetadas.
Realmente, penso que há a necessidade de definir, sob a sistemática dos repetitivos, qual o recurso cabível em face do pronunciamento que aprecia a primeira fase da ação de exigir contas, bem como se há ou não possibilidade de aplicação da fungibilidade entre a apelação e o agravo de instrumento.
Premissa e o procedimento
Portanto, visando contribuir com o debate, é necessário partir de uma premissa: o procedimento especial da ação de exigir contas (artigos 550 a 553, do C) permite variáveis pronunciamentos judiciais em suas múltiplas fases, o que gera a necessidade de atenção especial ao intérprete em relação ao meio impugnativo cabível no caso concreto.

Com efeito, a fase cognitiva (de formação do eventual e futuro título executivo judicial) desta ação de procedimento especial é dividida em dois momentos, cada um com objeto cognitivo específico e com multiplicidade de decisões judiciais que podem ser proferidas nos casos concretos.
Consequentemente, a primeira fase deste procedimento objetiva, em regra, a análise de seus requisitos formais; sem, contudo, adentrar no mérito e na própria valoração dos documentos apresentados pelos atores processuais, bem como se há ou não a necessidade de apuração de eventual saldo quantitativo em favor de algum dos litigantes.
Uma conclusão parcial deve ser apresentada, visando a continuação do debate: no pronunciamento final desta fase há, inclusive fazendo a leitura do artigo 550, §5º, do C, um juízo de valor positivo ou negativo em relação à continuidade do procedimento: uma apreciação de aspectos formais visando a deliberação se haverá ou não o prosseguimento do iter procedimental ou se será hipótese de encerramento do feito. Em seguida, ocorrendo saldo a apurar, será prolatada sentença no momento procedimental seguinte e inaugurada a fase de cumprimento de sentença (artigo 552, do C).
Recorribilidade e recurso cabível
E qual é a natureza jurídica do pronunciamento judicial nesta primeira fase? Depende da continuidade ou não do feito, podendo ser sentença ou decisão interlocutória (processual ou de mérito). No tema, bem elucidativa é esta agem da Ementa do Acórdão da 3ª Turma do STJ (REsp 2.000.936 / RS – rel. min. Nancy Andrighi – J. 21/6/2022 – DJ 23/6/2022):
“A ação de exigir contas é prevista para se desenvolver em duas fases. Na primeira, verifica-se se há o direito de exigir as contas. Na segunda, analisa-se a adequação das contas prestadas, determinando-se a existência ou não de saldo credor ou devedor. Constatada a existência de saldo, a-se à fase de cumprimento de sentença, oportunidade em que é revelada a natureza dúplice, já que o polo ativo será assumido por quem a sentença reconhecer como credor”.
A questão a ser formulada no caso concreto é a seguinte: os pronunciamentos judiciais proferidos nesta primeira fase – ligados à issibilidade e ao prosseguimento da ação, são decisões interlocutórias (processuais ou de mérito) ou sentenças?
Não se pode esquecer que a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça entendeu que o artigo 1.015, do C comporta a chamada taxatividade mitigada [2], permitindo a interposição de agravo de instrumento em situações que não estão lá previstas, desde que atente a parte para a demonstração dos requisitos indicados neste julgamento.
Logo, se existir decisão interlocutória, tanto na primeira quanto na segunda fases da ação de exigir contas, que comporte recorribilidade imediata, o agravo de instrumento poderá/deverá ser utilizado pelo prejudicado. Este ponto deve ser enfrentado no Tema 1.281, da 2ª Seção,
Portanto, como esta fase introdutória do procedimento tem objetivo bem determinado e cognição restrita, o pronunciamento judicial será: a) decisão interlocutória, em caso de acolhimento da pretensão e condenação do réu (obrigação de prestar contas ou não impugnar as que o autor apresentar — com a abertura da segunda fase — artigo 550, §5º, do C); exclusão de litisconsorte, com o prosseguimento do feito em relação aos demais etc.; b) sentença, com a extinção do processo com ou sem resolução de mérito (artigo 485 ou 487, do C), acaso não reconheça a presença dos requisitos previstos no artigo 550, do C e finalize o procedimento.
Natureza do pronunciamento e fungibilidade recursal
No ponto, o C atual superou a previsão contida na legislação anterior (artigo 915, §2º, do C/73) que consagrava como sentença este pronunciamento que encerrava a primeira fase da ação de prestação de contas.
A natureza do pronunciamento e a respectiva recorribilidade dependerão do prosseguimento ou não do feito, pelo que andou bem o artigo 550, §5º, do C atual, ao intitulá-lo decisão.
Esse mesmo questionamento ocorre na apreciação da impugnação ao cumprimento de sentença, cujo pronunciamento judicial poderá ser sentença (se extinguir o cumprimento) ou decisão interlocutória. O Enunciado 216 da III Jornada de Direito Processual Civil do Conselho da Justiça Federal trata dessa variação conceitual, no que acompanha alguns julgados do próprio Superior Tribunal de Justiça (ex. REsp 1.947.309 — relator ministro Francisco Falcão — J. em 07/02/2023 — Dje 10/02/2023) [3].
Além da definição do recurso cabível, a 2ª Seção da Corte irá enfrentar a possibilidade (ou não) da fungibilidade recursal, ou mesmo quais seriam os requisitos para sua aplicação.

Particularmente entendo que, em situações comuns, não há que se falar em fungibilidade, devendo o intérprete analisar o caso concreto e a consequência processual decorrente do pronunciamento judicial, visando subsidiar a recorribilidade por apelação ou agravo de instrumento. A resposta negativa, pelo menos em regra, a pela afirmação de que o assunto vem sendo enfrentado reiteradamente pela Corte da Cidadania.
No tema, vale transcrever parte da ementa do REsp 1.680.168 / SP (relator ministro Marco Buzzi — relator(a) p/ acórdão ministro Raul Araújo — 4ª T – J. em 9/4/2019 – DJ de DJe 10/6/2019) [4], no qual foi discutido, além do recurso cabível, a própria fungibilidade entra a apelação e o agravo de instrumento:
“2. Na hipótese, a matéria é ainda bastante controvertida tanto na doutrina como na jurisprudência, pois trata-se de definir, à luz do Código de Processo Civil de 2015, qual o recurso cabível contra a decisão que julga procedente, na primeira fase, a ação de exigir contas (arts. 550 e 551), condenando o réu a prestar as contas exigidas. 3. Não acarretando a decisão o encerramento do processo, o recurso cabível será o agravo de instrumento (C/2015, arts. 550, § 5º, e 1.015, II). No caso contrário, ou seja, se a decisão produz a extinção do processo, sem ou com resolução de mérito (arts. 485 e 487), aí sim haverá sentença e o recurso cabível será a apelação”. 4. Recurso especial provido”.
A propósito, as duas Turmas de Direito Privado do Superior Tribunal de Justiça caminham neste entendimento quanto à variação da natureza jurídica do pronunciamento judicial, que poderá ser interlocutória ou sentença, a depender da continuidade ou não procedimento.
Nesta agem da ementa de recentíssimo julgado relatado pelo excelentíssimo ministro Marco Aurélio Bellizze (AgInt nos EDcl no REsp 2142805 / SC – 3ª T – J. 9/9/2024 – DJe 11/9/2024), há exatamente essa indicação de uniformização do entendimento:
“1. Na linha do entendimento firmado pelas duas Turmas que integram a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, (i) se o julgamento na primeira fase da ação de exigir contas for de procedência do pedido, o pronunciamento jurisdicional terá natureza de decisão parcial de mérito e será impugnável por agravo de instrumento com base no art. 1.015, II, do C/2015; e (ii) se o julgamento da primeira fase da ação de exigir contas for de improcedência do pedido ou de extinção do processo sem resolução de mérito, o pronunciamento jurisdicional terá natureza de sentença e será impugnável por apelação”.
Em outro julgado também recente, novamente a 3ª Turma analisou o recurso cabível em caso de decisão parcial na primeira fase da ação de exigir contas, concluindo pela inexistência de fungibilidade. Vale transcrever a Ementa:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE EXIGIR CONTAS. PRIMEIRA FASE. DECISÃO QUE EXCLUI LITISCONSORTE IVO.
RECURSO CABÍVEL: AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. INAPLICABILIDADE. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 356, § 5º, E 1.015, II E VII, DO C.
1. Discute-se nos autos qual o recurso cabível contra a decisão proferida na primeira fase da ação de exigir contas, se agravo de instrumento ou apelação. 2. Os arts. 356, § 5º, e 1.015, II e VII, do C estabelecem como único recurso cabível o agravo de instrumento contra decisão que julgar parcialmente o mérito ou quando excluir litisconsorte do feito.
3. Demonstrado que há previsão explícita na legislação processual, a qual indica de forma clara a espécie recursal apropriada para o caso concreto, a equivocada interposição de um recurso em lugar de outro revela um erro inescusável, e não uma dúvida objetiva, configurando um equívoco material que conduz à decisão de não conhecimento” (AgInt no REsp 2123895 / MG – Rel. Min. Humberto Martins – J. 26/08/2024 – DJe 28/08/2024).
Assim, se a premissa é verdadeira (não resta dúvida quanto ao recurso cabível em face da decisão que aprecia a primeira fase da ação de exigir contas), é necessário lançar algumas luzes visando enfrentar se é cabível (ou quando é cabível) a fungibilidade recursal.
Requisitos para incidência da fungibilidade
Como já mencionado, entendo que não há dúvida quanto ao recurso cabível, desde que a decisão judicial aponte a sua própria natureza e não gere dúvida razoável ao intérprete.
Dito de outra forma: se o pronunciamento judicial laborar em equívoco (indicando que se trata, por exemplo, de sentença, sendo uma decisão interlocutória processual ou de mérito), gerar dúvida ou mesmo induzir em erro o recorrente, deve ser aplicado o princípio da fungibilidade.
A fungibilidade, portanto, advém da verificação e análise do caso concreto. No ponto, vale destacar trecho do REsp nº 2.055.241/SP (3ª Turma/STJ — rel. Min. Nancy Andrighi — J. 13/6/2023, DJe de 16/6/2023):
“Hipótese em exame, contudo, que possui as seguintes particularidades que justificam a incidência do princípio da fungibilidade, não em razão da atecnia legislativa, mas em virtude da atecnia judicial: (i) o ato judicial impugnado foi rotulado e nomeado, na fundamentação, como sentença pelo juiz que o proferiu; e (ii) o ato judicial era objetivamente complexo, circunstância não observada em nenhum dos precedentes desta Corte, pois houve a rejeição da impugnação à gratuidade judiciária, a extinção de parte dos pedidos sem resolução de mérito, a procedência de um dos pedidos para julgar boas as contas apresentadas e a procedência de dois pedidos para condenar o réu a prestar as contas”.
A 4ª Turma também consagra a possibilidade de aplicação da fungibilidade em caso de dúvida relacionada à natureza da decisão aqui discutida:
“A jurisprudência do STJ firmou o entendimento no sentido de que “o ato judicial que encerra a primeira fase da ação de exigir contas possuirá, a depender de seu conteúdo, diferentes naturezas jurídicas: se julgada procedente a primeira fase da ação de exigir contas, o ato judicial será decisão interlocutória com conteúdo de decisão parcial de mérito, impugnável por agravo de instrumento; se julgada improcedente a primeira fase da ação de exigir contas ou se extinto o processo sem a resolução de seu mérito, o ato judicial será sentença, impugnável por apelação”, todavia, ‘Havendo dúvida objetiva acerca do cabimento do agravo de instrumento ou da apelação, consubstanciada em sólida divergência doutrinária e em reiterado dissídio jurisprudencial no âmbito do 2° grau de jurisdição, deve ser afastada a existência de erro grosseiro, a fim de que se aplique o princípio da fungibilidade recursal” (REsp 1.746.337/RS, rel. ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 9/4/2019, DJe de 12/4/2019). 2. Agravo interno a que se nega provimento’. (AgInt nos EDcl no REsp n. 1.831.900/PR, relatora ministra MARIA ISABEL GALOTTI, Quarta Turma, julgado em 20/4/2020, DJe de 24/4/2020)”.
É razoável afirmar, portanto, que existem alguns requisitos para a incidência da fungibilidade recursal: dúvida objetiva, defeito na comunicação judicial — induzir em erro, etc. Não estando presentes estas situações específicas, entendo que não existe espaço para a fungibilidade recursal.
São estas as contribuições para este importante debate.
[1] https://processo.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/?livre=@CNOT=021007. o em 01.10.2024.
[2] Recursos Especiais Repetitivos nºs 1.696.396/MT e 1.704.520/MT (DJe de 19/12/2018).
[3] Tive a oportunidade de fazer algumas observações sobre o assunto, em texto anteriormente publicado em /2023-mar-16/mouta-araujo-comentarios-recente-resp-1947309/ . o em 01.10.2024.
[4] Ver também: REsp 1.746.337/RS ( Rel. Min. Nancy Andrighi – 3ª T – J. em 09/04/2019 – DJe 12/04/2019).
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