processos inúteis

Rejeitada por tribunais superiores, prescrição virtual é aplicada em primeira instância

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23 de outubro de 2024, 9h53

Uma pessoa é acusada de um crime, mas o trâmite da ação demora. Quando o juiz finalmente começa a analisar o caso, percebe que, se houver condenação, a pena provavelmente já estará prescrita — ou seja, o réu não poderá mais ser punido, devido aos limites temporais do processo penal. Assim, o magistrado reconhece a prescrição antes mesmo da sentença.

Relógio ao lado de calendário

Modalidade rejeitada por STJ e STF permite evitar análise de casos que, ao final, estariam prescritos

Isso é um exemplo de aplicação da prescrição virtual ou antecipada, que não está prevista em lei. Embora os tribunais superiores a rejeitem e seu uso tenha sido limitado por alterações legais, juízes de primeiro grau têm aplicado o conceito. 

A plataforma de pesquisas jurídicas Jusbrasil registrou, entre setembro de 2023 e setembro de 2024, mais de 4,2 mil acórdãos dos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais que citam a prescrição virtual ou antecipada.

As decisões em segundo grau, no geral, impedem a prescrição virtual. Mas os dados reforçam que magistrados vêm aplicando tal modalidade na primeira instância, ainda que de forma esporádica.

A aplicação da prescrição virtual muitas vezes é a confirmação de uma sugestão do próprio promotor (essa modalidade surgiu no Ministério Público de São Paulo). A ideia é sempre evitar a perda de tempo com ações inúteis, nas quais o réu, ao fim, não poderá ser punido.

Contra tudo e contra todos

Em 2009, durante julgamento de repercussão geral (RE 602.527), o Supremo Tribunal Federal decidiu que a prescrição virtual é inissível.

Já no ano seguinte, o Superior Tribunal de Justiça aprovou a Súmula 438, também contrária a essa modalidade. A Corte entendeu que, antes da condenação, não há pena concreta para servir de base ao cálculo da prescrição retroativa.

Pouco depois, foi publicada a Lei 12.234/2010, que modificou as regras de prescrição do Código Penal. Até então, a pena aplicada na sentença era parâmetro para a contagem da prescrição, tanto entre a data do crime e o recebimento da denúncia, quanto entre a denúncia e a publicação da sentença.

Assim, se a vítima demorava para noticiar o crime ou o inquérito policial demorava para ser concluído, o promotor podia pedir o arquivamento do caso com base na pena hipotética que o acusado receberia.

Em casos de réu primário, com bons antecedentes, boa conduta social e ausência de agravantes, o promotor conseguia prever que o juiz, no futuro, teria de aplicar a pena mínima para o crime (ou próxima disso).

Como essa pena era usada para a contagem da prescrição, o promotor não oferecia denúncia. Isso porque uma pena pequena significava um prazo menor de prescrição entre o crime e a denúncia. Se esse período fosse longo (devido à demora), o caso já estaria prescrito.

A partir da lei de 2010, a pena aplicada na sentença ou a ser desconsiderada para o cálculo da prescrição entre a data do crime e o recebimento da denúncia. Nessas situações, a pena máxima prevista para o crime se tornou o único parâmetro de contagem da prescrição.

Desta forma, mesmo se for possível prever que o acusado receberá uma pena mínima devido às suas condições favoráveis, o prazo real de prescrição ainda será maior, pois seu cálculo terá como base a pena máxima. Ou seja, ficou mais difícil “aproveitar” a demora entre o crime e a denúncia para evitar o prosseguimento da ação.

De acordo com o criminalista Nestor Távora, professor de Processo Penal, isso, na prática, “matou a prescrição virtual”. Na sua visão, a Lei 12.234/2010 é um obstáculo ainda maior do que os precedentes dos tribunais superiores.

Após a publicação da lei, os promotores adotaram uma nova linha de raciocínio para tentar aplicar a prescrição virtual. A ideia era considerar a média de tempo de tramitação de um processo na sua respectiva comarca.

Ou seja, em vez de usar a demora entre o crime e a denúncia, os promotores aram a propor o arquivamento com base na provável demora entre a denúncia e a sentença. Nesses casos, a pena aplicada ainda é o parâmetro para o cálculo da prescrição — ou seja, pode gerar um prazo menor se o réu tiver condições favoráveis.

“Esta é a virtualização potencializada”, diz Távora. “É a especulação da especulação”. A prescrição virtual, portanto, ainda é aplicada pelo MP com base nessa lógica e confirmada pelos juízes, preocupados com o volume de processos em suas comarcas.

Mas os tribunais não aceitam, pois entendem que o MP não pode especular, ao mesmo tempo, a pena a ser aplicada e a demora até a sentença. “O promotor fica muito vulnerável hoje invocando a tese da prescrição virtual”, avalia o advogado.

Segundo ele, embora promotores e juízes concordem com a tese, esses casos chegam à segunda instância por meio de recursos das vítimas dos crimes.

Alternativas

Távora ressalta que, desde a lei “anticrime”, de 2019, o promotor não precisa mais pedir autorização ao juiz para arquivar um inquérito. Hoje, o próprio parquet pode arquivar a investigação e enviar os autos a uma instância superior do próprio MP, que confirmará ou não a medida.

Ou seja, atualmente, o MP nem precisaria solicitar aos juízes o arquivamento dos inquéritos com base na prescrição virtual.

Na visão do criminalista, as discussões sobre essa modalidade de prescrição na segunda instância estão vinculadas ao modo de arquivamento anterior a 2019, “que ainda hoje é aplicado, por tradição”.

A partir do momento em que o caso chega até o juiz para confirmação do arquivamento, ele pode ser levado à segunda instância.

Mas ainda há uma maneira de aplicar a prescrição virtual sem usar esse rótulo. Há uma cifra oculta de casos arquivados com base na falta de interesse de agir, que é uma condição para qualquer ação judicial.

A argumentação é que só há interesse jurídico se for possível alcançar um resultado útil no processo. Se a ação criminal não vai gerar qualquer punição (devido à prescrição), não haveria motivo para iniciá-la.

Esta é uma forma de aplicação indireta da prescrição virtual. Na análise de Távora, “a prescrição virtual, na verdade, é traduzida na falta de condição da ação. Falta interesse processual para ajuizar uma ação fadada ao insucesso, porque será reconhecida a prescrição”.

Além dessa estratégia retórica, há ainda casos que são arquivados pela prescrição virtual e não chegam aos tribunais porque todos na primeira instância — juiz, promotor, vítima, advogado, defensor público — concordaram com isso.

Se ninguém contestar o arquivamento, ele será confirmado. “A autonomia da vontade, nesse ponto, é insuscetível de controle pelo tribunal”, explica o criminalista.

Na prática, para evitar questionamentos e exposição dos juízes nos tribunais, a prescrição virtual é aplicada geralmente apenas quando acusação e defesa concordam com a tese. 

Um juiz, que já atuou em varas criminais e preferiu não se identificar, disse à revista eletrônica Consultor Jurídico que a maioria dos casos em que a prescrição virtual é aplicada transitam em julgado sem qualquer recurso.

Para ele, vale a pena aplicar a prescrição virtual, até porque os juízes precisam reduzir o acervo de suas varas. Mesmo se a decisão for anulada em segunda instância, a prescrição continuará correndo. Portanto, pode ser que o caso já esteja prescrito no futuro.

Maurilio Casas Maia, defensor público no Amazonas, vê esse cenário como um “pedido de socorro” dos juízes ao STJ e ao STF, para que revejam seus posicionamentos sobre o tema.

O objetivo desse movimento é “reorganizar a gestão judiciária de um modo eficiente, à luz da escassez de recursos públicos na insistência dessas decisões”. Hoje, os tribunais impõem que os juízes mantenham ativos processos que não terão “resultado útil para a sociedade”.

Desperdício

Segundo Maia, os precedentes do STJ e do STF “não são eficientes e promovem o gasto demasiado de recursos públicos”.

Para ele, não faz sentido manter processos que não terão resultado prático, pois eles apenas vão limitar os recursos para julgamento de outras ações mais importantes.

Já o juiz que preferiu preservar sua identidade afirma que o entendimento dos tribunais desconsidera os custos dos processos e a realidade das varas.

A sociedade, diz ele, acaba custeando processos caros e inúteis. Casos do júri são ainda mais custosos, pois, além das horas de trabalho dos juízes, promotores, defensores e servidores, também envolvem gastos com alimentação, hospedagem, segurança e isolamento dos jurados.

Maia diz que os precedentes do STJ e do STF surgiram durante momentos econômicos melhores do que o atual. Ele lamenta que as Cortes superiores não estejam analisando a mudança de contexto econômico e o impacto de suas teses nos recursos públicos.

Távora também gostaria que os precedentes dos tribunais superiores fossem revogados, pois já se aram muitos anos. “Hoje, a análise de gestão da persecução penal é muito diferente do que naquela época”, afirma.

Para além dos gastos, os réus são expostos a julgamentos desnecessários. “Mesmo sabendo que não haverá como ser punida, a pessoa ainda é constrangida perante um júri e um juiz”, assinala Maia.

Por fim, ao julgar tais casos, o juiz deixa de analisar outras ações que poderiam ter resultado útil. Isso ainda pode gerar, nas palavras do defensor público, um “efeito bola de neve”: quando o juiz finalmente conseguir retomar esses processos que ficaram parados, eles podem já estar prescritos (ou perto disso).

Futuro

Outra novidade trazida pela lei “anticrime” foi o acordo de não persecução penal (ANPP). Para Távora, há uma tendência de que a prescrição virtual desapareça. Isso porque, em vez de pedir o arquivamento com base em uma tese polêmica, os promotores podem propor um ANPP. Caso o acusado aceite, o processo não será iniciado — ou seja, o resultado é o mesmo.

“Formular acordo penal é muito mais simples do que invocar a prescrição virtual”, explica. “Me parece que a Justiça penal do consenso vai, nos próximos dois anos, matar a tese da prescrição virtual de uma vez por todas.”

O próprio STF vem apoiando a “Justiça penal negociada” e ampliando a margem de aplicação do ANPP. Segundo Távora, o objetivo é o mesmo da prescrição virtual: evitar processos.

Entusiastas da prescrição virtual defendem a revogação dos entendimentos dos tribunais superiores sobre o tema. Maia lembra, porém, que o STJ costuma aguardar um movimento do STF quando seus posicionamentos coincidem.

Há ainda quem entenda, como Távora, que o problema maior é a lei de 2010. Assim, outra alternativa seria uma alteração legislativa que permitisse, de forma expressa, a prescrição virtual.

Maia vê tal caminho como o mais seguro e prático: “A legalidade explícita e clara facilitaria o trabalho de todos.”

Por outro lado, o juiz ouvido pela reportagem sob reserva acredita que uma mudança legislativa seria desnecessária, pois “demandaria novos indicadores dificilmente objetivos” — afinal, tudo a pela análise do caso concreto.

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